UMA FEITICEIRA NO SÉCULO XX

 

 

NILZA MENEZES

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA - TJ-RO

cendoc@.gov.tj.com.br

 

SOBRE O TRABALHO

 

                Josepha Correia foi judicialmente acusada pela prática de feitiçaria na então Vila de Porto Velho, Estado do Amazonas, no ano de 1927, e a proposta deste trabalho é conhecermos um pouco dessa história por meio do processo judicial que ela sofreu.

                A justiça dos tempos modernos, somente em casos muito claros aborda a questão mística de frente. Muitas vezes, informações ligadas ao sobrenatural chegam aos processos, mas são ignoradas, como pode ser observado em autos em que vítimas ou testemunhas fazem alusões ao mundo espiritual. As informações são registradas nos depoimentos, porém não levadas em conta para o julgamento do processo.

                Essas observações são feitas em razão de pesquisa nos documentos do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia, onde foi encontrado o processo de Josepha. Analisamos processos dos anos de 1912 a 1980.

                As questões espirituais são tratadas como detalhes sem importância. Entre a justiça e a fé existe uma linha divisória e, mesmo assim, encontramos Cristo crucificado, de braços abertos enfeitando a maior parte das salas de júri e plenários dos Tribunais, principais salas de visitas dirigidas ao povo.

                Da observação de aproximadamente dois mil processos judiciais, encontramos somente cinco casos nos quais o sobrenatural se apresentou de forma explícita. Em outros casos em que aparecem informações sobre o assunto, elas são filtradas percebendo-se com o passar do tempo um maior distanciamento dos julgadores nos fatos ligados com o além.

                Em alguns processos, testemunhas ou partes fazem alusão à “macumba”, justificando ou atribuindo alguma atitude como fora do seu controle, como sobrenatural, porém não são levadas em consideração pelos julgadores.

                O processo de Josepha é uma exceção. Nele a questão da feitiçaria e da bruxaria é o assunto principal motivador do processo.

                Como anexo deste trabalho apresentamos a transcrição das principais peças do processo que foi instaurado contra Josefa, uma mulher qualificada como paraibana, viúva, com 48 anos de idade, que exercia a profissão de serviços domésticos.

                O processo está dividido em duas fases: a do inquérito policial e a da instrução em juízo. Após a argumentação da defesa, e alegações finais do Promotor de Justiça, foi proferida sentença pelo Juiz de Direito e, ao final, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça de Manaus. As principais peças do processo fazem parte como anexo.

                Além de tentarmos conhecer um pouco a feiticeira Josepha, do tempo e espaço em que ela se materializou, fazemos uma leitura do processo, buscando os significados das falas do delegado, do promotor, do juiz, das testemunhas e da ré Josefa.

                Pelo seu tempo e espaço acabamos por pensar que o processo dela é apenas uma ficção, e vamos acabar por perceber que realmente sua figura foi uma ficção construída por ela e por um grupo de pessoas que transitavam pela energia do desconhecido, do sobrenatural.

                Uma feiticeira no século XX traz a história da Josepha por intermédio de um processo criminal, buscando, além disso, entender algumas relações que permearam o discurso das pessoas envolvidas.

                Josepha foi uma feiticeira no século XX. Sua figura é deslocada, mas suas práticas naturais, ao compararmos Josepha com a feiticeira de Michelet. Suas práticas foram feitas pela sua própria natureza, cujo sentido é dado pela necessidade (Michelet, 1992).

 

A FEITIÇARIA

 

                As histórias sobre mulheres queimadas em fogueiras ou enforcadas povoam o imaginário popular: mulheres horrendas voando em vassouras, conhecedoras de particularidades da alma humana; seres capazes de entrar em contato com o sobrenatural, espaço delimitado pela cultura judaico-cristã como inacessível aos comuns.

                Há uma longa história das mulheres na terra. Do período paleolítico à era cristã observa-se uma inversão em que foi aumentando uma mentalidade sexual-culpada e dominadora (Campbell, 1997).

                Estar em contato com a espiritualidade, buscar alternativas de uma vida mais harmoniosa no planeta terra é estar voltado ao espaço denominado místico, em que algumas características utilizadas de forma muitas vezes lúdica podem ser classificadas como feitiçaria, sendo essa classificação um conceito que sofre de diversas interpretações (Nogueira, 1991).

                Sobre bruxaria e feitiçaria medieval, conforme observa Robert Mandrou em Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII, a história é escrita a partir de peças e fragmentos e esboçam uma imagem global, citando como trabalho que melhor apreende todo o assunto o Malleus Maleficarum de Jacques Sprenger. Ao abordar a posição da justiça sobre o assunto no século XVI e XVII, observa as divergências e como essa herança foi sendo transmitida (Mandrou, 1979).

                Aquilo que parece tão distante não foi desfeito com um passe de mágica, não foi desfeito como uma feitiçaria. Observam-se, ainda hoje, outras formas de julgamento e de castigos impostos a pessoas que fogem ao que é considerado normal.

                Ainda hoje, práticas idênticas às que outrora foram consideradas bruxarias são praticadas por pessoas que buscam com uma simpatia, uma benzedura, uma magia ou uma viagem ao mundo espiritual obter as respostas não encontradas no mundo material.

                De modo geral, diz-se que essas práticas hoje são aceitas, muito embora exista ainda um dispositivo no Código Penal Brasileiro em vigor condenando a prática com outros nomes, como charlatanismo e curandeirismo, encaixando-se algumas modalidades, se denunciadas pelas vítimas, de qualquer forma com vestimentas de fraude e observando a necessidade da existência de uma vítima para efetuar a denúncia e a materialidade do crime.

                As definições para práticas outrora consideradas bruxaria podem oferecer outros entendimentos. Aquilo que foi considerado bruxaria até o início do século XVIII hoje é praticado como magia, como alternativas, interação com a natureza e, conforme afirma Rose Marie Muraro, na apresentação do livro O Martelo das Feiticeiras, hoje a prática da bruxaria é um reinserção do feminino na História. As bruxas hoje são apenas figuras exóticas.

                Para algumas mulheres, ser bruxa nos dias atuais tem características lúdicas ou até mesmo de luta feminina. Ser bruxa é ter poder, conhecimento, coragem. Uma bruxinha não é uma bonequinha, tem algo mais que um corpinho bonito.

                Conforme frisado por Muraro, o século XX trouxe outro entendimento sobre bruxaria. De modo geral, aos poucos foram minimizadas as marcas da inquisição, sendo, hoje, apenas fatos que fazem parte da história. A própria forma lúdica como é colocada a questão da bruxaria hoje minimiza seus reais contornos, embora permaneça no imaginário popular como no falar de Cervantes: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, hay”.

                Apesar da mudança do ponto de vista, mulheres, ou mesmo homens que assumem postura de bruxos, são no mínimo consideradas pessoas exóticas, diferentes, portanto, embora de maneira lúdica, não deixam de ser excluídas. Causam curiosidade, são consultados, procurados, lidos, mas não deixam de ser punidos. Situar alguém à margem é uma arma, uma forma de punição desse tempo.

                Embora tenha existido o século XIX para separar o século XIII do XX, no pensamento popular mantiveram-se firmes crenças e preconceitos religiosos. Cem anos não foram suficientes para mudar o pensamento humano e o entendimento de poder queimar uma “bruxa”. Para cada momento histórico, fazendo uso das armas disponíveis, elas sempre foram punidas.

                Josepha, a feiticeira que apresentamos, foi processada e julgada pela justiça (formas de punição do seu tempo). Em que pese não ser o mesmo tempo, de serem outras as formas de punição, não quer dizer que também não tenham sido injustas e humilhantes. Acusada de feitiçaria, ela foi processada e julgada pela prática de uma magia. Foi denunciada (art. 157 do Código Penal da República), pela prática de um sortilégio em que buscava respostas para situações as quais o mundo prático não proporcionava leituras.

                A instrução do processo, composto de denúncia, despachos, depoimentos e, por fim, uma sentença, oferece uma visão do pensamento das pessoas e da justiça naquele momento. Proporcionam os documentos, observações quanto à situação da cidade que surgiu no começo do século com ares de modernidade, mas que, ao final da década de 20 oferecia aspectos de uma cidade de far west, após a invasão e abandono.

                Da análise do processo criminal, autuado após denúncia do Promotor de Justiça com base nos levantamentos feitos pelo Inquérito Policial, Josepha era uma dessas mulheres que possuía intimidades com o mundo do sobrenatural. Seu crime materialmente foi o de ter colocado uma cebola cortada em cruz debaixo da axila do cadáver de um homem a fim de descobrir quem o teria levado à morte através de feitiçaria. Seu crime possível seria o de assassinar o feiticeiro ou feiticeira que teria enfeitiçado o defunto.

                Ainda dentro da análise utilizada por Rose Mary Muraro sobre as questões estruturais utilizadas para enquadrar a feitiçaria, quanto às condições necessárias para a bruxaria, os métodos pelos quais se qualificam a feitiçaria e as medidas judiciais a serem tomadas, observamos que, no caso específico de Josefa essas orientações foram seguidas utilizando-se o promotor de justiça de raciocínio medieval na condução do processo.

                Josefa Correia ficou conhecida como Zefa Cebola em face do processo criminal sofrido. Ela foi acusada como feiticeira num tempo em que já não se acreditava existir feiticeiras, no entanto, na voz de Josepha, reconhecemos tantas feiticeiras.

                Ser acusada por feitiçaria ou bruxaria no século XX é algo inusitado. Não obstante o Código Penal prescrevesse pena a práticas mágicas, e ainda estivesse impregnada nas pessoas do senso comum a prática de séculos passados, no século da modernidade, aos homens da lei, já não se permitia tal comportamento ou entendimento por conta da concepção republicana que primava pela separação da Igreja do Estado.

                O comportamento do Delegado de Polícia e do Promotor de Justiça apresenta-se como de homens leigos, movidos por crenças ou por algum fato que não se mostrou claro no processo, ou ainda por algum subjetivismo, por isso este trabalho se propõe a resgatar essas falas para buscar seus significados ao tempo e lugar em que ocorreram.

 

A FEITICEIRA, SEU TEMPO E ESPAÇO

 

                Quando me deparei com o processo de Josepha, foram muitas as inquietações e perguntas. Após o primeiro momento, tomada pela curiosidade por ter encontrado um processo de feitiçaria, vieram indagações sobre as razões de ter sido uma mulher acusada por tal prática em pleno século XX.

                Busquei na memória as imagens que me foram transmitidas pela vida das mulheres chamadas de bruxas. Tentei imaginar Josefa, uma mulher de 40 anos, qualificada como paraibana, viúva, avó e procurei formatar sua aparência. Seria gorda, envelhecida e nariguda ou baixinha, pretinha, magrinha, sem dentes com a pele castigada pelo sol como cabe a uma nordestina sofrida e viajada.

                Josepha é uma peça documental. Um processo de menos de 100 páginas, datado do ano de 1927, na então vila de Porto Velho, que, na época, era composta do que sobrou do fracasso da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

                A voz de Josefa vem grafada pela mão do escrivão, ditada pelo delegado e pelo juiz. O advogado e o promotor de justiça parecem estar mais preocupados com suas próprias convicções religiosas ou algum outro motivo que estaria escondido no cotidiano da pequena vila; talvez a má fama de Josepha ou a concorrência profissional dela com outras pessoas que exerciam a mesma função, ou seja, benzedeira ou curandeira.

                Cabe aqui também a observação de que a atividade policial, às vezes, vai além da prisão de eventuais criminosos, tem pretensão maior, serve também para o exercício de amplo controle social (Fausto, 2000). O fato de ser Josepha pessoa que gozava de prestígio ou de má fama na pequena vila era natural que o delegado estivesse informado desses comentários e a instauração do processo ocorreu em razão de todo um clima já existente. Josepha gozava de fama, boa e ruim. Suas atividades, ao mesmo tempo em que ajudavam aos crédulos, incomodavam aos incrédulos.

                Todas as testemunhas foram inquiridas sobre a má reputação de Josepha. As testemunhas não foram contundentes nos seus depoimentos. O diz que diz que havia pelo bairro acabou ficando apenas como “fofocas”. Buscou o delegado demonstrar que esta perturbava a ordem da pequena vila, contudo no processo tudo acabou sendo registrado como fofocas de cidade pequena ou de pessoas do mesmo meio.

                Percebe-se que Josepha realmente era uma figura popular e que teve como função na sociedade do lugar o papel de benzedeira, rezadeira, enfim era uma mulher pública. O que existe de concreto sobre ela é o processo criminal que aqui vamos trabalhar. Observamos em conversas informais com antigos adeptos do Terreiro de Santa Bárbara, da qual faziam parte pessoas citadas no processo, como Jovita e Esperança Rita que na memória dos antigos membros da comunidade ela é lembrada como uma pessoa que tinha poderes sobrenaturais.

                Com o estudo do processo de Josepha ela será mais que uma lembrança folclórica de que se ouviu falar quando criança, pois o documento possibilita resgatar essa mulher e o pensamento de um grupo de pessoas de uma cidade sobre ela.

                Fica claro que o juiz ao proferir a sentença, fê-lo dentro da lei, fazendo uso da razão, no entanto, durante o desenrolar do procedimento percebe-se muito mais emoções, questículas pessoais e crenças nas atitudes das testemunhas e de outras autoridades envolvidas que tentaremos desvendar relendo as peças do processo e tentando saber mais sobre essa mulher que ainda é lembrada pelas histórias dos antigos.

                As pessoas que fizeram parte do processo de Josepha possuem características curiosas. Jovita era adepta do terreiro de mãe Esperança Rita, a primeira e mais famosa representante da religião afro no lugar. Comumente, pessoas praticantes da religião afro são identificadas como feiticeiros, e encontramos uma denúncia de feitiçaria contra uma mulher, ao que tudo indica não praticamente de candomblé ou umbanda e que tinha como principais testemunhas contra ela, os praticantes do candomblé.

                Isso não descaracteriza Josepha enquanto feiticeira, até mesmo porque o perfil dela está enquadrado nas práticas de feitiçaria européia, e serve para observarmos como os descendentes de negros, praticantes de religião de origem africana, possuíam entendimento preconceituoso com outras práticas, aos seus olhos diferentes.

                Vale observar as características pessoais das testemunhas. A exemplo de Josepha, que era paraibana, viúva, exercendo a profissão de serviços domésticos, analfabeta, com 48 anos de idade, também Adriana era paraibana, exercendo a função de serviços domésticos, analfabeta, com 42 anos de idade e ainda Jovita que também era analfabeta, natural do Maranhão, de serviços domésticos e tinha 47 anos de idade. Alexandrina, a viúva de Manuel, qualificada como solteira, tinha 38 anos, analfabeta e natural de Minas Gerais. As três mulheres envolvidas diretamente no fato possuem muitas identificações, quanto à idade, profissão e condição social.

                Antonio e Joaquim eram empregados da Prefeitura. Antonio estava diretamente ligado ao fato. Ele era o coveiro e amante de Adriana e foi a pedido dela que retirou a cebola da axila de Manuel, impedindo, assim, a consumação do intento de Josepha que era de fazer morrer o feiticeiro que o teria enfeitiçado, isto é, fazer justiça.

                José Octavio e Julio eram empregados da Empresa Madeira- Mamoré. Eram mais jovens, possuíam entre 22 e 36 anos, foram ouvidos apenas na fase policial, seus depoimentos foram dispensados em juízo. Em juízo, foram ouvidas apenas as mulheres, todas analfabetas e com a mesma faixa etária. Entre os homens, apenas o coveiro foi novamente inquirido e as testemunhas cujos depoimentos tinham contradição e traziam dúvidas quanto ao depoimento do coveiro deixaram de ter importância e foram ignorados. Ao ser interrogada, na polícia ela declarou seu nome, idade, origem, estado civil e profissão. Vivia no bairro Favela, que ficava nas proximidades do Mocambo onde morava Dona Esperança Rita e a irmandade religiosa de Santa Bárbara local onde funcionava o terreiro de práticas mina-nagô que tem uma importante trajetória na história de Porto Velho (Lima, 2000. Menezes, 1999).

                Vale dizer que as décadas de 20, 30, 40, 50 e 60, alcançando os anos 70, as práticas religiosas umbandistas, foram consideradas como bastante presentes em Porto Velho com a intensa atividade do terreiro de Santa Bárbara, assim como de outros terreiros, de  outras práticas e outras tradições ou nações. Isso pode ser observado no trabalho de Marco Antonio Teixeira, A Macumba em Porto Velho, estudo que apresenta a diversidade de casas e práticas cultuadas (Teixeira, 1994).

                Usamos o termo “umbandistas” de forma generalizada. As práticas religiosas do Terreiro de Santa Bárbara e seus sucessores são de tradição mina-nagô (Lima, 2000).

                Os nomes que figuram entre as testemunhas de acusação são familiares. Fazem parte dos nomes encontrados entre os conhecidos de Dona Esperança Rita, que era a líder religiosa do terreiro de Santa Bárbara no Bairro do Mocambo (Menezes, 1999). A própria Esperança Rita é citada no processo por uma testemunha como possível sabedora dos dotes bruxísticos de Josepha.

                Interessante observar que pessoas ligadas à Esperança Rita adeptos, freqüentadores ou conhecidos do terreiro de Santa Bárbara, portanto, no linguajar comum, macumbeiros, podendo ser reconhecidos como feiticeiros, embora não afirmem, dizem que o povo dizia que Josepha era feiticeira. A ré reconhece-se como benzedeira, rezadeira, assume o aprendizado e relacionamento com a magia, embora negue a sua prática para o mal, alegando que fazia uso apenas para ajudar pessoas.

                Apesar de não ter sido condenada, Josepha viu-se processada. Teve que comentar sobre atitudes pessoais de sua vida e ficou exposta nas audiências públicas como uma feiticeira que enterrava criancinhas no quintal de casa para depois usar os ossos para fazer malefícios. Ela acabou, no imaginário da época, envolvida nas artimanhas da magia, deparou-se com o ditado: o feitiço virou contra a feiticeira.

                A partir do fato ocorrido com Josepha, podemos adentrar a outras particularidades dos acontecimentos religiosos na cidade de Porto Velho naquele período.

                Desde o ano de 1914, é registrada a presença da “Macumba” em Porto Velho com a instalação do Terreiro de Santa Bárbara no bairro do Mocambo, ocorrendo cisões entre os adeptos, tendo por conseqüência ocorrido o surgimento de outras casas (Lima, 2000), no entanto vamos observar que as práticas utilizadas por Josepha se chocavam com as da casa de umbanda. Os adeptos do terreiro consideravam-na uma feiticeira e isso vamos poder perceber de forma clara ao separarmos as práticas de feitiçaria européia da religião de origem afro.

                E importante falarmos sobre o local do fato. No ano de 1927, a então Vila de Porto Velho era uma cidade abandonada após a decadência da borracha.

                Era uma cidade que podemos imaginar como pós-guerra, pós-vendaval, casa depois da festa. Todos os que tiveram condições; os que puderam, partiram, regressaram à origem. Sem os interesses econômicos da década anterior, a cidade tinha precária assistência médica e pouca era também a assistência da Igreja.

                Porto Velho surgiu no ano de 1907 com a construção da ferrovia. Antes era apenas um porto, um ponto onde algumas imagens podem remeter até um pequeno grupo vivendo provisoriamente. Surgiu em função da movimentação da ferrovia com bairros próprios para funcionários e trabalhadores da empresa e, conseqüentemente, com vilas (Favela, Mocambo, Triângulo) que foram surgindo com a massa dos excluídos, desempregados, aventureiros e que assim permaneceu até os anos 30 com a nacionalização da ferrovia que, mais tarde nos anos 40 foi escolhida como a capital do Território Federal do Guaporé.

                Durante oito décadas, esteve ligada à cidade de Guajará-Mirim, que até 1943 pertencia ao Mato Grosso, pela linha férrea e a Humaitá no Amazonas pelo rio Madeira. A vila de Porto Velho pertencia à época do fato ao Estado do Amazonas. Quando da criação do território parte de terras do Mato Grosso e parte do Amazonas formaram o Território Federal do Guaporé, mais tarde território Federal de Rondônia e, por fim, no ano de 1982, criou-se o Estado de Rondônia.

                Nos primeiros anos do século XX, quando da construção da estrada de ferro, o Estado ofereceu uma estrutura bastante presente, criando um atendimento judiciário com atendimento à população. Com o declínio da borracha, essa estrutura enfraqueceu. Ao final da década de 20, a Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira transfere-se para Guajará-mirim. A então vila de Porto Velho conta com o atendimento judiciário, sendo prestado pelo juiz da Comarca de Humaitá distante dois dias em viagem de barco.

                Conforme relatam os viajantes do período descrevem a vila viveu de forma muito intensa os seus primeiros tempos:

 

Porto Velho, então uma pequena vila, se viu da noite para o dia invadida por uma avalanche negra, que se exprimia num idioma incompreensível para os nativos. Vinham em busca do trabalho que lhes havia oferecido os agentes da companhia que os contratara em suas ilhas (Prado, p. 166).

Com a decadência da exploração da borracha e a falta de interesse das autoridades a vila acaba por oferecer uma imagem deprimente:

 

Uma avalancha ruidosa de mulheres de vida airada invadira aquela zona, onde igualmente acamparam e até 1920 foram vistas, notando-se entre elas as representantes das colônias as quais, em companhia de outros membros da família, ao perderam seus chefes, haviam sofrido as dolorosas contingências a que então o mau destino as arrastara, depois de inúteis tentativas de obter passagem para regressar aos antigos lares e que, voltando do porto desiludidas e vencidas, acabavam por aderir à bacanal desenfreada a que a desgraça as lançara irremediavelmente. (Prado, p. 167)

 

                Após essa imagem, a vila chegou ao final dos anos vinte como um lugar abandonado, um local de desesperança, propício para o surgimento da figura da feiticeira (Michelet, 1992).

                Vale lembrar que o bairro onde viviam algumas das testemunhas e a ré, denominado Bairro Favela, era vizinho ao Bairro Mocambo. Os dois bairros eram locais que abrigavam a classe trabalhadora, os pobres e desempregados. O processo informa que tanto a ré Josefa como Esperança Rita moravam no bairro da Favela. Conforme outros estudos realizados, Dona Esperança residia no bairro do Mocambo próximo ao bairro Favela. Possivelmente, as informações do processo são em face de os dois bairros ficarem próximos e, por isso, foram confundidos, ou de que tanto um como outro pudessem ser Favela e Mocambo em razão da característica dos seus habitantes. Essa confusão também foi percebida em historiadores regionais que, ao informar sobre o bairro do Mocambo referem-se como sendo o bairro Favela, talvez pelas mesmas observações, quanto à proximidade e característica dos moradores (Menezes, 1999).

                Dentro desse contexto, viviam trabalhadores da borracha, desempregados, viúvas e órfãos, aqueles que ficaram, que não puderam retornar à origem. Com a queda da borracha ocorreu o desinteresse econômico e político, ficando a região que compreendia os vales do Madeira e Mamoré em abandono, vindo a receber o contingente de trabalhadores na década de 40 quando houve o segundo ciclo da borracha.

 

LEITURA DAS PEÇAS DO PROCESSO

 

                O historiador Gustav Henningsen, ao escrever El abogado de las brujas, definiu a bruxaria como um crime impossível, sendo o papel da bruxa fictício, o que Laura de Mello e Souza explica dizendo que, assim, a existência das bruxas aparece quando elas são perseguidas, sendo a imagem estereotipada criada pelos caçadores de bruxas no corpo dos processos e, ao comentar a mudança dos discursos após o século XVIII na Europa, citando Ladurie, comenta que, mesmo após a racionalização do aparelho judiciário, idéias antigas ainda permaneceram, sendo comum em campos e aldeias a perseguição contra possíveis feiticeiros (Souza, 1995).

                Robert Mandrou, em Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII, questiona o comportamento dos julgadores nos casos de feitiçaria e busca respostas para a mudança ocorrida no século XVIII, observando que:

 

A delimitação exata que desqualifica o crime e o reduz pouco a pouco a simples delito cometido por escroques, charlatães ou ledores de boa sorte, fez-se lentamente, penosamente mesmo: na primeira metade do século XVIII, muitos polígrafos eruditos discutem ainda sobre todas as questões, pilhando Lancre, Boguet e Bodin, para demonstrar o erro dos magistrados; todavia, os falsos feiticeiros, charlatães e envenenadores, últimos herdeiros dos partidários de satã, não representam mais do que os traços diluídos de uma antiga tradição definitivamente renegada pela magistratura (Mandrou, 1979).

 

                Passando-se à época moderna, outras leituras levam ao entendimento de que a perseguição é feita contra a cultura popular, contra as tradições populares, como forma de expropriar esses saberes, uma luta entre a cultura erudita e a popular (Souza, 1995). 

                Essas observações encaixam-se perfeitamente no caso de Josepha. De certa maneira, ela foi prejudicada, sua imagem real foi abafada pela erudição. O raciocínio moderno do juiz vem colocar uma pedra por sobre a história. Para a razão, Josepha foi insignificante, seu crime impossível de ser, no entanto, no imaginário popular sua existência ficou registrada.

                Observamos que, ao perguntar aos mais velhos da comunidade de Santa Bárbara, Josepha é lembrada como uma pessoa que possuía poderes. Sobre ela contam-se histórias. Na memória dos adeptos do terreiro de Santa Bárbara, que ouviram falar por suas tias e avós, Josepha era uma mulher de poderes extraordinários. Em trabalho de campo, conforme informação de Dona Carmita, adepta do Terreiro de Santa Bárbara, em certa ocasião Josepha tocou com a mão em uma outra mulher com a qual não tinha boas relações, vindo a mulher a morrer logo em seguida.

                Na condução do processo, poderiam as autoridades ter dirigido os depoimentos de Josepha, pois ela era analfabeta. Poderíamos ainda lembrar as observações feitas por Boris Fausto em Crime e Cotidiano, sobre os procedimentos jurídicos quando diz que a voz do acusado no processo é uma voz limitada ou suprimida, (Fausto, 2001). Porém, nos dois momentos, em que foi inquirida, sua fala não apresenta insegurança. Seu depoimento no inquérito policial é mais longo, em juízo parece mais contida. Ela se assume enquanto o que disseram que era, não nega ter feito aquela prática e reconhece que sabia o que estava fazendo. Nega sua condição de feiticeira, mas tem consciência de sua condição de conhecedora de práticas mágicas, o que assume sem culpas ou medos. Principalmente medo, não se percebe aquele frio que corre a espinha dos réus em frente do delegado ou juiz. Não nega sua fé como ocorre às vezes com pessoas que fazem uso de práticas mágico-fetichistas com medo do preconceito.

                Josefa, ao contestar o depoimento de uma testemunha, defende-se da pecha de feiticeira, alegando que suas práticas buscavam apenas fazer o bem. A sua fala é de quem sabia o que estava fazendo. Suas atividades, inclusive atendendo a pessoas importantes da comunidade, são apresentadas de forma muito natural. Em parte do depoimento afirma:

 

que contestava o depoimento da testemunha na parte que diz que Adriana estava na casa do defunto; que de facto colocou a cebolla não para efeito de feitiçaria, mas para descobrir quem fizera mal a Manoel dos Santos ou Manoel Peias, porque a cebolla tem essa virtude de tirar maus habitos, descobrir factos ruins, e foi nessa intenção que ella collocou essa cebolla; que nunca fez isto e só agora o fez porque tem filhos e deseja o bem para todas as pessoas; que tem tratado muitos doentes aqui como, em casa do Snr Manoel ......, Julião Ruiz e em Manaos, como em Rio Branco tem muitas pessoas que conhecem a denunciada, não como feiticeira...

 

                Ela era analfabeta conforme consta da qualificação, mas a sua fala vem apossada das tantas vozes que a precederam. E apoderados da sua fala, do que ela teria afirmado na delegacia e em juízo está grafado: “pela ré foi dito que ella tem tratado os doentes com hervas, capim santo, capitim, mucuracá, etc”.

                Essas práticas faziam parte da natureza da mulher. Nascer fada e ser transformada em feiticeira é tendência própria da mulher e seu temperamento (Michelet, 1992).

                É da própria natureza feminina a relação com as práticas mágicas, e Josepha tinha clara essa natureza da feiticeira de Michelet. Sua fala deixa transparecer suas práticas e aprendizados sem culpas ou medos. Pensamos que na hora de grafar as palavras de Josepha, elas tenham passado pelo filtro seletivo do juiz, pelas interdições (Foucault, 1999), mas, mesmo assim, vem naturalmente quando ela diz:

 

...que de facto colocou a cebolla não para efeito de feitiçaria, mas para descobrir quem fizera mal a Manoel dos Santos ou Manoel Veras, porque a cebolla tem essa virtude de tirar maus habitos, descobrir factos ruins, e foi nessa intenção que ella collocou essa cebolla; que nunca fez isto e só agora o fez porque tem filhos e deseja o bem para todas as pessoas; que tem tratado muitos doentes aqui...

 

                Quando da denúncia, o Promotor Público baseou-se no relatório do Delegado de Polícia e nos depoimentos obtidos no inquérito policial. O crime de Josepha capitulado no artigo 157 do Código Penal da República, assim dizia:

 

                Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usando talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, incultar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar ou subjugar a credulidade pública: Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100 a 500.000 (réis).

 

                Josepha praticara sua magia fazendo uso de uma cebola, utensílio muito utilizado em práticas mágicas. Buscou um resultado, o de devolver a energia recebida, ou seja, faria morrer quem tivesse matado por feitiço a Manoel. Portanto, de acordo com o revisto na lei, não há dúvida de que ela estava perfeitamente enquadrada no possível crime e mais havia por finalidade com a sua ação a consumação de um outro crime: o de matar a pessoa que teria enfeitiçado Manoel. Assim, havia toda uma trama envolvendo tanto Josepha como Adriana e Jovita que passaram a interagir com a história fazendo parte da provocação da energia a que tudo se propunha.

                Para acusar Josepha, o Promotor de Justiça apega-se às palavras de Jovita que era membro de uma casa religiosa, de práticas também consideradas mágicas, o Terreiro de Santa Bárbara. Jovita é quem afirma que:

 

                Quando por occasião da inhumação de Manoel dos Santos, Jovita Rodrigues, que presenceara as manobras da feiticeira, solicitou ao coveiro de nome Antonio Gomes de Souza, para que retirasse a referida cebola do ataúde. Antonio attendeu á solicitação de Jovita e descendo á cova, abriu o caixão, retirando debaixo do braço do cadaver, a alludida cebola.

 

                Também e Jovita quem informa que: “... o povo diz que a ré é bruxeia ou feiticeira, mas ella testemunha não sabe quem disse”.

 

                A testemunha Adriana parece ser nos autos a pessoa mais interessada em prejudicar Josefa, parece até a pessoa que poderia ser prejudicada, caso a cebola surtisse os efeitos propostos pela ré. Ela é quem informa da má fama da ré e das pessoas que falavam que esta era feiticeira:

 

...que não sabe se a Ré faz feitiçaria, que certa gente da favella tem medo da ré, isso a testemunha sabe é por intermedio da Senhora Esperança Rita, de Juvita Rodrigues e outras pessoas residentes na favella, nesta Cidade.

 

                Nos depoimentos, as testemunhas sabem muito de ouvir dizer, mas não ousam afirmar. Seria por medo ou porque na verdade tudo não passava de fofoca de grupos. Uma das testemunhas diz:

 

... que conhece a acusada presente de vista; que não sabe se a Ré faz feitiçaria, que certa gente da favella tem medo da ré, isso a testemunha sabe é por intermedio da Senhora Esperança Rita, de Juvita Rodrigues e outras pessoas residentes na favella.

 

                Essas pessoas citadas, como Esperança Rita e Jovita Rodrigues, eram pessoas conhecidas na vila. Esperança Rita foi a primeira “mãe de santo”, foi quem trouxe de Codó no Maranhão para o lugar o primeiro terreiro, denominado Recreio de Iemanjá e, após, Santa Bárbara, de tradição Mina Nagô que funcionava na vila desde o ano de 1916 (Lima, 2000). Jovita era também adepta do referido terreiro, portanto acusar alguém por práticas mágicas não parece razoável. Poderia estar havendo rivalidades, intrigas, entre uma casa e outra, no caso a de Dona Esperança Rita que era a líder espiritual do Terreiro Santa Bárbara, e Josepha que, apesar de não estabelecida ou reconhecida enquanto líder espiritual era conhecida e reconhecida enquanto pessoa que praticava magias e, conforme ela mesma afirma em seu depoimento, aprendera na cidade de Manaus.

                Quanto à acusação de feitiçaria, o terreiro de Dona Esperança Rita também foi alvo de acusações e perseguido, conforme informa um colaborador em trabalho de pesquisa sobre o bairro do Mocambo:

 

A Dona Esperança tinha uma força enorme. Quando o barracão era aqui, eu tive a oportunidade de ver uma cena. O delegado, na época, mandou uns policiais para acabar com o terreiro, pois foi muito perseguido o povo do terreiro, alegavam feitiçaria, nunca conseguiu nada, mas reclamavam. (Chicorote. In: Com feitiço e com Fetiche. Nilza Menezes. UFPE. 1999).

 

                Chicorote, alcunha pela qual era conhecido Francisco Bezerra, narra ainda fatos ocorridos atribuídos a Dona Esperança, como o desaparecimento do Tenente Fernando, um militar que havia ofendido a mãe de santo e o terreiro e também o caso dos militares que queriam fazer parar o batuque e que foram possuídos por “entidades”, acabando por desmaiar de tanto dançar (Menezes, 1999).

                Atitudes como essas também são consideradas mágicas, portanto as pessoas que se disseram incomodadas com as atitudes de Josepha também poderiam ser enquadradas como feiticeiros.

                Nenhuma prova concreta, nenhum depoimento categórico afirmando ter visto ou de alguém que tenha sido lesado por Josepha, foi apresentada no processo. O único crime real contra ela era o fato de haver colocado uma cebola debaixo da axila do defunto com o intuito de se descobrir quem o havia enfeitiçado e levado à morte.

                Uma observação do advogado de Josepha deve ser levada em conta. Ele diz que os atos praticados pela ré eram sem importância, que ninguém, nem mesmo o defunto, deu importância à cebola colocada em sua axila. Isso não é verdade, uma vez que as pessoas tanto se incomodaram que provocaram a instauração do processo. Se realmente não tivessem sentido nenhum incômodo ou medo, não teriam dado importância. Tanto Adriana como Jovita, pelas atitudes tomadas, inclusive pedindo ao coveiro para retirar a cebola, demonstram que sentiram algum receio. 

                Foram apenas algumas poucas pessoas envolvidas no processo, mas, passados oitenta anos, na comunidade de Santa Bárbara, sua figura é lembrada como aquela que possuía poderes sobrenaturais. Não há dúvida de que as pessoas envolvidas diretamente, como Jovita, Adriana e o coveiro Antonio, temiam os poderes de Josepha uma vez que tomaram a providência de denunciar e de retirar a cebola, acreditando que seria descoberto o criminoso, o feiticeiro que havia enfeitiçado e levado à morte aquele homem. É interessante observar que as pessoas envolvidas em denunciar e providenciar a retirada da cebola eram ligadas a um terreiro, uma casa onde se praticava uma religião afro. Interessante também o fato de que Adriana, ao que tudo indica amiga ou bem conhecida de Jovita, foi quem mais ficou apavorada com o ato praticado por Josepha. Não teria ela feito trabalhos ou pedido trabalhos contra o defunto? Adriana e Jovita ficaram incomodadas e fizeram o possível para a magia não se completar. Jovita era do terreiro de candomblé de Dona Esperança Rita, poderia Adriana ter usado os serviços da casa?

                Se levarmos em consideração a finalidade da prática, ela se cumpriu. Josepha, ao colocar a cebola na axila do defunto, fé-lo dizendo que, assim que a cebola fosse inchando, a pessoa que tivesse causado mal a ele também incharia e morreria como ele, inchado. Podemos acreditar que Adriana, desesperada, tenha procurado as pessoas do terreiro e o coveiro para que a cebola fosse retirada e, assim, a pessoa que tivesse feito mal a Veras não viria a sofrer. Conforme declarações do coveiro, foram Adriana e Jovita quem o convenceram a praticar o ato. O interesse delas leva-nos a pensar que poderiam elas conhecer a pessoa que tinha enfeitiçado o falecido. Talvez a própria Adriana, tenha feito ou desejado coisas ruins ao falecido.

                A testemunha Octavio, na fase policial, diz ter visto Antonio retirar a cebola e colocar no bolso. Antonio diz ter jogado fora, que retirara a cebola a pedido de Adriana, que em todos os momentos teve a orientação e acompanhamento de Jovita. A cebola, objeto do crime, desapareceu. Teria Antonio entregado a cebola a Adriana e Jovita para que desmanchassem o feitiço?

                As relações que envolviam essas pessoas não aparecem no transcorrer do processo, mas todas elas estavam ligadas de alguma forma. Mesmo levando em consideração que na então pequena vila, ao ocorrer uma morte, todas as pessoas poderiam interessar-se e ter curiosidade em ver, até porque a morte causa comoção; e pessoas que nem mesmo conhecem o de cujus, costumam visitar, participar do velório e até mesmo envolver-se por solidariedade com a família do morto.

                A observação de Rimbaud é lembrada: “As feiticeiras jamais falam tudo que sabem e que nós ignoramos”. Nenhuma das testemunhas falou tudo que sabia. Era difícil fazer certas afirmações, até porque “a condição da feiticeira é fictícia, é uma criação mental, passa a existir a partir do momento em que se fala sobre elas, proliferam...” (apud: Souza, 1995).

                Não é só Josepha a ré do processo, a feiticeira. Todas as mulheres envolvidas são suspeitas, todas praticavam, de alguma forma, a magia. Esperança Rita, citada como sendo pessoa que conhecia os poderes maléficos da ré, era uma mãe de santo, a mais famosa do lugar, ocupou o cargo de primeira líder de práticas afros na localidade, permanece viva na memória dos adeptos depois de duas gerações.

                Adriana diz que ficou impressionada com a prática de Josepha. Tenta dar a entender um sentimento de preocupação, mas porque estaria ela preocupada, que interesse tinha nos desdobramentos, saberia ela quem era a pessoa que poderia vir a sofrer, caso surtisse efeito a magia de Josepha?

                Tanto o Delegado que autuou o inquérito policial como o Promotor de Justiça que ofereceu denúncia queriam provar que Josepha era uma pessoa maléfica à sociedade da vila, portadora de poderes sobrenaturais e de má índole. Eles possuíam o entendimento colocado por Mandrou ao observar os elementos constitutivos que levava no século XVI a histeria da caça às feiticeiras:

 

....baseava-se em crença cristã e estava fundada ao mesmo tempo sobre a tradição eclesiástica e sobre os inumeráveis exemplos de uma jurisprudência sem falhas; uma experiência visível, oferecida a todos, do processo judiciário que implica consenso fácil e todos os participantes, juízes, testemunhas e acusados; enfim e sobretudo sentenças e confissões, fogueiras confiscos, representando o julgamento de Deus e dos homens, a apresentar o melhor testemunho em favor do crime.

 

                Buscaram demonstrar que Josepha causava pânico, que as pessoas tinham medo dela e que não possuía conduta cristã. A esse respeito ouvimos outras histórias sobre Josepha. Ela tinha a fama de ser possuidora de poderes, tendo, segundo pessoas que dela ouviram falar sido dito de que apenas com o toque das mãos teria levado à morte uma mulher da qual não gostava. As testemunhas que fazem referência à energia do mal, do feitiço, do sobrenatural de Josepha fazem relação de que quem sabia dos poderes de Josepha era Dona Esperança Rita. Para efeito de entendimento geral e é importante repetir que mãe Esperança também era uma feiticeira, era a mãe de santo do terreiro de Santa Bárbara, e sobre ela pesa o caso da morte do tenente Fernando, episódio ocorrido em face de ter este furado os tambores do terreiro e mãe Esperança lançou sobre ele inúmeras ameaças e pragas, tendo este desaparecido misteriosamente na mata. Não seria isso também feitiço?  È uma pergunta que se faz, embora sem querer entrar no mérito de ter sido realmente mãe Esperança quem provocou o desaparecimento do tenente, até porque existem outras versões sobre o assunto, e não é esse o nosso objeto de pesquisa.

                Assim como sobre Josepha pesava a acusação ou mexericos de alguns ensandecidos, na maioria, pertencentes a outro grupo religioso da mesma linha, também sobre Dona Esperança Rita muito se falou na vila, sendo também perseguida em alguns momentos (Menezes, 1999).

                Poderiam ser apenas rixas entre terreiros, embora, como dito, não conste que Josepha fosse dona de terreiro ou coisa do gênero. Como ela mesma afirma efetuava tratamentos espirituais, fazia garrafadas, praticava, como observou o Promotor de Justiça, “manobras”. Suas práticas, ainda conforme Michelet, tinham como finalidade encontrar respostas e enganar os males. Josepha como feiticeira tomou forma no tempo da desesperança, vivendo em uma cidade pequena, uma vila, abandonada no meio da floresta amazônica.

                Em face dos comentários de populares ou de possíveis rixas de terreiros, é certo que Josepha realmente, embora para pequena parcela da população e de forma lúdica, era detentora de poderes sobrenaturais.

                Pela classificação de Laura de Mello e Souza, de que feiticeira é alguém que busca fazer o bem, sendo assim, Josepha era uma feiticeira (Souza, 1995). Ela afirma que queria apenas ajudar as pessoas, fazia uso de práticas aprendidas frente às dificuldades e momentos difíceis da vida. A morte é um desses momentos com o qual mantemos uma relação durante toda a vida e que nunca estamos preparados.

                O processo de Josepha não é único no período, muito embora seja onde a questão foi colocada de forma mais explícita. Na Comarca de Santo Antonio, na mesma década, encontramos processos em que o sobrenatural é colocado em questão. Em uma demanda entre dois comerciantes por questões econômicas, o incêndio de uma padaria é atribuído a práticas de bruxaria.

                Há também, do mesmo período, o caso da jovem que mantinha um relacionamento com um espanhol e que, em sessão espírita, o fato teria sido informado pelas “entidades”, acabando por tumultuar o processo e ser o réu absolvido.

                O caso da mulher de nome Delfina que, presa na cadeia pública de Guajará-Mirim no ano de 1931, denunciou o carcereiro por assédio sexual. Após as investigações, levou-se a acreditar que a ré era uma lunática obsedada envolvida em práticas mágicas, portanto pessoa a quem não se deveria dar crédito. O inquérito foi arquivado, e a ré continuou presa.

                Quer dizer que, no período, acusar alguém por práticas mágicas, alegar que uma mulher era feiticeira ou lunática poderia ser uma forma de justificar atos contra esta, e, por fim, alegar que esse tipo de fenômeno era de atribuição da psiquiatria, e não do juízo.

                A linguagem utilizada até o final da década de 20 é bruxedos, feitiços. A partir das décadas de 50 e 60, observa-se mudança da linguagem nos processos ao fazer referência às questões místicas: a palavras bruxaria ou feitiçaria são substituídas por macumba ou espiritismo.

                Os contatos de aprendizado de Josepha eram com as mulheres de Manaus, onde diz ter aprendido algumas práticas como a da cebola com outras mulheres que traziam na natureza a essência de feiticeiras como Josepha. Ela deixa transparecer a sua essência ao falar das suas práticas de maneira natural, seus aprendizados, suas intenções. Possivelmente, Josepha não fosse adepta do candomblé como as testemunhas Jovita ou esperança Rita que a consideravam uma feiticeira, mas as práticas de todos tinham os mesmos fins. No terreiro de Esperança Rita também se faziam curas com banhos de ervas e outras práticas nas chamadas mesas de cura (Lima, 2000).

                Apesar disso, voltamos a recordar Rimbaud, quando se refere a uma feiticeira diz: “que nunca nos contaria o que ela sabe e que nós ignoramos”. O que mais teria Josepha para nos contar que não conseguiram o juiz, o promotor e o delegado extrair da sua fala?

                Segundo informações de pessoas que dela ouviram falar, Josepha era possuidora de poderes sobrenaturais; era pessoa capaz de matar com apenas um toque de mão. Todo o desenrolar do processo deixa transparecer que, na Vila Josepha, era conhecida por seus poderes e práticas e que, digamos, sua fama, era de conhecimento da pequena população do lugar.

                Conforme definições antropológicas trazidas por Laura de Mello e Souza, “feiticeira é aquela que invoca forças maléficas e trabalha com elas e a bruxa é aquela que representa o próprio mal” (Souza, 1999). Assim, Josepha era uma feiticeira realmente, ela buscava, invocava forças do além para conseguir efeitos mágicos.

                Robert Mandrou define o feiticeiro como sendo uma criatura do Diabo através do pacto e diz que aquele que, na condição de mágico, conhece os segredos da natureza, as propriedades ocultas das plantas, dos metais e das pedras e que pode também produzir fenômenos admiráveis não é um feiticeiro, uma vez que ele não tem firmado o pacto com o Diabo renunciando a Deus. Para Mandou, a magia natural é diferenciada da magia adquirida.

                Muito embora ele diferencie pela prática e não pela designação, entendemos que, assim como Robert Mandrou, Laura de Mello e Souza entende que existem dois lados na feitiçaria.

                Em alguns momentos do processo foram usados termos como bruxedos, bruxaria, mas, ao final, acabamos por acreditar que Josepha era realmente uma feiticeira, uma mulher que pela sua natureza e pelas contingências, aprendera a transitar pelo mundo mágico (Michelet, 1992) como forma de preencher as falhas da razão.

                Pela extensão do processo que sofreu percebemos que ela foi inventada. O seu crime foi inventado dentro do próprio espaço da feitiçaria por pessoas que transitavam entre o mundo da razão e da emoção e tanto incomodou que o seu ato tomou a proporção de um processo judicial. Havia um clima propício à atitude da justiça. Do que se observa das falas das testemunhas ela era pessoa conhecida na pequena vila onde todas as pessoas se conheciam e tudo era comentado de boca a boca.    

                Vale perguntar qual era a percepção de Josepha sobre os fatos e a realidade local ou ainda sobre questões de bruxaria ou feitiçaria. Possivelmente nenhuma. Para ela, pessoa movida por fé cristã, ser feiticeira ou bruxa era abominável, suas práticas, no seu entender não são de feitiçaria ou bruxaria, são apenas aprendizados dos quais se lança mão em momento de necessidade.

                A definição de que a feiticeira é alguém que pratica atos mágicos, que mantém uma ligação com o sobrenatural fazendo contatos com o sobrenatural ou de que uma bruxa seria alguém que emana o próprio mal, não eram questões do entendimento dela. Praticar atos mágicos era como, no entender de Michelet, algo exatamente ligado à sua natureza, que fora aprendendo por necessidade de sobrevivência e relacionamento de uma camada chamada cultura popular, que quer dizer pertencer às classes subalternas ou excluídas.

                Josepfa fazia parte dessa classe, a subalterna-excluída. Era uma senhora, viúva, nordestina que trabalhava como empregada doméstica numa pequena vila, onde as oportunidades de trabalho eram bastante escassas. Aprender a fazer chás, banhos, simpatias era uma necessidade diária. Repassar e doar esses conhecimentos e práticas era uma atitude natural. Eles sempre foram assim transmitidos. Até mesmo beneficiar-se ou obter recompensas acabam por serem compreensíveis em razão da condição de necessidade da então ré.

                Quanto a sua percepção dos fatos, vale observar que ela era uma pessoa pertencente a um grupo excluído da sociedade, marginalizado pela condição social. Sua compreensão da estrutura do Estado era deformada e buscava com seus conhecimentos resolver seus próprios problemas. Para ela, Manuel havia falecido em razão de feitiçaria e possivelmente, dentro desse espaço lúdico das práticas com as quais convivia, sendo ela conhecedora das pessoas e suas atividades, talvez até tenha ouvido ou percebido algum comportamento por parte de Adriana e Jovita e por isso sabia que este tinha sofrido de interesse por parte delas de que viesse a adoecer, sofrer e até mesmo a morrer. Manoel de Veras era amasiado com Alexandrina, Adriana era amásia do coveiro Antonio. Josepha e Jovita eram viúvas.

                Todas as pessoas estavam envolvidas em relações liberais. Parece que havia entre Adriana e Jovita uma amizade, e, sendo Jovita praticante do Terreiro de Umbanda de Dona Esperança Rita, poderia ela, a pedido de Adriana ter feito um “trabalhinho” para que Manuel viesse a sofrer e até mesmo a morrer uma vez que preferiu unir-se a outra mulher. Josepha era amiga da mulher de Manuel e sabendo das possíveis atitudes de Adriana, resolveu ajudar do outro lado. Talvez Josepha até soubesse de muito mais, e não tenha dito.

                Rimbaud nos previniu contra elas alertando que elas jamais diriam tudo que sabem. É interessante observar que o pavor de Adriana e de Jovita era de que o feiticeiro que havia enfeitiçado Manuel pudesse vir a morrer. Com a retirada da cebola acreditou-se ter interferido no resultado. O medo foi tanto que superou o medo das conseqüências de tirar a cebola da axila do defunto. Seriam as conseqüências da consumação da magia maiores que a conseqüência de violar o cadáver? Vale perguntar o porquê de tanto interesse em impedir o resultado, e vale lembrar não só para Josepha, mas também para Adriana, Jovita e o coveiro Antonio a alerta feita por Rimbaud, de que uma feiticeira jamais noz diz tudo que sabe. Eles também não disseram tudo que sabiam. Antonio, o coveiro, foi um instrumento na mão das duas feiticeiras, Adriana e Jovita. Foi a pedido delas que executou o trabalho de retirada da cebola, por certo gostava muito de Adriana, que talvez gostasse de Manuel.

                A questão que deu origem ao processo foi o fato de, por acreditar que Manuel houvesse morrido por feitiço ter feito fez com que Josepha tentasse descobrir o autor do crime, praticando outro crime do qual foi acusada.

                Um fato não observado é o de que Josepha teria dito que, colocando a cebola na axila do defunto, o autor da feitiçaria iria aparecer, uma vez que, assim que o defunto baixasse a sepultura e a cebola inchasse, também morreria quem o teria matado. Seria esse o medo de Adriana que o tempo todo esteve incomodada com o risco? 

                Quanto à questão de diferenças entre feiticeira e bruxa, o que certamente não fizesse parte do entendimento de Josepha, e até porque afirmou em juízo que não era uma feiticeira, vez que apenas fazia remédios benzia e trabalhava para o bem, devemos lembrar que essa conceituação de bruxaria e feitiçaria não era do entendimento de Josepha. Ela não possuía esse entendimento conceitual e sobre ele encontramos algumas divergências.

                Para Laura de Mello e Souza, a feiticeira lida com o sobrenatural, a bruxa emana o mal (Souza, 1995). Para Carlos Roberto Figueiredo Nogueira existem controvérsias quanto à distinção (Nogueira, 1991). Para entendimento dos atos de Josepha, tomamos por base o conceito de Laura de Mello e Souza, e classificamos Josepha como uma feiticeira, uma vez que ela lidava com o sobrenatural. Não era ela mesma a fazer o mal, mas sabia como fazer com que essa energia fosse movimentada. Josepha era uma feiticeira que se encaixa naquela descrita por Michelet tanto por suas práticas como por suas necessidades.

                Tomamos a bruxa como aquela mulher que, fazendo uso de elementos masculinos como a liberdade de ir e vir através de uma vassoura, do chapéu, do nariz másculo, assumia o papel do homem frente a uma sociedade machista. A feiticeira de Michelet, ou ainda segundo a diferença oportunizada por Laura de Mello e Souza, é aquela que busca uma ligação com o espiritual e que trouxe esse dom dentro da sua natureza feminina (Souza, 1995). Portanto, ser feiticeira é algo feminino, mas de resistência. A mulher cumpre o seu papel de forma natural, por isso Josepha, que não sabia a diferença entre feiticeira e bruxa, negava sua condição de feiticeira, porque para ela essa palavra tinha significado de bruxa. Mas, sem dúvida Josepha era como tantas mulheres do seu tempo, de antes e depois dela, uma feiticeira.

                A palavra bruxedo é usada no processo diversas vezes. As perguntas do delegado, do promotor e do juiz buscam enquadrar Josepha enquanto feiticeira e bruxa. Misturam os conceitos e acabam por cair num crime impossível. Josepha não era uma bruxa, mas uma feiticeira e nem ela sabia disso.   

                As idéias, o pensamento de Josepha por meio dos autos é pouco conhecido. Pouco se sabe dela, afora suas informações de praxe no interrogatório, e as perguntas respondidas nos depoimentos na polícia e em juízo passam pelo processo de filtragem normal nesses procedimentos, em que a pessoa é inquirida e a autoridade dita ao escrivão as palavras do interrogado procurando manter um padrão de linguagem, de forma organizada e resumida. Josepha reconhece-se enquanto pessoa que buscava relacionar-se com o mundo espiritual e que fora aprendendo com outras mulheres as suas práticas.

                Ela só respondeu ao que perguntaram, na única vez em que pediu a palavra foi para contestar o depoimento de uma testemunha, o que demonstra que era corajosa. De qualquer forma, ela oferece todas as informações que queriam dela. Não nega suas práticas, embora não se reconheça como feiticeira em face do seu entendimento sobre o significado da palavra. Nega que tenha praticado magia negra, como o fato de usar ossinhos de crianças para praticar sortilégios. Ela está negando sua condição de bruxa, diz não ser feiticeira, até porque para ela a palavra tinha outro significado, não considerava como feitiçaria o fato de lidar com o mundo espiritual, preparar remédios e pequenos truques.

                Nossa definição de feiticeira, a partir das observações de Michelet, é lúdica, natural, desprovida de culpas ou pecados. Quando Josepha diz que praticava alguns atos, mas que não era feiticeira, colocou o seu pensamento sobre o peso que essa palavra tinha para ela. Ela era alguém que, como entendia Michelet, por sua própria natureza, possuía poderes sobrenaturais, conhecimento e dom para lidar com os espíritos. Como entendeu Gustav Heinegssen a sua condição de bruxa foi criada pela imaginação das pessoas envolvidas no crime e de uma posição incômoda da justiça que poderia ser apenas o de assustar Josepha, que não gozava de boa fama ou incomodava um grupo, o do terreiro de Santa Bárbara.

                É interessante observar como pessoas que exercem certas práticas têm sobre elas olhar preconceituoso. Seria Josepha realmente uma pessoa cujas práticas não eram lícitas ou suas atividades concorriam com outras pessoas, como Dona Esperança Rita, reconhecida e respeitada pelas autoridades locais. No terreiro de Dona Esperança também se registra práticas de cura e tratamento das pessoas, assim como rituais de Mina, de origem afro (Lima, 2000), no entanto as práticas de Josepha são entendidas como feitiçaria, coisas ruins. Conforme estudos já realizados, Dona Esperança também sofreu perseguições da Igreja e da polícia, não tendo nenhum fato tomado as proporções do crime de Josepha, o que justificamos pelo fato de a Mãe Esperança Rita ter melhor trânsito com pessoas da elite social, tendo uma  prática mais próxima das pajelanças amazônicas, além da sua submissão, mantendo em seu espaço religioso uma capela, realizando festas e ofertando parte da renda à Igreja Católica (Menezes, 1999).

                Josepha possuía uma tradição dentro das concepções européias de feitiçaria, diferenciadas das práticas trazidas da África. Na tradição das religiões afro e afro-brasileiro são os orixás e as entidades espirituais quem executam os trabalhos; na tradição européia, o papel da bruxa é exercido pela pessoa que com suas “manobras”, como definiu o delegado e o promotor de justiça, busca um resultado. Foi essa característica na sua prática que faz pesar sobre ela o olhar de Jovita. Conforme sua fala sobre o entendimento ou conhecimento de Dona Esperança Rita que era quem sabia sobre as práticas de Josepha, podemos entender como de pessoa que concorria com o terreiro dela ou de pessoa a qual ela considerava não preparada para trabalhos espirituais por não pertencer a um grupo ou comunidade onde são aplicados os ensinamentos.

                Josepha usava seus conhecimentos como forma de sobrevivência, de relacionar-se e até mesmo de existir. Colocar seus poderes e conhecimentos ao dispor dos outros vinha da sua própria natureza de interagir-se com o mundo a sua volta. Tirar proveito financeiro, ou moral ou até mesmo afirmar-se nas relações sociais eram conseqüências naturais, era uma mulher, definida na feiticeira de Michelet, que buscava enganar os males.

                Materialmente, o crime de Josepha foi o fato de ter colocado a cebola na axila do defunto: como frisou o advogado, o fato era sem importância, uma atitude cientificamente sem nenhuma conseqüência. Somente a crendice popular, a ignorância, poderia incomodar-se com a atitude. Para o promotor de justiça, as pessoas que tiveram conhecimento do fato acharam deram a entender nos seus depoimentos no processo judicial que acharam estranho colocar uma cebola debaixo do braço de um defunto e manifestaram curiosidade. Há no promotor de justiça a preocupação em punir Josepha, e, em razão do descabimento do processo naquele momento, resta-nos questionar os motivos que estariam influenciando para que isso ocorresse. Até que ponto as práticas de Josepha incomodavam realmente às pessoas, ou quais as convicções religiosas e formação cultural do delegado e do promotor de justiça. 

                A função dessa feiticeira na vila seria o de resolver males físicos e da alma. Josepha, assim como o benzedor João Roiz Palha, citado por Laura de Mello e Souza em O Diabo na Terra de Santa Cruz, assume práticas como algo que aprendera, que vira sendo feito pelos mais velhos e, assim, passou a praticar (Souza, 2000). As tradições dessas práticas são repassadas oralmente dos mais velhos para os mais novos. Pelos depoimentos de Josepha, percebe-se foi sua forma de aprendizado.

                Uma das questões da luta contra as feiticeiras foi a luta da ciência para se afirmar. A ciência questionava o espaço ocupado pelo saber popular, buscando destruir a figura da feiticeira que durante mil anos foi o único médico do povo (Michelet, 1992). Josepha, fazendo uso de “manobras” como definiu o delegado, tentou dar uma resposta que era de competência médica, que embora tenha atestado que Manoel faleceu em conseqüência de tétano, pode não ter deixado as pessoas próximas satisfeitas. Ela tentou ainda ocupar o local do delegado, o de fazer justiça, ela tinha por finalidade castigar aquele ou aquela que teria causado a morte de Manoel, e esse era o papel da polícia. O delegado agiu movido pela sua concepção cristã, era essa sua consciência. Ocorreu a denúncia, ele que, possivelmente, já conhecia a fama de Josepha não hesitou em instaurar o procedimento, mas ainda temos outra leitura para a sua atitude. A atitude de Josepha era a de punir o criminoso, papel de responsabilidade do delegado e ele pode ter-se sentido usurpado no seu papel pela feiticeira que oferecia a possibilidade de solucionar por meio da magia, aquilo que ele não tinha meios para solucionar.

 

CONCLUSÃO

 

                Vivendo no século XX, Josepha com suas práticas e sua postura foi, sem dúvida, uma feiticeira. Ao negar essa condição, ela estava negando não sua função, mas o peso da palavra.

                Na verdade, ela negou ser bruxa ou feiticeira porque a preocupação era demonstrar que não praticava o mal. Fazer morrer a quem tinha feito alguém morrer é a lei do retorno, função natural exercida por adeptos do mundo sobrenatural. Não é a pessoa quem faz, ela apenas organiza isso para a espiritualidade. É função da feiticeira estabelecer a relação com o mundo espiritual, inclusive fazendo pedidos, intercedendo junto aos espíritos para que eles ajam no mundo dos vivos fazendo justiças, punindo injustiças e realizando desejos. 

                As práticas, ou, como chamou o promotor de justiça nos autos, as “manobras” de Josepha são típicas da feiticeira de Michelet. Suas práticas são uma herança natural herdada pelas mulheres. Suas relações com o mundo lhe oportunizaram esses conhecimentos, e suas necessidades imediatas levaram-na a colocá-las em prática.

                Num mundo onde as pessoas desejam mal aos outros, é natural que a natureza lhe devolva aquilo que ele praticou. Não é a feiticeira, aqui Josepha, quem iria matar o feiticeiro que matou Manoel, mas a própria energia provocada pelo feiticeiro que matou Manoel voltaria fazendo justiça. A morte de Manoel, prematura, injustificada para as pessoas próximas a ele, apesar de atestada pelo médico como tétano, conforme relatório do Delegado de Polícia, precisava ser vingada, Josepha tinha a pretensão de dar respostas às falhas da estrutura da vila. O atendimento médico precário encontrava pela via do feitiço uma forma de castigar a um pretenso feiticeiro, ou feiticeira, que teria praticado um crime. Dentro desse espaço de Josepha, Adriana Jovita e de tantos outros que acabam por estar de alguma forma ou em algum momento excluídos, a solução é o estabelecimento de uma espécie de Estado paralelo. Tomam para si a necessidade de encontrar soluções médicas, policiais e de justiça.

                Sem uma resposta prática às angústias, a possibilidade de ver a maldade do mundo ser devolvida é o que proporciona essas atitudes, e Josepha sem dúvida foi movida pela necessidade de dar sentido (Michelet, 1992) aos acontecimentos num lugar cheio da desesperança, após o declínio econômico, vivendo no abandono.

                A feiticeira da vila de Porto Velho, no século XX, não era diferente das feiticeiras de Michelet nem das feiticeiras medievais. Sua existência foi criada pela necessidade de dar sentido aos acontecimentos e ainda por mentalidades diversas construídas por continuidades, reproduzindo o pensamento de um grupo de pessoas em um tempo e lugar.

 

DOCUMENTOS

 

                Transcrição de algumas peças do processo contra Josepha Correa, acusada pela prática de feitiçaria no ano de 1927 na vila de Porto Velho, Estado do Amazonas.

 

Denúncia

 

                O Promotor Publico desta comarca, usando das atribuições que a lei lhe confere, vem, perante V. Excia. Denunciar á Josepha Correia, com quarenta e oito annos de idade, viúva, natural do Estado da Parahyba, serviços domésticos, rezidente nesta cidade, pelo crime que passa a expor:

                No dia 17 de Agosto do corrente anno, tendo fallecido nesta cidade Manuel dos Santos, vulgarmente conhecido por Manuel das Veras, Josepha Correia, ao ter sciencia do ocorrido, immediatamente dirigio-se á casa do fallecido, e, alli, pedindo licença á amasia deste, de nome Maria Alexandrina dos Santos, collocoou uma cebola partida em cruz, na axila do braço direito do cadaver, que, segundo os seus sortilégios, tinha o merito de descobrir a pessoa que enfeitiçara, em vida, Manuel dos Santos, inchando essa pessoa, a proporção que se fosse inchando a cebola sob o braço do morto. Quando por occasião da inhumação de Manoel dos Santos, Jovita Rodrigues, que presenceara as manobras da feiticeira, solicitou ao coveiro de nome Antonio Gomes de Souza, para que retirasse a referida cebola do ataúde. Antonio attendeu á solicitação de Jovita e descendo á cova, abriu o caixão, retirando debaixo do braço do cadaver, a alludida cebola.

                A denunciada commetteu o crime previsto no Artigo 157 do Codigo Penal da Republica, pelo que offerece o Promotor Publico a presente denuncia, para o fim de, julgada provada, sêr a denunciada punida no medio das penas do referido artigo, por não terem concorrido cinscumstancias aggravantes.

                Assim, Requer a V. Excia. que, autoada esta, proceda-se aos demais termos da formação da culpa, inquirindo-se as testemunhas arroladas, as quaes devem sêr citadas para deporem no dia e hora designados, citada a denunciada e sciente esta Promotoria.

 

Rol de testemunhas

Antonio Gomes De Souza

Joaquim Francisco Dos Santos

Maria Alexandrina Dos Santos

José Antonio Da Costa

Octavio Bentes

Julio Teixeira Da Costa

Adriana Pereira Borges

Jovita Rodrigues

 

Porto Velho, 18 de outubro de 1927

Armando de Queiroz Teixeira

Promotor Publico

 

Declarações que faz Antonio Gomes de Souza

 

                Aos vinte cinco dias do mez de agosto do anno de mil novecentos evinte sete, nesta Delegacia de Policia do Muncipio de Porto Velho Estado do Amazonas, presente o cidadão raymund Octavio de Britto, Delegado de Policia, segundo suplente em exercício, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado, compareceu Antonio Gomes de Souza, com quarenta seis annos de idade completos, solteiro, natural do estado do ceara, trabalhador da firma da Prefeitura Municipal, sabendo lêr e escrever e residente nesta cidade. Aos costumes disse nada. Inquirido sobre o conteúdo da Portaria retro, respondeu: - que no dia dezesete (17) do corrente, esteve no Cemitério Municipal desta cidade, com o seu companheiro Joaquim Francisco dos Santos, procedendo o enterramento de Manoel dos Santos mais conhecido por “Manoel de Veras, cerca das dezeseis e meia horas; que ás quatorze emeia horas alli compareceram as senhoras Jovita Rodrigues dos Santos e a amasia do declarante de nome Adriana Pereira Borges, tendo a primeira das quaes pedido ao declarante que retirasse de debaixo da axila direita do cadáver de Manuel dos Santos uma cebolla que alli havia colocado a mulher de nome Josepha Corrêa, que a declarante lhe respondeu que se houvesse opportunidade attenderia o seu pedido; que effectivamente no acto de pórem o cadáver na sepultura o declarante desceu ao fundo da cova e abrindo o caixão e a camisa do cadáver, encontrou debaixo do braço direito uma cebolla aberta em cruz a qual metteu no bolso incontinenti; que além dos circunstantes que silenciaram sobre o acontecido, a mulher de nome Josepha Corrêa advertio o declarante de que devia ter deixado a cebolla no cadáver pela circunstancia de que alguém que alli ativesse posto houvesse interesse em saber qualquer circunstancia que se  prendesse a morte de Manoel dos Santos; que o declarante lançou em seguida para o lado de  fora da cerca do cemitério a cebolla em questão; que no dia seguinte foi o declarante procurado por Josepha Correa que lhe indagou quem o havia xxxxxxxxxxxxxx ou pedido para o declarante retirar a cebolla do braço do cadaver; que o declarante não quis naquela occasião declarar que  lhe havia pedido tal obsequio; eu dias depois foi novamente procurado por Josepha Corrêa, e desta vez, na propria casa do declarante aquela interrogou pela segunda vez sobre quem lhe tinha pedido tal favor, respondendo ter sido se sua livre expontanea vontade que havia aberto o caixão e que nelle encontrara a referida cebolla,; que porém, perante a autoridade que o interroga o declarante affirma ter attendido a mulher de nome Jovita Rodrigues dos Santos, para retirar do caixão funerário a já referenciada cebolla; que o declarante retirou a cebolla do cadáver vendo-á porta do cemitério, a mulher de nome Marcilia Braga que reside na casa de Maria Lopes dirigio se ate aquelle local e convidou-a para ir com elle retirar a cebolla em questão, respondendo-lhe ella que ao ia porque á semana passada havia visto um cadáver e que parecia a morte assombrada. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto que depois de lido e achado conforme, vai por todos assignados. Eu, João de Souza marinho, escrivão, o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio de Britto

Antonio Gomes de Souza              

João de Souza marinho

 

 

Declarações que faz Joaquim Francisco dos Santos

 

                Aos vinte dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e vinte sete, nesta Delegacia de Policia do município de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto, Delegado de Policia, segundo supplente em exercício, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado, compareceu Joaquim Francisco dos Santos, com cincoenta annos de idade, casado, natural do Estado do Ceara, trabalhador da firma da Prefeitura Municipal, não sabendo ler nem escrever e residente nesta cidade. Aos costumes disse nada. Inquirido sobre o conteúdo da Portaria retro, respondeu: - que no dia dezesete (17) do corrente, cerca das dezeseis e meia horas, no cemitério municipal desta cidade, do qual é o declarante coveiro, procedendo o enterramento do cadáver de Manoel dos Santos, vulgo “Manoel de Veras”, quando presenciou o seu companheiro Antonio Gomes de Souza, também coveiro, abrir o caixão em que se achava o cadáver e retirar debaixo do braço direito, na axila, uma cebolla dessas denominadas portuguesas, digo, axila do referido cadáver, uma cebolla dessas denominadas portuguesas, a qual se achava partida em quatro partes iguaes, ou em cruz; que Antonio Gomes mostrando a cebolla aos circunstantes seberam o procedimento de quem havia assim procedido com o cadáver; que nessa mesma occasião uma mulher residente na Favella, de nome Josepha Corrêa mais conhecida  por Josepha sorveteira, protestou contra a ação de Antonio Gomes ter retirado a cebolla dizendo que o mesmo em vida gostava muito de cebollas e que naturalmente, gostaria levar alguma  para a ultima viagem; que no sabado passado vinte (20) do corrente, na feira municipal a referida Josepha Corrêa encontrou comigo declarante e lhe perguntou quem havia mandado retirar a cebolla de debaixo do braço do cadáver, tendo o declarante respondido que ignorava; que nessa occasião Josepha Correa lhe declarara ter sido ella quem colocara a cebolla no cadaver a fim de fazer uma experiência; que o declarante no acto em que Antonio Gomes retirava a cebolla ter este aberto o peito da blusa do cadáver e retirado a referida cebolla parecendo ter algum conhecimento da existência della no cadaver e naquele local. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto que, depois de lido e achado conforme, vai por todos assignado, fazendo a rogo do declarante, pelo motivo já acima exposto, o cidadão Antonio Ferreira de Souza, que presente se achava e este auto lêu. Eu, João de Souza Marinho escrevi e assigno.

Raymundo Octavio di Britto

Antonio Ferreira de Souza João de Souza Marinho

 

                Aos vinte seis dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e vinte sete, nesta Delegacia de Policia do município de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto, Delegado de Policia, segundo supplente em exercício, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado, compareceu Maria Alexandrina dos Santos, com trinta oito annos de idade, solteira, naturalmdo estado de Minas Geraes, serviços  domésticos, não sabendo lêr nem escrever e residente nesta cidade, Aos costumes disse nada. Inquirida sobre o conteúdo da Portaria retro que ouvio ler, respondeu;- que era amasia do fallecido Manoel dos Santos, mais conhecido por “Manoel de Véras”; que por occasião da morte desse seu companheiro, ocorrida em dezesete (17) deste mez, achando-se o cadáver na sala, alli chegou a mulher de nome Josepha Corrêa que lhe disse; “dona da licença”, no que a declarante consentio; que vio Josepha abrir a blusa com que estava vestido o cadáver e colocar sob seu braço uma cebolla; que nessa occasião Josepha vendo a declarante admirarse daquella procedência disse a ella declarante que não para mal e simplesmente para uma experiência; que não assistio ao enterramento do cadáver e portanto nada póde declarar sobre o que se passou no Cemitério. E como nada mais disse nem lhe foi pertuntado, deu-se por findo este auto que depois de lido e achado conforme, vai por todos assignado, fazendo a rogo da declarante pelo motivo acima exposto o cidadão Amaro Ferreira da Rosa que presente se achava e este ouvio ler. Eu, João de Souza Marinho, escrivão o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio Britto     

Amaro Ferreira da Rosa

João de Souza Marinho

Declarações que faz Jose Antonio da Costa

 

                Aos vinte seis dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e vinte sete, nesta Delegacia de Policia do municipio de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto, Delegado em exercicio, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado, compareceu Jose Antonio da Costa, com trinta seis annos de idade, solteiro, natural do Estado do Rio grande do Norte, guarda da Madeira Mamore Railway Company, sabendo ler e escrever e residente nesta cidade. Inquirido sobre o conteúdo da Portaria retro respondeu;- que no dia dezesete (17) deste mez, acompanhou o cadáver de Manoel dos Santos, vulgo Manoel de Véras, e teve occasião de ver o coveiro de nome Antonio Gomes de Souza abrir o caixão em que estava o cadáver e retirar de debaixo do braço deste uma cebolla partida em cruz: que nessa occasião perguntou ao referido coveiro o declarante o que significava aquilo que o coveiro lhe respondeu que sabia existir alli aquela cebolla e que havia tirado, sem contudo declarar quem fôra a pessoa que lhe informára; que no dia seguinte cerca das nove horas foi procurado pela mulher de nome Josepha Corrêa, vulgo Josepha sorveteira, que lhe declarou haver sido ella quem colocára a referida cebolla no braço do cadáver em companhia da amasia do fallecido com o fim de descobir quem havia botado feitiço em Manoel de Véra, de que procedeu sua morte; que Josepha disse mais que haveria de saber quem mandara tirar a cebolla; que na sua opinião era justamente a pessoa que havia botado o feitiço; que na occasião em que o coveiro tirara a cebolla Josepha estava no Cemitério e disse que havia posto as velas, para nada mais disse mesma. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo esse auto que, depois de lido e achado conforme, vai por todos assignado. Eu João de Souza Marinho, escrivão, o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio di Britto

Jose Antonio Costa

João de Souza Marinho

Declarações feitas por Octavio Bentes

 

                Aos vinte seis dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e vinte sete, nesta Delegacia de Policia do município de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto, Delegado de Policia, segundo suplente em exercício, commigo escrivão abaixo declarado compareceu Octavio Bentes, com vinte dois annos de idade, solteiro, natural deste estado, guarda da Madeira Mamore Railway Comapny, sabendo ler e escrever e residente nesta cidade. Aos costumes disse nada. Inquirido sobre o conteúdo da Portaria retro que ouvio lêr respondeu;- que teve occasião de quando do enterro de Manuel dos Santos, mais conhecido por Manuel de Véras, , covei, digo, Veras, de ver o coveiro de nome Antonio Gomes abrir o caixão em que ia o cadáver e retirar da axila direita do mesmo uma cebolla cortada em forma de cruz e bota-la no bolso de sua blusa; que tanto o declarante como os demais cinrcunstantes interrogaram o referido coveiro inquirindo a causa daquele procedimento e como tinha elle conhecimento que alli existia aquela cebolla; que elle respondera simplesmente que sabia; que o declarante nada mais sabe a respeito desse facto. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto, que depois de lido e achado conforme, vai por todos assignado. Eu, João de Souza Marinho, escrivão,o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio Britto

Octavio Bentes

João de Souza Marinho

 

                Declarações que faz Julio Teixeira da Costa.

                Aos vinte seis dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e vinte sete, nesta Delegacia de Policia do município de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto, Delegado de Policia, segundo supplente em exercício, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado, compareceu Julio Teixeira da Costa, com trinta quatro annos de idade, casado, natural do Rio Grande do Norte, carpinteiro, sabendo ler e escrever e residente nesta cidade. Aos costumes disse nada. Inquirido sobre o conteúdo da Portaria retro que ouvio ler, respondeu:- que por occasião do enterro do cadáver de Manoel dos Santos, vulgo Manoel de Véras, ocorrido no dia dezesete (17) deste, cerca das dezesete horas, teve occasião de vêr o coveiro de nome Antonio Gomes de Souza, abrir o caixão  em que se achava o cadáver e retirar de debaixo do braço deste uma cebolla cortada em quatro partes iguaes; que o declarante indagou do coveiro o siginificado da existência daquella cebolla alli, e como sabia elle dessa existência; que o mesmo coveiro nada lhe respondeu, limitando-se a rir-se; que não tem certeza quem tenha sido autor deste facto; que lhe parece sacrilejo, ouvindo apenas comentar-se que fora botada a referida cebolla por Josepha Correa, mais conhecida por Josepha sorveteira e mandada retirar por Juvita de tal. E como nada mais nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto que depois de lido e achado conforme, vai por todos assignado. Eu, João de Souza Marinho, escrivão, o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio Britto

Julio Teixeira da Costa

João de Souza Marinho

 

                Declarações que faz Adriana Pereira Borges

                Aos vinte seis dias do mez de agosto do ano de mil novecentos e vinte sete, nesta Delegacia de Polícia do município de Porto Velho, Estado do Amazonas presentes o escrivão Raymundo Octavio de Britto, delegado de polícia segundo suplente em exercício comigo escrivão de seu cargo abaixo declarado compareceu Adriana Pereira Borges, com quarenta e dois anos de idade, solteira, natural do estado da Parayba do Norte, não sabendo ler nem escrever e residente nesta cidade e de serviços domésticos. Aos costumes disse nada. Inquirida sobre o conteúdo da Portaria retro que ouviu ler respondeu: que por occasião da morte de Manoel dos Santos, vulgarmente conhecido por “Manoel de Veras” teve a declarante a oportunidade de ver a mulher de nome Josepha Correa collocar sobre o braço direito do cadáver uma cebolla; que a declarante bem como sua comadre de nome Jovita de tal, assistiram a esse serviço praticado por Josepha sem saberem contudo qual o effeito que deveria produzir; que a declarante  conhecendo entretanto a fama de feiticeira que tem Josepha Correa, pedio ao seu amasio Antonio Gomes de Souza, coveiro do cemitério desta cidade que por ocasião do enterramento do cadáver tirasse a cebolla, visto como pensava ela declarante que a mesma não tinha sido alli posta com boas intenções; que no ato do enterramento do cadáver Antonio Gomes abriu o caixão e retirou effectivamente a cebolla.; que  a declarante vio a mulher Josepha Correia empalidecer e ficar  aborrecida pelo acto, porém, aguardaria nova opportunidade e que dessa vez seria bem sucedido; que a declarante vio a cebolla em questão cortada em forma de cruz e afirma que a gallinha pertencente a dona Margarida de  tal, comeu da referida cebolla, morrendo em seguida; que a declarante sabe que Josepha Correia tem dito abertamente que procura saber quem mandou retirar a cebolla e que, em sabendo fará muita gente em Porto Velho chorar, dando a entender  com isso, que pretende empregar as bruxarias em que é useira e vezeira; que a declarante acredita piamente em que Josepha possa (..................................................) dessa natureza; que não tem inimizade pessoal com Josepha Correa, como (.................) foi das primeiras a ver esta colocando a cebolla sob o braço do cadáver, e diante das ameaças que ela profere sentiu se intimida. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto que, depois de lido e achado conforme, vai por todos assignado, fazendo a rogo da declarante pelo motivo já acima exposto, o cidadão Leopoldo Gonzáles, que presente se achava ouvio ler. Eu, João de Souza Marinho escrivão, o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio Britto

Lopoldo Gonzales

João de Souza Marinho

 

                Declarações de Josepha Correa no inquérito policial.

                Aos vinte sete dias do mez de agosto do anno de mil novecentos e vinte e sete, nesta delegacia de policia do municipio de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto, delegado de policia, segundo supplente em exercicio, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado compareceu Josepha Correa, com quarenta e oito anos de idade, viuva, natural do Estado da Parahyba do Norte, serviços domesticos, não sabendo lêr nem escrever e residente nesta cidade. Aos costumes disse nada. Inquirida sobre o conteudo da Portaria retro que ouviu lêr, respondeu:- que no dia dezesete (17) do corrente, foi á casa de Manoel de Veras e constatou que o mesmo se achava em estado melindroso, apesar de um ferimento que ele tinha no pé esquerdo não demonstrar gravidade; que a declarante suspeitando que a molestia de Manoel de Veras era de natureza differente das doenças normaes, pensou consigo mesma fazer uma experiência no caso de fallecimento de Veras; que effectivamente ás dezenove e meia horas do mesmo dia falleceu Manoel de Veias e a declarante tendo disso sciencia, munio-se de uma cebolla e dirigiu-se para á casa do fallecido; que alli chegando pedio licença á amasia do finado Veias, de nome Maria Alexandrina das Sansões a qual lhe a permittio; que em seguida a declarante partio a cebolla em forma de cruz e a collocou debaixo do braço direito do cadaver na certeza de que, caso veias tivesse fallecido por feitiçaria, antes do seu enterramento, quem lhe houvesse feito mal, se manifestaria no sentido de retirar a cebolla; que effectivamente no dia dezesete, por occasião do enterro, achando-se a declarante no Cemiterio, vio o coveiro de nome Antonio Gomes de Souza abrir o caixão e retirar a dita cebolla; que nessa ocasião a declarante perguntou ao aludido coveiro quem lhe havia pedido para retirar a cebolla, tendo este se negado a declarar; que no dia seguinte interrogou novamente o coveiro Antonio sobre quem lhe havia pedido para tirar a cebolla, havendo a o mesmo declarado que havia  sido uma mulher e que logo lhe diria o nome della; que a declarante quando residente em Manaós, teve occasião de ver ser applicada uma cebolla cortada da forma retro mencionada, debaixo do braço de uma senhora, cuja morte fôra atestada por um clinico, como sendo a dor, vulgarmente chamada dor de mulher; que no entanto uma paraense velha que alli esta presente  desconfiando que a mesma senhora havia morrido por motivo de bruxaria, pedio para fazer experiencia da cebolla, declarando que a proporção que a cebolla fosse inchando sob o braço do cadaver a pessoa que o havia enfeitiçado, iria também por sua vez inchando, o que a declarante porquanto presenciou a e não effeito dessa applicação; que esta pessôa tempos depois declarara haver sido quem botara o feitiço na senhora que morrêra;  que a declarante obteria o mesmo resultado, se não sedesse o facto de terem descoberto a cebolla e a sua retirada em seguida; que a declarante teve occasião, quando da molestia de Manoel de Veias de preparar para uso do mesmo “psipioca” ralada e misturada em agua, tendo entretanto Maria Alexandrina das Sansões amasia do mesmo lhe dito que Manoel de Veras não bebera o remedio que a declarante preparára; que nenhum outro remedio ensinou nem applicou; que  sobre o caso de haver a declarante enterrado no quintal de sua casa  um seu netinho “nati-morto’, foi pelo facto de haver nascido (....) e achar-se em decomposição; que a declarante affirma não ter feito esse enterramento com o intuito de axchumar o cadaver para com seus ossos fazer applicações de bruxêdos ou feitiçaria como se propala. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto, que depois de lido e achado conforme vai por todos assignado, fazendo a rogo da declarante pelo motivo acima exposto, o cidadão José Addonso Junior, que presente se achava e este ouvio lêr. Eu, João de Souza Marinho.  Escrivão o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio Britto

José Affonso Junior

Joao de Souza Marinho

 

                Declarações que faz Jovita Rodrigues

                Aos vinte nove dias do mez de agosto do anno de mil novecentos vinte sete, nesta Delegacia de Policia do município de Porto Velho, Estado do Amazonas, presente o cidadão Raymundo Octavio de Britto Delegado de Policia, segundo supplente em exercício, commigo escrivão de seu cargo abaixo declarado compareceu Jovita Rodrigues com quarenta sete annos de idade, viúva, natural do estado do Maranhão, serviços domésticos, não sabendo ler nem escrever e residente nesta cidade. Aos costumes disse nada. Inquirida sobre o conteúdo da Portaria retro que ouvio ler, respondeu: - que viu Josepha Correa collocar uma cebolla debaixo do braço direito do cadáver de Manoel dos Santos, mais conhecido por Manoel de Véras; que nada disse nessa ocasião e que também não foi ao cemitério pedir ao coveiro para retirar a cebolla do braço do cadáver; que nenhuma intervenção teve nesse sentido, desconhecendo também qual o effeito que poderia produzir a cebolla colocada no cadáver. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto que, depois de lido e achado conforme vai por todos assignado, fazendo a rogo da declarante pelo motivo acima exposto, o cidadão João Rocha que presente se achava e este ouvio lêr. Eu, João de Souza marinho, escrivão, o escrevi e assigno.

Raymundo Octavio Britto

João Rocha

João de Souza Marinho

 

Relatório

 

                Da leitura do presente inquerito, a que procedi ex-officio, se verifica que a mulher de nome Josepha Corrêa, alcunhada de “Josepha Sorveteira” procurou por meios illegaes descobrir, conforme diz ella, a causa da morte de Manoel dos Santos, mais conhecido por Manoel das Veras, que falecera na noite de desesete do mez findante, segundo consta ter o medico de Candelaria, Hospital da Madeira Mamoré Railway Cº, attestado ser tétato.

                Declara em seu depoimento Josepha Corrêa que suspeitou ter sido Manoel dos Santos victimado por feitiçaria, e para descobrir o autor desse crime procurou os meios de que dispõe, applicando sob o braço direito do cadaver uma cebolla, partida em quatro partes iguaes, ou seja em forma de cruz, cuja applicação ella affirma ter a virtude de fazer com a pessôa, digo, com que o autor dessa pajelança soffra as consequencias de sua má acção.

                Estas consequencias, diz ainda Josepha Corrêa, consistem em fazer que a pessôa que applicou a feitiçaria, comece em seguida ao enterramento do cadaver a inchar, á proporção que a cebolla vai inchando e apodrecendo com o referido cadaver.

                As varias testemunhas affirmam ter visto Josepha Corrêa collocar a cebolla, e outras que viram o coveiro a retirar de dentro do caixão mortuario, estão todas de accordo com as declarações da mencionada Josepha, de maneira que o depoimento desta se transforma, assim, em uma confissão do crime que quis praticar.

                Sendo esta mulher geralmente accusada de tratar doentes com pagelanças, e como seja este modo de curar, prohibido por lei, determino ao Sr. Escrivão que remetta estes autos ao Sr. Dr. Promotor de Justiça da Comarca, por intermedio do meritissimo Juiz de Direito.

                Porto Velho, 31 de Agosto di 1927

                Raymundo Octavio di Britto- Delegado di Policia Em Exercicio

 

Auto de qualificação da ré

 

                Aos vinte dias do mes de Outubro do anno de mil novecentos e vinte sete, nesta cidade de Porto Velho, Estado do Amazonas, ás nove horas, em cartorio deste Juizo, presente o Exmo. Senhor Doutor Arthur Virgilio do Carmo Ribeiro, MM. Juiz de Direito, comigo escrivão interino abaixo nomeado, compareceu a ré Josepha Corrêa que foi qualificada pela forma que se segue: - perguntada, qual o seu nome, filiação, edade, estado civil, profissão e naturalidade, residencia e se sabe ler e escrever? – respondeu: - chama-se Josepha Corrêa, filha de Sabino Clementino do Rosario, com quarenta sete annos de idade, viúva,.serviços domesticos, natural do Estado da Parahyba do Norte, residente nesta Cidade, não sabendo ler nem escrever. E nada mais foi perguntado a dita ré, deu o Juiz por finda a qualificação, cujo auto, depois de lido e achado conforme, vai rubricado pelo Juiz e assinado, e por José Alfonso da Rosa, a rogo do ré que declarava não saber ler nem escrever. Arthur Virgilio do Carmo

(José Afonso da Rosa).

1ª Testemunha

(Depoimentos prestados em Juízo)

 

                Antonio Gomes de Souza, com quarenta seis annos de idade, solteiro, trabalhador rural, residente nesta cidade, aos costumes disse nada, prometteu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado e sendo inquirido sobre a denuncia que ouviu ler respondeu: que no dia mês e anno de que trata a denuncia elle testemunha que era trabalhador nesse4 tempo da Intendencia, foi abrir a sepultura para enterramento de Manoel de Veras , pessoa sua conhecida, que estava abrindo sua sepultura no Cemiterio Público desta Cidade, em companhia de Joaquim dos Santos, também  trabalhador da Intendencia Municipal quando chegaram Jovita Rodrigues e Adriana Pereira Borges, pedindo esta a elle testemunha que tirasse uma cebolla que o cadaver de Manoel de Peias, trazia debaixo do braço direito, que assim havia sido colocada por Josepha Corrêa na casa do finado, que não referia a testemunha a data desse facto, nem disse também o fim ou efeito da cebolla embaixo do braço do cadaver; que Adriana Pereira Borges, não é parenta de Manuel Veras; que de facto elle testemunha que a tarde do referido dia, elle testemunha examinava o cadaver e encontrou a cebolla debaixo do braço direito do cadaver; que a cebolla estava partida em cruz e elle testemunha jogou-a fora e fez-se então o enterramento do cadaver; que Manoel de Veras.era o nome porque era conhecido Manoel dos Santos, Dada a palavra ao Doutro Promotor Público ás perguntas requeridas respondeu: que na ocasião em que Adriana Pereira fizera a elle testemunha o pedido a que já se referia, estava presente a denunciada que disse que aquella cebolla sob o braço do cadaver não significava nada; que servia para evitar que bebesse cachaça e tomasse porre uma pessoa parente de quem botasse a cebolla; que no dia seguinte a denunciada perguntou a elle testemunha quem havia pedido para tirar a cebolla; que elle testemunha não disse quem lhe fisera esse pedido, declarando a denunciada que tinha sido ella quem havia collocado a dita cebolla. Dada a palavra a ré por esta foi dito que contestava o depoimento da testemunha na parte que diz que Adriana estava na casa do defunto; que de facto colocou a cebolla não para efeito de feitiçaria, mas para descobrir que fizera mal a Manoel dos Santos ou Manoel Peias, porque a cebolla tem essa virtude de tirar maus habitos, descobrir factos ruins, e foi nessa intenção que ella collocou essa cebolla; que nunca fez isto e só agora o fez porque tem filhos e deseja o bem para todas as pessoas; que tem tratado muitos doentes aqui como, em casa do Snr Manoel Bluhm, Julião Ruiz e em Manaos, como em Rio Branco tem muitas pessoas que conhecem a denunciada, não como feiticeira e que algumas pessoas se encontram aqui como Capitão Marinho; Eucano Cantanhede, que por isso a denunciada nunca levou dinheiro; que pela testemunha foi dito que a referida sai depoimento na parte em que referiu o dito de Adriana, e que de facto de que trata a denuncia só sabe o que já referiu. Nada mais disse. Findo este Auto, digo ou findo este auto, lido pela testemunha foi dito que esta conforme e pela ré foi dito que ella tem tratado os doentes com hervas, capim santo, capitim, mucuracá, etc. E finado assim conforme designa Juiz testemunha e partes assignando a rogo da ré, José Affonso da Rosa, por aquella não saber ler nem escrever. (segue assinaturas).

 

2ª Testemunha

 

                Joaquim Francisco dos Santos, com cincoenta annos, casado, trabalhador da Intendencia Municipal, residente nesta cidade, não sabendo ler nem escrever, aos costumes nada disse, prometeu diser a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado e sendo inquirido sobre a denuncia que ouviu ler respondeu: que estava a cavar a sepultura no cemiterio desta cidade em data que não se recorda, para o enterramento de Manoel da Peias pessoa sua conhecida quando, digo pessoa sua conhecida como Antonio Gomes de Souza; que a tarde por ocasião do enterro sendo o caixão maior do que a cova tiveram que cavar mais; que feito isto, na ocasião que tinha de colocar o caixão na cova, elle testemunha ver quando Antonio Gomes de Souza abriu o caixão e tirou sob o braço direito do defunto uma cebolla cortada em cruz; que  Antonio Gomes de Souza mostrando a cebolla aos presente jogou a fora dizendo “ para que fazem uma coisa destas com o homem que já morreu”  que nessa ocasião a denunciada disse “ que o homem quando vivo gostava de comer cebola e agora morto levava a cebolla; que o guarda da Madeira Mamore José Antonio que acompanhou o enterro disse que se fosse autoridade prenderia Gomes de Souza, supondo que esse tivesse colocado a cebolla, mas que outro guarda cujo nome não sabe contestou, dizendo que viu quando Antonio Gomes de Souza retirou a cebolla debaixo do braço do cadaver; que conhece de vista a denunciada e não sabe se ella faz bruxaria com o intuito de enganar o povo. Dada a palavra ao Doutor Promotor Público por este nada foi requerido. Dada a palavra a ré: disse que contestava o depoimento da testemunha na parte que se refere a ter ella ré dito que o finado em vida gostava de cebolla, que isso ali levava para comer para onde fosse, pois quem disse isso foi o guarda Antonio, digo, José Antonio, e dá as mesmas razões que dei para sua defesa quando do depoimento da primeira testemunha. Pela testemunha foi dito que confirmava o seu depoimento pois ouviu a ré diser a que já referiu. Nada mais disse a testemunha. Findo este auto, lido foi dito pela testemunha que não sabe quem collocou a cebolla de baixo do braço direito do cadaver circunstancia que foi omittida, ficando assim conforme, assigna o Juiz, partes e testemunhas; assignando a rogo desta, Geraldo Peres Guerreiro, por não saber a mesma a ler e escrever, assasegamdo-se pelo mês, digo, escrever, assignando pelo mesmo motivo, a rogo da ré, o José Affonso da Rosa. Eu Guilherme Bessa, escrivão interino o escrevi (seguem assinaturas).

 

3ª Testemunha:

 

                Maria Alexandrina dos Santos, com trinta e oito annos de edade, solteira, serviços domésticos, residente nesta cidade, aos costumes disse nada, não sabendo ler nem escrever prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado e sendo inquirida sobre a denuncia e mais papeis que ouviu ler, responder: - Que no dia mês e anno que trata a denuncia em hora que não se recorda, a denunciada presente foi a casa della testemunha em terreno da Madeira Mamoré Railwai Company nesta cidade e pedir licença a ella testemunha para collocar uma cebolla para fazer experiencia a, digo, pediu licença para fazer um experiencia; que a denunciada presente tinha na mão uma cebolla, que a testemunha deu a licença pedida indagando se esta experiencia fasia mal ao cadaver de Manoel dos Santos, vulgo Manoel de Veras; que em seguida retirou-se ella testemunha, que era amasia do dito Manoel dos Santos ou Manoel de Veras – para o interior da casa e não viu  mais nada; que não sabe nem nunca ouviu fallar que denunciada presente fiesse curas para enganar a credulidade publica ou individual, nem sabe nem ouvir fallar que a denunciada presente fisesse curas para enganar a credulidade publica ou individual, nem sabe nem ouvir fallar que a denunciada fesesse uso de feitiçaria ou bruxaria. Dada a palavra a ré para contestar nada disse, digo ou bruxaria. Dada a palavra ao Dr. Promotor Publico nada requereu. Dada a palavra a ré para contestar, disse que não contestava o depoimento da testemunha; Pela testemunha foi dito ainda, que quando a denunciada foi a sua casa della testemunha, estava presente o cadaver de Manoel dos Santos ou Manoel de Veras. E, nada mais disse e ficando conforme o depoimento deu-se pór findo o mesmo, assignando o Juiz, o Promotor Público, assignando a rogo da testemunha por não saber ler nem escrever Antonio de Abreu Costa, e a rogo da ré, por não saber ler nem escrever Manoel Domingues Amazonas. Eu Guilherme Bessa, Escrivão interino o subscrevi (seguem assinaturas).

 

4ª-  Testemunha

 

                Jovita Rodrigues, com quarenta sete annos de idade, viuva, serviços domesticos, residente no perimetro da Madeira Mamoré Railway Company, nesta cidade. Aos costumes disse nada. Prometteu diser a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado e inquirida sobre a denuncia e mais papeis que ouviu lêr respondeu: que em agosto passado em data que não se recorda estava ella testemunha em casa de Manoel dos Santos vulgo Manoel Véras que havia fallecido quando viu a acusada presente colocar uma cebolla inteira debaixo do braço direito do cadaver de Veras; que não sabe para que effeito a ré colocou esta cebolla; que não sabe se a ré é feiticeira ou bruxeia; que conhece a ré há mais de anno e que o povo diz que a ré é bruxeia ou feiticeira, mas ella testemunha não sabe quem disse. Dada a palavra ao Dr. Promotor Público, á pergunta inquirida respondeu a testemunha, que não foi ao cemiterio; que ella testemunha não podia pedir lá no cemiterio ao coveiro Antonio Gomes de Souza para retirar a cebolla do cadaver. Dada a palavra a ré por esta foi dito que não contestava a testemunha e dá ás mesmas  razões de defesa que deu por ocasião do depoimento da 1ª testemunha. Nada mais disse  a testemunha, pelo que deu-se por findo este depoimento e que lido e achado conforme, assigna o Doutor Juiz e Dr. Promotor, assignando a rogo da ré por não saber ler nem escrever Manoel Arellano e a rogo da testemunha pelo mesmo motivo, Policarpo Bengifo. Eu Guilherme Bessa escrivão interino o escrevi (consta assinaturas).

 

5ª Testemunha

 

                Adriana Pereira Borges, com quarenta e dois anos de idade, solteira, serviços domesticos, residente nesta cidade, aos costumes disse nada, prometeu diser a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado, e sendo inquirida sobre a denuncia que ouviu ler respondeu: que no dia mês e anno de que trata a denuncia, a tarde, ella testemunha estava a velar o cadaver de Manoel dos Santos vulgo Manoel de Veras, a acusada presente collocou uma cebolla partida em cruz em baixo do braço direito do dito cadaver; que ella testemunha não saber para que effeito foi collocada esta cebolla; que conhece a acusada presente de vista; que não sabe se a Ré faz feitiçaria, que certa gente da favella tem medo da ré, isso a testemunha sabe é por intermedio da Senhora Esperança Rita, de Juvita Rodrigues e outras pessoas residentes na favella, nesta Cidade; que ella testemunha pediu ao coveiro Antonio Gomes de Sousa que é amasio della testemunha para retirar o cebolla do cadaver de Veras; que de facto Gomes de Souza tirou a cebolla e jogou no matto  e que a testemunha ficou impressionada com isso. Dada a palavra ao Doutor Promotor Publico nada foi requerido. Dada a palavra á ré por ella foi dito que contesta a testemunha na parte que dis que estava velando o cadaver e que viu ella ré collocar a cebolla. Pela testemunha foi dito que confirmava seu depoimento nesta parte. E nada mais disse pelo que deu-se por findo este depoimento que lido e achado conforme assigna a rogo da testemunha por não saber ler nem escrever o cidadão Manoel da Cunha Freitas e a rogo da ré pelo mesmo motivo, Policarpo Rengifo. Eu, Guilherme Bessa escrivão interino o escrevi. (seguem assinaturas).

 

Defesa da ré

 

                O ilustre sr. Dr. Promotor publico denunciou a accusada como incursa no artigo 157 do cod. Penal da Republica, pelo facto, como diz, de ter collocado “uma cebolla partida em cruz, na axila do braço direito do cadaver” de Manoel dos Santos.

                A denuncia basea-se do inquerito policial em que o sr. Delegado apesar do visivel intuito de perseguir a accusada e fazer contra ella uma atmosphera de odiosidade publica, reconhece no seu luminoso relatorio que houve apenas a intenção de praticar o crime, quando diz:

                As varias testemunhas que affirmam ter visto  Josepha Corrêa collocar a cebolla, e outras que viram o coveiro a retirar de dentro do caixão mortuario, estão todas de acordo com as declarações da mencionada Josepha, de maneira que o depoimento desta se transforma, assim, em uma confissão do crime que quis praticar.

                Sendo esta mulher geralmente accusada de tratar doentes com pajelanças, o como seja este modo de curar, prohibido por lei, determino ao sr. Escrivão que remetta estes autos ao Sr. Dr. Promotor de Justiça por intermedio do meritissimo Juiz de Direito (fls. 18)

                Cura maravilhosa seria a de um defuncto por pajelança!

                Como ela não se effectuou, houve uma intenção de perpetrar delito!

                O honrado representante do ministerio publico acha que a colocação de uma cebola debaixo do braço de um morto constitue delicto, que capitua no artigo 157 do cod. Penal, assim redigido:

 

                Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar curas de molestias curaveis ou incuraveis, enfim, para fascinar a subjugar a credulidade publica.

                Esse texto legal tem esta decomposição:

a pratica do espiritismo, da magia e seus sortilegios para os fins da letra B.

o uso de talismas, ou cartomancias para estes fins: 1º, despertar sentimento de odio ou amor; 2º inculcar cura ou molestias curaveis ou incuraveis; 3º fascinar e subjugar a credulidade publica.

                Vê-se pois, que o caso da cebolla, narrado na denuncia, não pode ser enquadrado no dispositivo transcripto.

                Não houve a utilização do espiritismo, magia e de seus sortilegios, de talismas e cartomancias. Nada disso ficou provado dos autos. O digno orgão do ministerio publico fala em sortilegios, na denuncia:

Sortilegio, s.m. Maleficio de feiticeiro// trama, conbinação, machinação; meio de fazer mal. (Candido de Figueiredo – Novo dicionario da Lingua Portuguesa, vol. II, pag. 554; Henrique Brunswick – Novo Dicionario da Lingua Portuguesa. Pag. 1.101).

                Não se fez a prova de que a denunciada seja feiticeira e nem que a collocação da cebola no defuncto constitua um meio de fazer mal. O uso da cebola não tem siginificação, não produz maleficio. O morto nem ligou importancia; nem o publico ficou fascinado e subjugado com tal pratica, absolutamente inoffensiva aos vivos e aos mortos.

                Não se tratando de crime previsto pelo legislador patrio, a accusada, em face do artigo 1º do Cod. Penal, confiada na integridade da justiça do meritissimo julgador, espera que seja julgada improcedente a denuncia de fls.2, condenando-se a municipalidade nas custas do processo como é de Direito,

                A rogo da accusada assigno esta defesa.   (assinatura)

                Porto Velho, 11 de novembro de 1927

                                Jose Affonso da Rosa

 

Alegações finais

 

                A Promotoria Publica, denunciou a Josépha Correia como incursa nas penas do art. 157 do Codigo Penal da republica, por têr, no dia 17 de Agosto do corrente anno, por ocasião do enterramento de Manoel dos Santos, vulgarmente conhecido por Manoel de Veras, collocado debaixo da axilla do braço direito do cadaver uma cebolla partida em cruz, que, segundo os seus sortilegios, tinha o merito de descobrir a pessoa que, em vida, enfeitiçara Manoel dos Santos, inchando essa pessoa, á proporção que se fosse inchando a referida cebola debaixo do braço do defuncto.

                Depuseram no summario de culpa cinco testemunhas (..............). Não foi feito o côrpo de delicto por se tratar de um crime cujos vestigios desappareceram, pois a cebola fôra retirada do local por Pedro Francisco Gomes, digo, Pedro Gomes de Souza, conforme declarou em seu depoimento de fls. 25-v e 26, corroborado pelo de Adriana Pereira Borges, 5ª testemunha de (...........), porém, foram procedidas as diligencias legaes do art. 47 do Codigo de Processo Penal do Estado.

                Diz a defesa em sua pictoresca linguagem que, a collocação de uma cebola debaixo da axilla do braço de um morto, não constitui delicto, errando esta Promotoria em capitulal-o no  art. 157 do Codigo Penal. Valha-nos a bôa intenção de bem servir á causa publica. Larousse, nos seus santissimos ensinamentos, diz: “que seria necessario um volume, para fazer-se uma descripção comppleta dos instrumentos e untesilios de feitiçaria”.

                A promotoria publica em capitular o crime que faz objeto da denuncia de fls. 2, em uma das diversas modalidades do art. 157 do Codigo Penal, as quais são apontadas pela propria defesa:-

(a) a pratica do espiritismo,

da magia e seus sortilegios, ele fel-o conscienciosamente, tendo em vista a moderna doutrina dos doutos commentadores do Codigo, quando nos ensinam que da magia negra, surgio a feitiçaria ou bruxaria que criou raizes nas classes inferiores (Cod. Penal. Macedo Soares, pag. 318) Dizendo ainda Larousse “que a magia é irmã gemea (cadetti) da feitiçaria”. (Obra e Cod. Cit.)

                Allega ainda a defesa “que o uso da cebola não tem siginificação. O morto nem ligou importancia, nem o publico ficou fascinado ou subjugado com tal pratica, absolutamente inoffensiva aos mortos e aos vivos”

                Na verdade, uma cebola, um sapo. Bonecos de metal, aneis, pulseiras, collares, o gallo, a serpente, o lobo, a coruja, os cadaveres dos excomungados, malfeitores, enforcados, são coisas que na apparencia são inoffensivas, nada significam, no entanto figuram desde a idade media até os tempos (........) no grande arsenal da feitiçaria, objetos esses favoritos como o era para Catharina de Medicis, o espelho magico que refletia o futuro.

                Deixando o lado jocôso da allegação da defesa, apreciemos com serenidade e de accordo com aprova dos autos, o que esta de verdade encerra.

                A denunciada declarou na Policia conforme se vê á fls. 16v. e 17 e v. dos autos.

“que em seguida a declarante partio a cebola em forma de cruz e a collocou debaixo do braço direito do cadaver na certeza de que,  caso Veras tivesse fallecido de feitiçaria, antes do seu enterramento quem lhe houvesse feito mal se manifestaria no sentido de retirar a cebola.

                E mais adiante:

                Que a declarante quando residente em Manaos, teve occasião de vêr sêr applicada uma cebola cortada da forma retro mencionada, debaixo do braço de uma senhora, cuja morte fôra attestada por um clinico, como sendo a dôr vulgarmente chamada dôr de mulher; que no entanto uma paraense velha que alli estava presente, desconfiando que a mesma senhôra havia morrido de bruxaria pediu para fazer experiéncia da cebola, declarando que, á proporção que a cebola fosse inchando sob o braço do cadaver, a pessoa que havia enfetiçado iria tambem por sua vez inchando”, que a declarante obteria o mesmo resultado senão se desse o facto de terem descoberto o facto, a cebola e sua retirada em seguida.

                No summario de culpa, do depoimento da 1ª testemunha á fls. 26, verifica-se “que na ocasião em que Adriana fizera a ella testemunha o pedido que já se referio (para retirar a cebola) estava presente  a denunciada que disse que aquella cebola sob o braço do cadaver não significava nada; que servia para evitar que bebesse cachaça e tomasse porre uma pessôa  parente de quem botou a cebola

                Está sobejamente provado que a denunciada ao collocar a cebola debaixo do braço direito do cadaver, tinha manifesta intenção de descobrir a pessôa que, em vida, enfeitiçara Manoel de Veras, applicando o mesmissimo processo da velha paraense em Manaos, isto é, fazendo inchar, a proporção que se fosse inchando a cebola sob o braço do defuncto a bruxa que  houvera enfeitiçado Veras.

                Todas essas manobras, machinações, o evidente intuito de fazer mal, não constituem, não integram a siginificação da apalavra da lei – sortilégio?

                Que nos responda a defesa.

                “Sortilegio, s.m. maleficio de feiticeiros// trama, conbinação, machinação, meio de fazer mal. (Candido de Figueredo – Novo Dicionario da Lingua Portuguesa, vol. II. pag. 554; Henrique Brunswich – Voco Dicionario da Lingua Portuguesa. Pag. 1.101)

                Terá a denunciada algum parente que beba cachaça e tome porre, cujo sentimento de piedade fosse tão grande que a impellisse a usar de tão diabolico processo, faltando aos principios de religião, (se é que os tem), faltando com o devido respeito aos mortos? Os autos não nos dão noticia.

                Admittindo, somente para argumentar, ser verdadeira a hipottese, quererá a defesa negar a relatividade da causa e effeito, ou melhor a collocação da cebola pela ré sob o braço do defuncto e a cessação do meio do parente amigo?  É indeferenciavel.

                Não terá  sido fascinada e subjugada a credulidade publica, quando diz a 5ª testemunha, em seu depoimento á fls. 35:-

“que certa gente da Favella tem medo da ré; que isso a testemunha sabe por intermédio da sra. Esperança Rita, Jovita Rodrigues e outras pessoas residentes na Favella, desta cidade”.

                Em um caso delicado como o destes autos, não estarão as testemunhas, em parte, aterrorizadas, fascinados ou subjugados, em sua credulidade, quando Adriana Pereira Borges declara na polícia:-

“que a declarante sabe que Josepha Correia tem dito abertamente que procura saber quem mandou retirar a cebola e  que em sabendo, fará muita gente chorar em Porto Velho”, dando a entender com isso que pretende empregar as bruxarias em que é useira e veseira”.

                Meretissimo. Julgador

 

                A materialidade do crime provada está, pelos depoimentos das testemunhas de fls. Á fls. E dos quaes resaltam eminentes indicios que fazem attribuir a autoria do delicto a denunciada.

                Ora, os indicios eminentes auctorizam a pronuncia nos termos do art. 38 do Codigo do Processo Penal do Estado.

                Assim, esta Promotoria é de parecer que a denunciada sejá pronunciada no grau medio do art. 157 do Codigo Penal da Republica, por não concorrerem circunstancias aggravantes, por sêr de Justiça.

 

                                Porto Velho, 26 de Novembro de 1927

                                Armando de Queiroz Teixeira

                                Promotor Publico.

 

Sentença

 

                Contra Josepha Corrêa apresentou a Promotoria Publica a denuncia de fls. 2, afim de ser a mesma condenada como incursa no art. 157 do Cod. Penal, por ter nesta cidade, a 17 de agosto do corrente anno, depois de pedir licença á concubina de Manoel dos Santos, vulgo Manoel de Veras collocado uma cebola cortada em forma de cruz na axilla direita do cadaver de Manoel dos Santos, manobra que teria o merito descobrir a pessôa que enfeitiçara Manoel, fazendo inchar essa pessoa, á proporção que inchando fosse a cebola sob o braço do morto. Accrescenta a denuncia que a pedido de terceiro, no Cemitério, o coveiro retirou a referida cebola. Instrue a denuncia o inquerito policial.

                Procedendo-se aos tramites regulares do processo, em presença da ré, devidamente qualificada, foram inquiridas as testemunhas em numero legal, sendo afinal interrogada a ré, que pedindo o prazo da lei, apresentou por escripto, a defesa de fls. 29, na qual, depois de varias considerações baseadas no inquerito policial e no summario de culpa, conclue pela improcedencia da denuncia, visto, em face do Art. 1º do Codigo Penal não se tratar de crime previsto pelo legislador patrio.

                Ouvido em todas as phases da instrução criminal, o dr. Promotor Publico, este emittiu sua opinião, contrariando os argumentos da Defesa e concluiu pela pronuncia da ré nos termos da denuncia..

 

                O que tendo visto e devidamente examinado:

                Considerando que a ré foi denunciada como feiticeira, e assim, incursa no Art. 157 do Codigo Penal, que diz: “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismas e cartomancias, para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar curas de molestias curaveis e incuraveis, enfim, para fascinar ou subjugar a credulidade publica: Penas – de prisão cellular por um a seis meses e multa de 100 a 500.000 (reis)??????

 

                Ora, todas as testemunhas declaram que não sabem se a ré é feiticeira e nenhuma se refere á cura de molestias curaveis e incuraveis inculcada pela ré. A 5ª testemunha diz apenas que certa gente da Favela, bairro desta cidade, tem medo da ré e que sabe disto por intermedio de Esperança Rita, Jovita Rodrigues e outras pessoas, cujos nomes não declimam. Entretanto, Jovita, 2ª testemunha, declarou que o pôvo é que diz que a é feiticeira; mas não deu a autoria dessa afffirmatica, allegando que não sabe quem disse. É, portanto, um testemunho inconsistente.

                Considerando que o “feiticeiro é o magico, que conhecendo os segredos da magia, faz uso della com o intuito de molestar ou prejudicar seus semelhantes, de incutir terror ou tornar-se objeto de terror” (Vide Macedo Soares, Cod. Pen. Commentado, 3ª ed. Pg. 217):

                A ré (vide fls. 26), collocando uma cebola cortada em forma de cruz na axilla direita do cadaver de Veras, não o fez, segundo refere, para effeito de fetiçaria; mas para descobrir a pessoa que fez mal a Veras, accrescentando que a cebola tem a virtude de tirar máos habitos, descobrir factos ruins e foi nessa intenção que fez tal applicação. Disse tambem que tem tratado de muitos doentes e de graça, aqui e em Manaos, com hervas, como capim-santo, etc.

                Considerando portanto, que em face dos depoimentos das testemunhas judiciaes, unicas que tem valor probante, e em face das declarações da ré no summario, verifica-se a inexistencia dos elementos constitutivos do Artigo 157 do Codigo Penal.

                De facto: os autos não dão noticia de haver a ré com tal applicação da cebola, despertado sentimentos de odio ou amor, fascinado e subjugado a credulidade publica, molestando ou prejudicando seus semelhantes, incutindo o terror ou se tornando objeto de terror. Os autos não dão noticia de haver a com tal manobra, abusado da credulidade publica, digo, abusado da credulidade de pessoas ignorantes, incutindo-lhes no espirito fraco e inculto, esperanças chimericas que pudessem ser nocivas á saude dessa gente. Uma cebola cortada em forma de cruz não é uma causa (utilizando-me das palavras de Vinicius de Castro), pela sua natureza e especie, claramente denunciativa do seu emprego em sortilegios de magia e feitiçaria.

                Nem se diga que o facto indicado na denuncia, constitue a contravenção do Art.  365 do Cod. Pen., “disposito que assegura o respeito aos mortos, considerando ultraje aos despojos mortaes do homem, quer a profanação do seu cadaver, quer a violação do tumulo que o encerra” Não consta destes autos que a ré houvesse despojado o cadaver de Veras, de suas vestes para rouba-las; que impedisse o enterramento; que batesse, ferisse ou cortasse alguma parte do cadaver de Veras, factos que alem de outros citados por Bento de Faria, em seu Cod.Pen., commentado, e que  não vêm ao caso mencionar, constituem profanação e que, qualquer deles se provado estivesse, daria logar  ao reconhecimento da contravenção definida no aludido art. 365 do Cod. Pen.

                Considerando, portanto, que não houve sob o ponto de vista positivo, uma violação moralmente imputavel do referido dispositivo do Art. 157, e em concurrencia, a intenção mais ou menos perfeita por parte da ré, de levar um bem alheio protegido pela lei penal, como tambem não houve por parte da ré, um acto igualmente perturbador da ordem juridica e que de um modo imediato, expuzesse a perigo o direito alheio:

                Julgo improcedente a denuncia, e absolvendo a ré da instancia, condeno a Municipalidade nas custas. Recurso para o Egregio Tribunal. P. e intime-se. Porto Velho, 3 de Dezembro de 1927.

Arthur Virgilio do Carmo Ribeiro.

 

Accordam

 

                Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de recurso criminal de Porto Velho, em que é recorrente ex officio o Dr. Juiz de Direito da Comarca e recorrida Josepha Correia.

                Accordam em conferencia do do Superior Tribunal de Justiça, de accordo com o parecer do Exmo. Sr. Desembargador Procurador Geral do Estado, negar provimento ao recurso, para o fim de confirmar, como confirmam a decisão recorrida.

                Assim decidem porque o facto attribuido á dita Josepha Correia não integra a figura delictuosa, prevista no art. 157 do Cod. Penal da Republica e, em tais condições, julgando improcedente a denuncia e absolvendo a denunciada da accusação que lhe foi movida pela Promotoria Publica, a mesma decisão não só consultou o direito applicavel á especie como foi proferida de accordo  com as provas dos autos.

                Custas em forma legal.

                Sala das Sessões do Superior Tribunal de Justiça, em Manáos, 31 de janeiro de 1928. Sá Peixoto – presidente ( segue assinaturas)

 

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