VOZES DO SILÊNCIO

 

 

XÊNIA DE CASTRO BARBOSA

Pesquisadora do Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO.

 

 

            O presente texto é momento reflexivo de minhas experiências teóricas e de campo construídas com a pesquisa que desenvolvi no Bacharelado em História: Vozes do Silêncio: História Oral com Doentes Mentais. Os sujeitos com quem trabalhei foram os pacientes do setor de Reabilitação Psiquiátrica do Hospital de Base de Porto Velho que estiveram dispostos a colaborar com o estudo através do diálogo, da convivência e do narrar suas experiências de vida.

            Foram três meses de idas a campo quase que diárias, horas intensas de gravação, conversas, amizades, revolta, desconforto, denúncias, impedimentos, vontades impossíveis de realizar. Para compensar tudo isso: histórias fascinantes de lutas, paixões, desejos e interferências metafísicas, intercaladas com as de dor, maus-tratos, incompreensão, sonhos desfeitos, bem como estratégias de resistência e criação de novas subjetividades. Essas narrativas foram transformadas em Textos mediante trabalho transcriativo em História Oral.

            Nosso objetivo foi estabelecer um diálogo com os pacientes do referido espaço. Ouvir o “outro” integralmente e construir leituras de suas experiências, sonhos, crenças, imagens de si e do mundo, sem condicionar suas falas a um estigma, sintoma ou patologia, mas apreciando-as dentro de sua própria virtualidade e polissemia.

            Para desenvolver o trabalho utilizamos a seguinte metodologia de História Oral:          Pré-entrevista - onde apresentei para os Colaboradores, em linhas gerais, a motivação da pesquisa e a forma como poderiam participar, como seriam feitas as entrevistas e suas textualizações. O segundo passo foi o da Entrevista propriamente dita – realizada com gravador e mediante os procedimentos de Nascimento Voluntário e Cápsula Narrativa, desenvolvidos pelo professor Alberto Lins Caldas (URL: www.unir.br/~albertolinscaldas/artigos/capsula, em 05/02/2005), que permitem ao narrador iniciar por onde quiser e falar sobre o assunto que desejar, até que se esgote seu fluxo narrativo, só então havendo a interferência do pesquisador (oralista). Ou seja, só depois que se ouviu o outro integralmente é que se vai aprofundar as questões de interesse específico da pesquisa e do pesquisador, pedindo ao narrador que comente um pouco mais a questão x ou fazendo uma pergunta direta. Esses procedimentos são essenciais porque nossa busca, como expressei anteriormente, é acima de tudo pelo “outro” em sua virtualidade discursiva.

            As Entrevistas se deram logo após o momento das Pré-entrevistas, já que a experiência de marcá-las para data futura, com horário e local pré-definido mostrou-se ineficaz, visto que essas pessoas não têm um “eu fixo”, nem vivem o mesmo tempo e lógica que vivemos. A pessoa com quem converso hoje, amanhã já é outra, com outro nome, história, comportamento.

            Provavelmente tal fenômeno ocorra pelo fato de elas não possuírem ou não precisarem/desejarem assegurar alguma propriedade (no sentido burguês do termo: de coisa que se possui). Se não há propriedade, apego ou atribuição de valor capitalista a ela, não há necessidade de se prender a um discurso fixo, a um único nome, endereço e história.

            O terceiro momento foi o da Transcrição – no qual se faz a passagem do oral para a escrita. Seguido a este, a Textualização –trabalho que confere ao texto um caráter “mais fluido”, uma leitura corrente, ou seja, sem os entraves de expressões repetitivas (como meia dúzia de “né?” em uma única frase), porém, sem abolir as marcas da oralidade, a singularidade expressiva de cada um, bem como sua organização temporal, cronológica. Em outras palavras: não se mexe na estrutura do texto, não se organiza as idéias do narrador, pois a própria Cápsula estrutura o texto e nos permite perceber o eixo narrativo de cada Colaborador.

            Textualizadas as Entrevistas, imprimi uma cópia de cada e retornei com seus respectivos narradores para fazermos a Conferência, verificar as informações, fazer as alterações e substituições necessárias e receber a autorização para publicá-los. Esse momento foi surpreendente, pois meus Colaboradores não se “reconheceram” nos Textos. Enquanto lia com eles, perguntava e fazia minhas considerações, eles apenas diziam distraidamente: “ahã, ahã” ou contrariamente, ficavam tão sérios lendo/ouvindo suas histórias sem compreender que eram as suas.

            Rapidamente tive que encontrar outra forma de realizar a Conferência dos Textos. Por sorte estava com o gravador e algumas fitas na bolsa, então liguei o gravador para eles ouvirem, entreguei o texto em papel e pedi que acompanhassem a leitura ouvindo a fita. Logo me entregaram o papel e se concentraram apenas em ouvir. Encantados por ouvir a própria voz, mais que reconhecimento houve emoção, comentários, acréscimos (que anotei enquanto eles falavam), e silêncios expressivos. Dessa forma, a Conferência se deu não no âmbito da escrita, mas intrinsecamente da oralidade.

            A maioria dessas pessoas nunca fez parte do mundo da escrita. Vieram da zona rural, passaram pouco tempo na escola e seu cotidiano exigia muito mais habilidades práticas que de abstração.

            Um ponto interessante e bastante revelador da condição de vida e do espaço onde sobrevivem, é o fascínio que demonstraram ao ouvir a própria voz no gravador. A instituição psiquiátrica é o lócus silenciado e silenciador por excelência. O isolamento, a disciplina, as ameaças, mesmo que indiretas e a possibilidade constante de abuso de poder por parte de algum profissional da instituição, levam os pacientes a um não-diálogo. No máximo, a frias respostas conferidas às frias perguntas dos questionários de rotina.

            Em contrapartida, subsiste no imaginário da cidade (dos “normais”, “livres”), um sentimento de temor e vergonha que leva ao afastamento desses “lugares malditos” e dessas pessoas que representam a possibilidade de ser de cada “normal”. Escolhe-se um não pronunciar, um tentar esquecer que nunca pode ser completo, devido ao ícone de loucura: o manicômio e suas re-atualizações.

         Na maioria das vezes essas pessoas, quando tentam se dizer, falar sobre seu mundo, vida e vontades, são duramente impedidas. São pessoas que nunca se disseram, ou quando o fizeram, não foram ouvidas e interpretadas como gostariam. Tiveram suas falas recriminadas, condenadas. Sofreram violências ao tentar viver e falar de seu mundo interior e tiveram seus discursos utilizados contra elas próprias, como emblema de alguma doença, de algum mal terrível.

            O momento final foi o de construção das Leituras – interpretações dos Textos que de forma alguma se propõe como definitivas e “as únicas corretas”. São olhares sobre um fenômeno, olhares construídos por tudo o que me constitui e atravessa: história, cultura, religião, teorias, posição de classe, ideologias. As Leituras que desenvolvi possuem “caráter flutuante”, dialogam com diversas idéias, passa por diversas “correntes” (teóricas: aquáticas, porque texto é líquido que flui inusitado), mas não se prendem a nenhuma.

            Todo esse processo metodológico, que vai do início da gravação das entrevistas à “fase final” de análise dos Textos, é denominado “Transcriação”. (Meihy: 1996).

            Os Textos que obtivemos com tal metodologia revelam imagens, sonhos, desejos, formas de sentir e criar, relações de poder e concepções de mundo que não poderiam jamais ser enquadradas em um único modelo explicativo, como a Psicanálise ou a Psiquiatria, por exemplo. Qualquer enquadramento desse tipo seria empobrecedor, visto as potencialidades interpretativas desses textos e os múltiplos significados e caminhos que sugerem.

            Não estamos lidando com textos comuns, planos, fechados, mas com hipertextos, com camadas de textos de inúmeras épocas, lugares e culturas se sobrepondo uma às outras, gerando outros em nossas hiperleituras, pois como se sabe, o hipertexto “é a própria hiperleitura em seu movimento, em seu momento; o resíduo é mecânica hipertextual: aquilo que fica no caminho é a rede e sua visibilidade textual [sempre pronta para iniciar percursos]” (Caldas, 2001).

            Apesar desses Textos serem histórias de vida, histórias das experiências singulares por eles vivenciadas e de eles terem vindo de espaços, famílias, tradições diferentes, em síntese, de terem realizado trajetórias de vida únicas, foi possível cartografar uma série de elementos em comum.

            Nos Textos das mulheres as histórias, os enredos mudam, mas é como se houvesse por baixo de cada um deles uma grade que os moldasse. Transparecem uma visão romântica de quando eram jovens, belas e estavam dispostas a casar “para sempre” e construir com o companheiro uma vida feliz. Algumas tiveram momentos venturosos no casamento, outras “carregaram pedras” desde o início e no meio do caminho algo radical interferiu, gerando a separação.

            Essas interferências são sempre violentas: morte do cônjuge, estupro, violência doméstica, adultério e frustração por ver os ternos sonhos alimentados desde a infância serem impossibilitados de acontecer.

            Quando tais fatos ocorrem, elas percebem que é necessário tentar outra forma de vida e qualquer outra forma de vida que queiram desenvolver, se não corresponder ao que a sociedade ocidental tem por “ser mulher”: viver a sexualidade no casamento, cumprir todas as obrigações domésticas (que inclui trabalho, casa, marido, filhos, preparo de alimentos e conduta irrepreensível, isenta da manifestação de qualquer vício e desejo contrário ou comprometedor a isso), lança-nas à margem e impõe o estereótipo da loucura.

            São mulheres que possuem idéias, desejos e sonhos bastante justos para com elas (querem ser felizes, livres, realizar coisas, transitar em outros espaços), mas a impossibilidade material e cultural de concretizá-los levam-nas a um abismo interior, onde procuram viver isso imaginariamente, mas não de forma passiva, pois o comportamento estranho que passam a representar, a loucura propriamente dita “(...) mesmo silenciada e excluída tem valor de linguagem e seus conteúdos adquirem sentido a partir daquilo que a denuncia e repele como loucura” (Foucault, 1991: p. 91).

            Impossível permanecer incólume quando se percebe que tudo o que se acreditou, desejou, esperou (como a casa, o casamento feliz, o relacionamento de fidelidade, compreensão e clareza), não acontecem. A vida, o tempo, a beleza foram gastos e o caminho à frente se bifurca: ou aceita-se tudo como está (irrealização, violências, impossibilidade de diálogo), ou aceita-se seguir um caminho novo, desconhecido, perigoso e pagar o alto preço dessa escolha (preconceito, críticas, incompreensão, abandono por parte da família e até uma provável reclusão em alguma instituição psiquiátrica).

            Nos Textos dos homens também é freqüente a referência a violência doméstica, incompreensão por parte de membros da família, desafetos e acusações.

            Por terem sido educados para o espaço da rua e da lavoura, discursos sobre a insatisfação com o trabalho, acidentes sofridos, não-compensação financeira, desgaste físico-emocional e dificuldade em prover o lar, são pronunciados com muita angústia e dor.

         Ao contrário do que imaginava, essas narrativas não se referem essencialmente ao mundo material, prático, operacional, mas desenham com muita afetividade suas questões religiosas, familiares e de relacionamento com o sexo feminino.

         Muitos afirmaram estar lá porque, como as mulheres, tiveram decepções irreparáveis na vida matrimonial (como a morte do cônjuge, por exemplo). Porém, houve maior constatação dos comportamentos inaceitáveis dentro de nossa cultura, como manifestações homossexuais e “inaptidão” para o trabalho, que seria mais bem traduzida como resistência à funcionalidade do mundo capitalista, à manutenção de sua estrutura sócio-econômica (MOFFATT, 1991: 43).

         As escolhas de vida de tais narradores e as conseqüências por elas pagas, freqüentemente levam-nos a assumir um “discurso penitente” e com forte presença de elemento religioso e mitos de Queda e Ascensão, nos remetendo a uma viagem dantesca.

         Na maioria dos Textos (de narradores homens e mulheres), a religião aparece como eixo estruturante das falas e experiências vivenciadas. Possuem uma forma singular de “ser igreja”, uma forma bastante individualizada, que os levam a trocar de religião, renunciar a certas idéias e absorver outras sem nenhum grande esforço. Dessa mesma forma atribuem valor, se comportam cotidianamente e interpretam as questões de fé, muitas vezes contrariando o magistério das religiões históricas.

         No grupo entrevistado, a média de igrejas pelas quais passaram é de 4 para as mulheres e 2 para os homens. Devido à grande assimilação dos conteúdos religiosos, do apego a eles como resposta ao sofrimento, às situações desconfortáveis que têm sentido e as promessas de consolo e redenção que suas atuais igrejas ofereciam, era comum encontrar homens nos corredores exortando ou explicando metafisicamente alguma coisa ou situação.

         As mulheres com quem convivi durante a pesquisa exercitavam sua fé de modo mais interiorizado, sem se esforçar por converter os demais e sem se pronunciar muito sobre isso, salvo interpelações. Algumas chegaram a questionar diversos dogmas, comportamentos e imagens e a revelar as dúvidas de conduta e expressão religiosa geradas pelo contato com as diversas religiões (Católica, Evangélicas, Espíritas).

         Como se depreende, o efeito da religião sobre uns e outros é visivelmente diferenciado.

         Peculiaridades de viver o Sagrado à parte, é questionável a forma como essas religiões influem na vida dessas pessoas, o poder de seus discursos, ritos e admoestações e a coerência e preparação doutrinária, filosófica e psicológica de seus líderes para lidar com as situações físicas e subjetivas limites que seus fiéis enfrentam no dia-a-dia.

         Outro ponto interessante que destacamos nos Textos é a forma como vêem e explicam o mundo. Diante das vicissitudes da vida, dos desencontros, violências, fomes, “falta de sorte” e incoerência das relações políticas e religiosas, costumam apresentar uma explicação cosmológica ricamente imagética.

         Em mais de um Texto há referência ao “movimento contrário que o planeta Terra está fazendo”, o que segundo eles, faz com que o mundo fique de cabeça para baixo: “pai mate filho e filho mate pai”, “os políticos hajam como patifes e os homens religiosos coloquem o dinheiro acima de tudo”, enfim, que as coisas aconteçam inversas ao que deveria ser. O único que poderá fazer o mundo retomar o seu sentido correto é o Messias.

         Alguns colaboradores, ao expor esse movimento contrário, fizeram com que eu me atentasse aos sintomas físicos que “quiseram” manifestar no momento da entrevista: dor de cabeça, tontura, suor frio nas mãos. Afirmaram que nem todos conseguem sentir os efeitos desse movimento anti-horário porque já estão acostumados ou não possuem “uma grande sabedoria de Deus”.

         Apesar de ser apresentado, na maioria das vezes, como algo desconfortável, ruim e irreversível pelas ações humanas, também é justificativa para as práticas pessoais condenadas pela sociedade. Depois de relatar suas experiências e a trajetória que fez desde que “abandonou” sua família no Nordeste, Marineide conclui com maturidade, se mostrando em harmonia com o cosmo: “Se o mundo gira, porque eu também não posso girar?!”.

         Esse movimento também é apresentado como possibilidade de justiça. Algo no sentido de que se o mundo dá voltas, você terá a sua hora de “estar por cima”, de estar no lugar dos que hoje te oprimem e agir diferente deles ou executar vingança.

         As relações com a Identidade e com os objetos de posse se dão de forma específica e conforme o momento da internação que estão vivendo. É comum entre as pessoas que receberam alta e estão aguardando a família vir buscá-las, assumir um discurso identitário, repetindo constantemente o nome completo, o nome da cidade onde moram e as coisas que possuem, muitas vezes colocando na mesma escala de posse um filho, uma vaca e uma antena parabólica.

         Essa separação e atribuição de valores e afetividades diferenciadas que atribuímos às coisas, às pessoas e as pessoas com quem possuímos consangüinidade e vínculos mais estreitos nem sempre aparece em seus textos. Esse relatar as posses parece-me muito mais estratégia para ser aceito no mundo, de voltar ao convívio da família e da sociedade do que propriamente de prezar e se preocupar em manter e/ou aumentar essas propriedades. Possuem outra lógica referente a isso, diferente de tudo o que conhecemos até hoje, seja através das teorias socialistas, do humanismo e místicas cristãs ou do próprio sistema em que vivemos atualmente.

         Seus posicionamentos em relação ao mundo e à convivência em grupo não são ingênuos nem otimistas e se existe um sentido de revolta e agressividade em relação a eles, isso se dá num campo bastante subjetivo, acredito que não diretamente intencional (refiro-me aos casos que estudei). O que demonstram em relação a eles é muito mais um cansaço, um não se importar, um sentimento de que não vale a pena lutar contra. Porém, o “simples” vivenciar esse mundo interior, esse “mundo da loucura”, repleto de fantasias, desejos e metadiscursos, é, ontologicamente falando, ameaça direta a toda a ordem estabelecida (política, social, econômica, moral, de produção e reprodução).

         Ainda no campo teórico, gostaria de ressaltar que o termo utilizado na pesquisa para referendar os sujeitos que com ela colaboraram (“doentes mentais”), é insuficiente e carrega consigo uma série de problemas. O primeiro deles é o fato de não conseguir “dizer” o que eles são, visto que nossos colaboradores transcendem o “ser doente mental” e em alguns casos até o negam, não se reconhecendo como tal. O segundo é o estereótipo que confere, e como se sabe, todo estereótipo é nocivo porque gera visões reduzidas, limitantes, e muitas vezes preconceituosa, o que impede a compreensão do outro e seu enfrentamento em sua exata dimensão.

            Mesmo sabendo disso o problema persistiu. Não se resolveria com uma simples substituição de termos. “Doentes mentais”, “loucos”, “pacientes da ala psiquiátrica” ou “portadores de mal-estar mental”, conduziriam ao mesmo estereótipo: o de alguém que não está “bem”, que não está em seu estado “normal”.

            Por incapacidade neologística permaneceu o título “Vozes do Silêncio: História Oral com Doentes Mentais”, juntamente com o alerta de que ele não é bastante, não representa bem tais sujeitos e que se cairmos em sua “armadilha” jamais os compreenderemos em sua integralidade narrativa, que corresponde à ficção do momento, à imagem que querem transmitir, impressas nos Textos.

            O núcleo do trabalho é os Textos construídos a partir da citada metodologia de História Oral, porém, as experiências de campo, pesquisas bibliográficas e em arquivos compõe a escritura deste.

            O Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro é obra resultante do governo do Coronel Jorge Teixeira de Oliveira, inaugurado no dia 12 de Janeiro de 1983. Na época era considerado o maior complexo hospitalar da Amazônia. O nome é homenagem a Ary Tupinambá Penna Pinheiro, importante médico-cirurgião e pesquisador de etnias indígenas e biomas da região.

            De acordo com o Doutor Viriato Moura, sua área inaugural “ possuía 16.000 m², distribuída em “22 blocos, 400 leitos e diversos serviços especializados”. Afirma também que devido “a dimensão e a complexidade do hospital, sua inauguração ocorreu em três etapas, nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1983, quando foi concluída com a ativação do serviço de psiquiatria.”

            Atualmente enfrenta os sérios problemas comuns (mas não naturais!) das obras públicas: descaso, falta de investimento financeiro, técnico e humano e a incapacidade estrutural de atender uma demanda crescente de pessoas tanto da Capital como das cidades do interior que dependem de seus serviços.

            Se num primeiro plano (o mais aparente), a filosofia do hospital é reabilitar, reintegrar o indivíduo à sociedade, trabalho, produção, por traz de tais idéias e práticas encontra-se uma ética da profilaxia que atua no controle dos corpos, não mais estritamente de forma moral, mas através dos discursos celulares, das ameaças orgânicas de impotência à sobrevivência e ao consumo.

            Quando todo esse aparato médico (filosofia, ação, saberes, técnicas) não faz efeito no âmbito do indivíduo, no âmbito da assimilação/aceitação/apropriação desse discurso que propõe um corpo saudável, operante, reprodutor e mantenedor de forças de trabalho, integrado ao sistema capitalista, a própria sociedade, com seus setores “ordenados”, em funcionamento (como o setor médico e o religioso, por exemplo), criam espaços de segregação para esses indivíduos desajustados.

            Existe uma forma de tratamento diferenciada para aqueles que apresentam um transtorno físico momentâneo e desejam retomar suas atividades normais e para aqueles que resistem a essas “atividades normais”, para os que não querem viver nesse mundo e criam outros, interiores.

            Como se sabe, é esse segundo tipo de pessoas que as instituições psiquiátricas, asilos, presídios, reformatórios, casas de apoio abrigam. Se olharmos para a estrutura física desses lugares, a idéia primeira é mesmo de abrigo, de algo momentâneo onde se poderia passar uma noite, no máximo. Abrigo: lugar de proteção e cuidados para quem vive um momento de fragilidade. A permanência em um local como esses por mais tempo que uma noite seria suficiente para ter uma segunda idéia sobre ele: prisão!

            Blocos fechados, isolados, muros, paredes altas, desbotadas e úmidas, janelas gradeadas, ausência de portas nos banheiros (ausência total de privacidade), pátio central, guardas nos dois extremos do setor. Panóptica.

            Além da presença dessas peças, desses objetos que compõe esse cenário de cárcere, a ausência do “sentido de casa”, se dá mais pela falta dos objetos que lhe são próprios e das relações que se estabelece com eles. Não me refiro aqui a relações entre pessoas da mesma família visto que é possível ter um lar sem a possuir. Muitos órfãos, viúvos, divorciados, religiosos ou solitários por opção conseguiram vivenciá-lo mesmo longe dos seus.

            Na Ala Psiquiátrica do H. B. Ary Pinheiro percebe-se toda essa estrutura de aprisionamento e não-lugar. Nenhum quadro na parede, nenhum bibelô, nenhuma imagem de santo da devoção, nenhuma fotografia em porta-retrato, nenhuma roseira, condimento ou planta medicinal, almofada preferida, livro de cabeceira, “cantinho” de refúgio e meditação, nenhum lugarzinho para esconder um tesouro, um segredo, um presente surpresa. Nenhuma decoração, nenhum significado ou “fogo sagrado”.

            Além dos problemas em comum que todas as instituições de atendimento psiquiátrico que adotaram o modelo do Internamento comportam, a Loucura em Porto Velho, bem como suas formas de assistência, possui características que a diferencia do resto do país.

            Para melhor compreendermos tal fenômeno é preciso levar em conta que estamos pesquisando em uma região de fronteira, tanto sócio-cultural, como econômica e política.

            O distanciamento do centro em nível de espaço, cultura, economia e tecnologia, fazem com que ela seja um espaço não integrado plenamente ao país e ao mundo.

Citando Sawyer, Berta Becker afirma:

 

“(...) a fronteira é justamente o espaço em incorporação ao global/fragmentado, ao urbanizado (...) por essa razão tem uma organização capitalista inacabada, não plenamente estruturada; seus estoques são pouco densos e contínuos; as formas e relações sociais de produção são híbridas e fluidas, expressando as contradições do Estado” (1990: p.132).

 

            Sendo a fronteira um lugar em construção, apresenta-se como campo convergente de diversos interesses e ideologias. É uma espécie de espaço alternativo, onde tudo pode ser feito e experimentado, desde iniciativas agrícolas e farmacêuticas, até o exílio de presos políticos opositores ao regime. É vista como reserva (principalmente de mão-de-obra e recursos naturais) e “solução” para os problemas centrais, como a superpopulação, o problema energético e a falta de terras agricultáveis para trabalhadores rurais de determinadas regiões, por exemplo.

            Esse “campo de possibilidades” passou a receber, a partir da década de 1940, uma série de investimentos que visavam a integração nacional e o desenvolvimento econômico da região, através de órgãos do governo, como SPVEA, SUDAM, INCRA, PLANAFLORO e também de iniciativa privada. Setores como saúde, segurança pública e infraestrutura urbana ficaram descobertos.

            Por não haver políticas específicas direcionadas às demais instâncias da vida dessa população, as instituições que lidam com elas tendem a adotar os modelos dos grandes centros e enquadra-las a esses modelos. Processo violento e que não corresponde às especificidades e expectativas das pessoas do lugar. Numa tentativa absurda de se “firmar”, de adquirir um caráter menos fluido de relações, práticas, comportamentos e produções, renegam a possibilidade criativa peculiar à fronteira e se prendem a um único modelo, já caduco – o internamento como única forma de abordar e se relacionar com a Loucura -, no caso específico que tenho estudado.

            São inumeráveis as pesquisas que mostram a ineficácia de tal procedimento e os danos que ele gera nos indivíduos reclusos e em seus familiares; apontam inclusive, o retardamento que isso causa na re-socialização. Se algumas semanas de internamento podem ser comprometedoras de toda uma existência, o que se dirá de uma vida inteira dentro de uma ala psiquiátrica? No ano em que iniciei a pesquisa de campo (2003), havia “residentes” no setor de Reabilitação Psiquiátrica do H.B Ary Pinheiro, termo que se dá às pessoas que foram esquecidas/abandonadas pela família, sociedade, direitos humanos, políticas públicas, e “moram” lá há vários anos.

            O que fazer com essas pessoas, para onde encaminha-las, quando fazer, é algo que deveria envolver não só os profissionais da saúde (que escolheram ver a Loucura como doença e se “responsabilizar” por ela), mas as demais esferas da sociedade: educadores, políticos, empresários, trabalhadores, estudantes, artistas. Ajudar o outro a se re-personalizar, construir leituras “do lado escuro” da mente, elaborar representações criativas de si e do mundo e se inteirar do processo globalizante, massificador de nossos dias, bem como de estratégias de sobrevivência, resistência, subjetivação, pode ser uma experiência rica de aprendizagem, de valorização do potencial criativo do inconsciente e até mesmo de autoconhecimento.

            A Loucura, mais do que problema pessoal (sempre dos outros, nunca assumimos nossos delírios), é um fato cultural que diz respeito a comportamento e/ou experiências não aceitáveis dentro de determinado grupo social. De acordo com Moffatt: “certas experiências que são qualificadas como ‘normais’ dentro de uma determinada cultura ou subcultura, podem ser consideradas ‘loucura’ dentro de outro ambiente cultural.” (1991: p. 163).

            A partir de teorizações como as de Moffatt - mais próximo de nós, de Basaglia e do grupo expositor da Antipsiquiatria (Ronald Laing, Joseph Berke e Donald Cooper.), e das experiências tanto práticas quanto teóricas construídas pela Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones, é possível percebê-la sobre outros prismas e se relacionar com ela de outras formas, não mais escondendo-a entre muros sinistros, impedindo violentamente suas manifestações e conferindo ao médico o poder policialesco de reprimi-la e ordena-la a qualquer custo. Também não mais observando-a com “os óculos do romantismo”, pelos quais ela era tida como “iluminação”, “contato com as divindades”, “a verdade oculta”, mas com olhos críticos que vêem-na como manifestação de nossas possibilidades de ser, de nossos desejos não expressos e idéias não manifestas, de nossa resistência à funcionalidade do mundo da produção que preferimos não expor até o presente momento, mas são latentes.

            Fenômeno que é também “sintoma” do mundo em que vivemos e em que outros viveram. Mundo de restrições, regramentos, castrações, impedimentos, interdições e desejos infinitos que não se satisfazem com a forma de sobrevivência material que possuímos, com os meios de comunicação disponível, com a institucionalização do amor e do prazer obtido com o corpo do outro, nem com os “momentos do permitido”, como o Carnaval e outras festas.

            A Loucura traz em si dois germes distintos: o da desintegração do sujeito e o da imaginação criadora. Ambos são potenciais em se desenvolver, podendo inclusive se suceder um ao outro, mas o processo do primeiro pode se tornar irreversível caso não se construa um ambiente “dentro do qual as pessoas possam estudar em que consiste seu sofrimento, e compreende-lo.” (Moffatt, 1993: p. 164”. Já a imaginação criativa, quando incentivada, orientada em termos de técnicas (não de idéias!), dá ao mundo presentes preciosos como Artur Bispo do Rosário, Linda Carmella Síbio e suas obras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BECKER, Bertha. Fronteira Amazônica. Ed. UNB, 1990.

BUENO, Astregésilo Carrano. O Canto dos Malditos. Rocco, 1994, São Pauo

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Perpectiva, São Paulo, 1999.

__________. O Nascimento da Clínica. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1998.

__________. Doença Mental e Psicologia. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1991

JACOBINA, Eloá (org.) Masculino/Feminino no Imaginário de diferentes épocas. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998.

MOFFATT, Alfredo. Psicoterapia do Oprimido. Cortez, São Paulo, 1991.

PERUSSI, Artur. Imagens da Loucura. Cortez, Recife, 1995.

SILVA, Marcos Vinícius de Oliveira. A Instituição Sinistra. Cons. Federal de Psicologia, São Paulo, 2001.

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MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. 8 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.