HISTÓRIA E VERDADE

 

 

         A força da História (sua dignidade) não está em “haver acontecido”, em ser “baseada em fatos”, mas em ser uma forma elementar de discurso (que manipula socialmente o tempo) e que pode manter essa consciência (ética e política exatamente por ser epistemológica) no centro do seu sistema dando suporte a outros discursos e práticas. Nessa manipulação estão várias questões como a verdade, a realidade, o valor, o sentido. Por isso a História não é “simplesmente uma escrita”, mesmo sendo exclusivamente isso. Como essa escrita é manipulação profunda do tempo, suas conseqüências deixam de fazer parte somente das redes escriturais e tomam parte da própria forma do ser social, das suas decisões, ações e interioridades.

         A maneira como a História ordena o tempo tem conseqüências profundas desde como a individualidade se vê e se ordena enquanto limite e relações, até como grupos e comunidades se projetam em crença e lócus. A História vem substituindo, via mídias e educação, os antigos papéis da Igreja, que era uma radical organização do tempo, mas mantendo o deus cristão invaginado como base onto-epistemológica. Daí porque a questão da verdade na História não está ligada ao “fato”, um constructo historiográfico, mas às redes sociais e como essas redes imaginárias se coisificam, determinando, dispondo, classificando, distribuindo, produzindo e consumindo o tempo: a História cria uma economia do tempo e o tempo enquanto economia.

         A verdade ou não, por exemplo, do holocausto judeu na segunda guerra realmente não está num primário “aconteceu” (seria aceitar o deus invaginado, o passado enquanto entidade imóvel em algum lugar), o que leva sempre a discussões sobre de haver ou não acontecido, mas nas forças sociais, ideológicas, políticas, éticas, teóricas, monumentológicas que fazem com que isso “tenha acontecido”, se mantenha acontecendo, tenha valor de acontecimento, de exemplum, e que, acima de tudo, respeitados as estruturas lógicas, “seja verdade”, se imponha como verdade, se disponha a se dar como realidade, isto é, como política e como saber.

         Desaparecendo as condições discursivas (daí porque a luta sobre esse “acontecido” ser tão importante) e sociais (questões de poder, de territorialidade, de política, de mercado) do “discurso holocausto”, independente de seu poder ético, ele deixa de existir e de significar, deixa de “haver acontecido” (o limite epistemológico de existência de algo é um círculo social de crença e prática). Daí porque seu fundamento não estar, nem deve estar no “fato”, mas nas conquistas epistémicas e sociais, nos discursos de resistência, para que o esquecimento de coisas essenciais para determinada forma de vida não impere. Daí a importância da liberdade de expressão (da parrhesia e do parresiata) não somente ser fundamental mas cada vez mais condição de sobrevivência contra ondas furiosas do centro do capital e seus governos: para que o horror não vença é preciso que a História deixe de ser estatal, oficial, museológica, mais realista que o rei: o realismo em História, assim como em Literatura, começa e termina na ideologia.

         A verdade em História advém de vários círculos de suporte e crença que se interpenetram e se confirmam entre si. A escrita dessa “verdade” não se faz sobre esses círculos, mas neles, com eles, para eles, sugando deles partes da sua própria certeza e objetividade, parte daquela “certeza íntima” que “sabe” com segurança que “realmente aconteceu”. Grande parte da “substância” da História advém dessa crença encadeada e sem consciência para seu funcionamento.

         Todos esses círculos são discursivos, mas fazem-se aparecer e sentir como reais (sociais, históricos, científicos, políticos, econômicos, gramaticais), externos, exatamente por sua condição discursiva de constituição do real, da percepção do real (por isso “são reais”, isto é, ecoam e significam para os indivíduos enquanto senso-comum, moral, ética, política e ciência: o “acontecido” ganha dimensão de imediato, podendo e exigindo serem usados). Esses discursos possuem mecanismos e artifícios internos que os fazem aparecerem como reflexos da “exterioridade” (banais artifícios ficcionais mas que fora do sabido ficcional tornam-se “representação do real”), no máximo discursos certos sobre algo. Sua condição discursiva e a discursividade desses próprios mecanismos e artifícios não aparece, mas, ao contrário, são escondidos e esquecidos. Daí porque esses discursos, principalmente a História, fazem parte das matrizes de formatação e educação dos indivíduos, das condições (fundações) ideológicas das redes imaginárias que fazem “a sociedade” pelo menos desde o século XIX num processo cada vez mais esponjoso e avassalador (a luta pela História enquanto não é uma luta disciplinar, mas a instauração e a substituição de uma rede discursiva por outra, de uma formatação por outra).

         Esses discursos não são “simples discursos”, narratividades inocentes (palavras, palavras, palavras), mas a forma como o tempo é formatado (em sentido amplo pelos devires da práxis): percebido ou não percebido, pensável ou não pensável; separado, incluído, excluído, atingido, manusear, classificado, ensinado, vivido; dados a uns, negados a outros; como se deixa manipular e como resiste; como nisto se torna mole e naquilo muito duro; como se deixa ou não se permite penetrar, como se politiza ou não; como povoam sonhos, desejos, devaneios, planos; aqui linear, ali circular, além fragmentado, acolá vazio; aqui trabalho, ali prazer, além consumo, acolá esperança; resistência, desordem, brinquedo, sexo; exploração, carnaval, ritual, festa, conversa, passatempo; escrita, discurso, crença.