EUDEMONISMO
I. O Eudemonismo busca na felicidade (podendo ser coletiva mas apresentando-se principalmente como individual) o fundamento da moral e quais são as condutas que levam à felicidade. Do grego eudaimonia, de eu – “bom” e daimon – “felicidade”, “gênio”, o “bom gênio”, o “bom humor”, o “destino feliz”, a individualidade feliz, a felicidade. Compreensão e enfrentamento da individualidade que entende a vida como sofrimento e, ao mesmo tempo, tendo a filosofia como uma mestra de conduta para o bem viver. Idéias e noções gerais para o indivíduo que fazem do “estar bem”, do “bem se conduzir”, do “bem se relacionar”, do “prazer intelectual, moral e ético” sua meta e, por isso mesmo, o que a coletividade deveria buscar ou proporcionar. Individualmente sua razão não é a “felicidade” ou o “prazer”, tomados em seu sentido estritamente literal, mas a serenidade e a paz de espírito mesmo em guerrilha contra o mundo, mesmo diante e dentro do horror, na perseguição, na tortura, na pobreza, na tribulação e na morte. Uma economia não da polis, da civitas ou do burgo, mas a economia da individualidade na vida, a economia vivencial da parte para si.
II. Há, classicamente, um “Eudemonismo idealista” (a virtude é o meio, a felicidade é o fim); um “Eudemonismo hedonista” (o prazer é o meio). Os seguidores de Epicuro tinham como “bem” a felicidade, atingida por meio dos prazeres do corpo (“Eudemonismo hedonista”) e os do espírito, que são mais elevados que os do corpo. Seu objetivo era afastar o sofrimento. Buscando o bem como aquele que não depende de outro, mas o constitui em si mesmo, a resposta encontrada é a felicidade.
III. A indiferença, um "Eudemonismo egoísta", não é admissível como posição eticamente justa, nem para o indivíduo, porque suprime vários prazeres e deforma outros, nem para a comunidade, porque se funda na soma de infelicidades: o narrador dantesco ao entrar no inferno vê-se entre os indiferentes: a indiferença levada aos seus termos faz desaparecer tanto o sofrimento quanto a própria vida e, com ela, os prazeres possíveis (para o Eudemonismo qualquer forma de nirvana dentro da vida é um dos horrores, não sendo, no entanto, depois da morte, já que uma das suas regras, dos seus anseios, é o fim definitivo e absoluto).
IV. A ética, principalmente a ocidental, é, antes de tudo, uma moral, um agenciador de comportamentos sociais, exigências de grupo, de classe, da comunidade, das exigências religiosas, sendo as regras individuais, as regras para a felicidade pessoal, sempre algo beirando a deformação: como viver bem “quando tantos passam fome”, quando “tantos sofrem”. Da reflexão grega ao marxismo pensar antes no bem comum e lutar por esse bem, sacrificando tudo a esse bem supremo, parece ser a “regra de ouro” realmente aceita, sendo qualquer desvio uma aberração ou egoísmo masturbatório. No entanto qualquer ética que não se funde num bem estar pessoal, que se torne coletivo, não passa de uma visão religiosa de vida camuflada, servindo muito mais ao “coletivo”, ao “mundo do trabalho”, aos “campos do senhor”, que de uma ética objetiva, aquela que parte do fragmento para o todo, da liberdade para a lei, pois o contrário é o reino das religiões, dos estados e ideologias do trabalho.
V. Aristóteles: "Absolutamente perfeito é aquele fim querido sempre por si mesmo e nunca por outro. Tal parece ser mais do que qualquer coisa a felicidade: a esta, de fato, queremo-la sempre por si mesma e nunca por outra coisa." Na “Ética a Nicômaco” (VII, 12, 1152b): “As pessoas temperantes evitam os prazeres”; “As pessoas dotadas de sabedoria prática buscam o que é isento de sofrimento e não o que é agradável”; “Os prazeres são um obstáculo ao pensamento, e quanto mais eles são assim, mais nos comprazemos neles”; “Não existe arte do prazer, enquanto todo bem é produto de alguma arte”; “As crianças e os animais irracionais buscam os prazeres.”
Para ele a causa final de todas as ações era a felicidade (eudaimonía). Na “Ética” a moralidade não é deduzida de um princípio metafísico, mas do que nos é peculiar: razão (logos) e atuação (enérgeia), dois suportes da sua ética. Só será feliz aquele que faça coincidir as ações e as virtudes, conquistadas pela educação.
VI. A ética ocidental cristã enfatiza duas idéias: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” e “Amarás ao próximo como a si mesmo” (Deuteronômio, VI, 5; Levítico, XIX, 18). E completará com sua “lei de ouro”: “Não faça ao outro o que não queres que o outro te faça”, confirmando: “Tudo que quereis que os outros vos façam, fazei primeiro a eles” (Mateus, VII, 12). Essa ética serviu perfeitamente como “espírito” tanto para todos os tipos de megalomanias expansivas, explorações, quanto para todas as formas de racismos, autoritarismos e extermínios. Sempre foi uma ética do sofrimento, da dor, do não viver, do manter as amarras entre senhores e escravos, trabalhadores e patrões.
No Hinduísmo “O dever é, em suma, isto: não faças aos outros aquilo que se a ti for feito, te causará dor” (Mahâbhârata, 5, 1517); no Budismo: “Não atormentes o próximo com o que te aflige” (Udanavarga, 5, 18); no Confucionismo: “Não faças aos outros aquilo que não desejas que te façam” (Analecto, 15, 23); no Zoroastrismo: “Só terás boa índole quando não fizeres aos outros o que não for bom para ti próprio” (Dadistani-dinik, 94,5); no Taoísmo: “Considera o lucro do teu vizinho como se fora o teu próprio e o prejuízo do teu vizinho como se fora teu próprio prejuízo”; no Judaísmo: “Se algo te fere, não o use contra o próximo. Isto é todo o Torah; o mais simples comentário” (Talmude); no Islamismo: “Nenhum de vós sois um crente até devotar pelo próximo o amor que devotais avós mesmos”.
VII. Mas as religiões não são detentoras ou mesmo criadoras das “regras de ouro” para a vida. Ao alienarem o que é vivido, sofrido, pensado, sentido e feito por nós para uma instância imaginária, mas que não se considera assim (o imaginário se materializar faz parte constitutiva da maneira como criamos, mantemos e reproduzimos o real), ela perde completamente a capacidade de gerar uma reflexão para a vida, para o prazer, para a felicidade. No entanto o conhecimento e experiência das religiões devem ser revertidos, invertidos, vertidos, postos à disposição daqueles que a criam e a servem. Sem deus, nós; sem transcendência, a imanência; sem além, o aqui; sem espírito, a inteligência, a sensibilidade, a carne. Nenhuma religião capacita ninguém a se enfrentar e enfrentar a vida; a explorar o mundo e a si mesmo: tudo é para alem e depois, é através de outro ou com outra razão: sempre fora de nós.
VIII. Kant submete o eudemonismo a uma crítica intransigente, tanto na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” como na “Crítica da Razão Prática”. Feuerbach avalia nessa perspectiva uma mudança significativa na ética, pois até ali a vontade era considerada como desejo racional. Feuerbach considera a felicidade não apenas como fundamento da moral, mas também como o da religião, porquanto os cristãos e os budistas sacrificam a felicidade deste mundo, mas não a felicidade como tal, na esperança de gozar felicidade no “outro mundo”. Uma ação é boa (e conseqüentemente é um dever) se estiver fundamentada num valor (Kant, de modo inverso, se baseia na idéia do dever: uma ação é boa, tem valor, deve ser feita, se obedece o “princípio categórico”). Jeremy Bentham, seguido por John Stuart Mill, defende o princípio do eudemonismo clássico para a coletividade inteira.
IX. Razão e vontade unidas na virtude, em busca do maior contentamento que é possível na vida - a moral de Descartes como uma forma de Eudemonismo. Para Descartes como para Espinosa a virtude não se contrapõe à paixão porque é possível o bom uso das paixões: a "firme e constante resolução de executar tudo quanto a razão aconselha à firmeza dessa resolução", porque nos conduz a algo que a obra não pode dizer.
X. No Eudemonismo a filosofia é entendida (não é uma filosofia ou uma teoria, mas regras soltas, experiência individual intransferível), em primeiro lugar, como prática reflexiva para a vida individual; depois como uma das razões do porque e para que se luta contra a exploração, a falta de liberdade, o autoritarismo, a miséria, a ignorância, a massificação, o horror. Se num primeiro momento (o que essencialmente desenvolveremos aqui) não é a felicidade a meta, no segundo se instaura precisamente a felicidade como meta a ser buscada, pois ela reúne em si todos os valores positivos e negativos necessários para uma vida social mais rica, plena e digna, onde plenamente a primeira parte poderia se desenvolver em liberdade. Tanto no primeiro momento quanto no segundo fica claro a possibilidade objetiva de transcender tanto enquanto indivíduo (consciência, vontade, educação, reflexão) quanto socialmente (forças sociais revolucionárias) as condições para uma vida plenamente digna (ver coda). A plasticidade viva das dimensões da realidade, sua ficcionalidade fundante, permite plenamente a mutação. Não há, em nenhum momento, seja em termos individuais seja em termos sociais, nenhuma realidade natural, definida, pronta, acabada. Nossa atividade modificadora deve atingir o real na medida da sua ficcionalidade. Só a modificação pessoal (encontrar suas próprias razões, ser criadora e mantenedora de si mesmo) permite um enfrentamento maior e um engajamento radical na existência.
coda
“Ao passo que o homem se empobrece continuamente como homem, tem necessidade de mais e mais dinheiro para se tornar senhor desses seres hostis e a força de seu dinheiro decresce em razão inversa da massa da produção, o que quer dizer que sua necessidade aumenta à medida que aumenta a força de seu dinheiro. Eis porque a necessidade de dinheiro é a verdadeira necessidade engendrada pela economia política, a única necessidade que ela engendra. A quantidade de dinheiro torna-se, progressivamente, a única quantidade essencial do homem. Assim como reduzia todos os seres a abstrações, assim, em seu movimento próprio, ele se reduz cada vez mais a uma essência quantitativa. A imoderação e a falta de medida tornam-se suas medidas verdadeiras. (...) ele se torna – (...) um escravo inventivo e calculador das cobiças desumanas, refinadas, artificiais e imaginárias (...). Seu idealismo resolve-se em fantasias, bizarrices, caprichos e não há eunuco que bajule mais baixamente seu déspota e tente excitar seus sentidos entorpecidos por meios mais abjetos para conquistar sua graça do que o eunuco da indústria, o produtor, que corre atrás da moeda de prata, desejando subtrair o dinheiro do bolso do seu semelhante muito amado (cada produto é um engodo para subtrair do homem sua essência, o dinheiro; cada necessidade real ou possível é um pretexto para atrair a vítima para a armadilha..., assim como cada imperfeição humana é uma certa ligação com o céu, o ponto por onde seu coração é accessível ao padre ...), adapta-se às suas fantasias as mais perversas, torna-se alcoviteiro entre ele e suas necessidades, faz nascer nele desejos patológicos, espreita cada uma de suas fraquezas e exige sua recompensa por tê-la satisfeito. Em parte, esta alienação do homem manifesta-se em engendrar, por um lado, o refinamento das necessidades e dos meios que servem para satisfazê-las, e, por outro, a bestialização, a simplificação grosseira e abstrata das necessidades.” (p. 257/258)
“O homem que, na realidade fantástica do céu, em que buscava um super-homem, só encontrou o reflexo de sua própria pessoa, não será mais tentado a não procurar senão sua própria aparência, senão o super-homem, onde ele busca e deve buscar sua verdadeira realidade.” (Marx, 1945: 273/274)
“A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós é diretamente possuído, comido, bebido, transportado no corpo, habitado, etc., ou melhor, quando é utilizado. (...) Portanto, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido do ter. (...) A supressão da propriedade privada constitui, deste modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas. (...) Só por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano é que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em resumo, os sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como capacidades humanas). Certamente, não são apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), ou melhor, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que vêm à existência mediante a existência do seu objeto, por meio da característica humanizada. A formação dos cinco sentidos é a obra de toda a história mundial anterior. O sentido encarcerado sob a grosseira necessidade prática possui unicamente um significado limitado. Para o homem que morre sob a fome, não existe a forma humana do alimento (...). O homem sufocado pelas preocupações, com muitas necessidades, não tem qualquer sentido para o mais belo espetáculo (...). a objetivação da essência humana , tanto do ponto de vista teórico como prático, é necessário para humanizar os sentidos do homem e criar a sensibilidade humana correspondente a toda a riqueza do ser humano natural.” (Marx, 2002: 142/143/144)
“O homem rico é ao mesmo tempo o homem que precisa de uma soma de manifestações humanas; é aquele cuja realização existe como urgência natural interna, como necessidade. (...) a erupção sensível da minha atividade vital, é a paixão que desta forma se torna a atividade do meu ser. (...) Um ser só é independente quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si próprio quando a si mesmo deve a existência. O homem que vive pelo favor de outros se considera como ser que depende. Vivo completamente do favor de outro, quando lhe devo não só a manutenção da minha vida, mas também a sua criação; quando ele é a fonte da minha vida e a minha vida possui fundamentalmente fora de si a fonte quando não é a sua própria criação.” (Marx, 2002: 146/147)
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