transversalizar o texto

 

 

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como seria transversalizar o conto sílvia (1853) de gérard de nerval? levar ele até as últimas conseqüências de sua própria “proposta”, produzindo um texto-colateral? como utilizar sua “música”, sua forma, sua estrutura, sem cair no seu tempo fincado, nos seus “conteúdos marcantes”, caracterizadores, limitantes? como reinseminar a temporalidade nervaliana? como depurar essa forma e seus movimentos? como fazer resignificar os famosos “eleitos névoa”?

há formas que nascem do fluxo pessoal, respondem a estruturas íntimas, são nódulos específicos e singulares, se formatam (tomam forma) no próprio sabor dos movimentos da escrita, pertencem às configurações oníricas do nosso imaginário, mas as “formas da cultura”, testadas e retestadas, devem ser reutilizadas, postas em novos ritmos, com outra temporalidade e perspectiva. e mesmo aquelas estruturas singulares que pertencem a tradição, mas não se multiplicaram, merecem ser levadas ao seu clímax, aos seus vários destinos possíveis, podendo dialogar com seu duplo, com seu antagonista, com seu espectro.

o novo “conteúdo” (como na música um “estilo-forma” permite a infinidade de outros conteúdos) exige leitura diferente da forma, enfrentamento diferenciado, exigindo outras relações, compondo transversais inexistentes na forma básica, mas tudo isso não apaga, não faz desaparecer a forma antiga (desapareceria a fábula, a história, o estilo, não a estrutura, o jogo temporal, o movimento e alguns efeitos) com todos os seus atributos. ela se torna um dos fantasmas principais, um dos “inconscientes” do texto, talvez o mais próximo, o mais perceptível. mas essa forma antigo será revista pelas formas pessoais, será reformatada, passará por uma outra configuração, outro teste, outra contextação existencial. deverá perder sua individualidade para ganhar outra, mas individualidade que não regionalize a forma, não torne o movimento clichês da moda, enumerações tecnológicas.

 

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apesar da leveza da forma, o conteúdo-sílvia é ainda carregado demais por uma infinidade de elementos caracterizadores de um território, de uma nação, de um povo, de uma língua, de uma história, de uma classe, de uma erudição, de um momento, de uma “escola”: são realmente levados a sério como dimensões do vivido, do real, do histórico, do relacional, não como palavras, significantes, matérias vazias ou metáforas (muito próximas do tropos e dos clichês): faz parte da existência como elementos dali, coisas irremovíveis, partes de um cenário móvel mas que não perderia seus componentes: não se relativisam nem são generalizados para significarem em outras situações. daí esses elementos contradizerem a “filosofia” de mutabilidade, envelhecimento das coisas, dos sentimentos e das pessoas advinda do próprio texto.

mesmo bem orquestrados esses elementos não podem sumir, contribuindo inclusive para o envoltório gasoso do texto, para sua específica magia, mas, numa primeira leitura, pesa levemente nas bordas textuais, se tornando cada vez mais evidentes a partir das leituras subseqüentes: perdoamos somente por certo e refinado “gosto francês” que atravessa todo leitor ocidental. mas esse peso não é compatível com a própria estrutura do texto, com sua volubilidade, com sua especial vaporosidade onírica, com aquela atmosfera que proust tanto apreciava e na “busca” reinventou, apesar do seu peso específico não ser menos que o de nerval, mas como foi alargado, aprofundado, tem a tendência a ser menos considerado nas leituras; esse peso praticamente vai sumindo com as leituras, num movimento inverso ao de nerval.

 

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1. artistas: peregrino, apuleio, dante, boufflers, chaulieu, horácio, watteau, auguste la fontaine, petrarca, francesco colonna, boucher, moreau, montaigne, descartes, rousseau (oito vezes citado), virgílio, walter scott, porpora, schiller, gessner, marivaux, roucher.

2. personagens literários: saint-preux e júlia (da “nova heloísa”), beatriz de dante, laura (colonna), carlota e werther.

3. lugares: frança, alemanha, itália, suíça, província romana, salzburgo, herculano, la turnelle, bertrand-fosse, montméliant, othys, saint-laurent, dammartin, senlis, loisy, valois, touraine, palais-royal, flandres, montmorency, écouen, luzarches, gonesse, louvres, chantily, compiègne, nonette, thève, ermenonville, paris, montagny, saint-s… (saint-sulpice), thiers, pontarmé, genebra, greuze, irlanda, orry, la chapelle, hallate, mont-l’évêque, châalis, plessis, terni, charlepont (châllepont), nanteuil-le-haudoin, commelle, clareus, creil, éve, ver, elêusis, aldebarã, “imagem de são joão” (estalagem), “cruz de ouro” (estalagem), floriculturada sra prévost, bolsa, oriente, torre de gabriela, torre feudal.

4. obras: “viagem a citera” (watteau), “nova heloísa” e “emílio” (rousseau), anacarsis, eclesiastes.

5. festas, jogos: “festa do  buquê provincial”, “festa de são bartolomeu”, “festa dos arcos”, “festa druídica”, “baile de máscaras”, whist.

6. personagens mitológicos: ísis, moloch, diana, tempo, urânia, cristo, ninfa, pã, fada, rainha branca, sibila.

7. aves: toutinegra, cisne, melro, abelheiro, rouxinol, picanço, canário, papagaio.

8. personagens históricos, famílias, objetos: princesa elida, rainha de trebizonda, henrique iv, gabriela, médicis, armen, criel (porcelana), condé, carlos magno, este, valois, chita da pérsia.

9. vegetais: olmo, tília, loureiro, junco, pâmpano, roseira, macieira, álamo, vinha, margarida, botão de ouro, pervinca, liana, morango, dedaleira, gladíolo, lírio, lúpulo, videira, cereja, groselha, nenúfares, feno, carvalho, bétula, salgueiro, avelanzeira, pinheiro, framboeseiro, alfena, cicuta, nogueira.

10. períodos: fronda, regência, diretório, renascença.

11. personagens do conto: aurélia, sílvia, Adriana, tia-avó (de sílvia), irmão de leite (do narrador), lisa, tio (do narrador), sra de f....

 

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         o senhor se esconde nos detalhes. o grande perigo está no “conteúdo”, na visibilidade, nos nomes próprios e sobrenomes, os empregos, nas famílias, na tecnologia, nas datas, na falsa proximidade, na nacionalidade, na religião, na região e na língua (para a Literatura brasileira legítima tudo deve ser brasileiro, como se houvesse uma unidade de gentes, de línguas, de povos, de crenças, de nomes: tudo que não é brasileiro não faz parte). a escrita ficcional sociológica, historiográfica e jornalística, como é preferencialmente a Literatura brasileira, é o próprio corpo do senhor que se expõe, que se põe em visão de mundo: nestes elementos estão os componentes, os elementos, as articulações, as classificações do real enquanto visibilidade, enquanto existência possível por si mesma, enquanto conformidade, descritível como algo, como se ainda e camufladamente os “métodos” fossem aqueles que ainda acreditam na existência em-si da natureza. e essa visão de mundo é reforçada, reproduzida, copiada, normalmente “vivida”, “pensada”, “descrita”, orgulhosamente, nacionalisticamente, com o mais puro “estilo português” (até a língua é explicitamente a do senhor: a oligarquia das letras não permite que se escreva realmente em brasileiro ou numa língua singular, o que seria minar a certeza de que falam todos, por essas “terras do senhor”, o português, não o mais castiço, mas o português possível, aquele que um dia voltará a ser um verdadeiro português: isso parece uma piada, mas é um dramalhão).

         quando as formas (os imensos ovos do senhor) são inseminadas com matéria ácida, com substâncias que impedem a reprodução, suas visões de mundo ou as crenças gerais que permitem a exploração, o consumo e a reprodução, essas formas se reformatam, não desaparecem, mas ganha outro sentido, outra finalidade que vai combater e dialogar internamente consigo mesma, combater com as formas e conteúdos dos leitores. a forma passa a ser dialógica, multidirecionada, polifônica, e não regionalista, nacional ou internacional, deixa de ser algo para o mercado, para os senhores em suas infinitas fôrmas (leitores), abandona a dimensão direcionada de crenças e passa a corroer elas por dentro. a gema e a clara entram em conflito e põem eternamente em risco a integridade da casca, do ovo, do nascimento, da vida e da permanência, do crescimento, da alimentação, da reprodução, da retroalimentação, da vida no galinheiro.

 

bibliografia

 

eco, umberto. seis passeios pelos bosques da ficção. companhia das letras, são paulo, 1994.

__________. ensaios sobre literatura. record, rio de janeiro, 2003.

moretto, fulvia. formes de l’imagination nervalienne dans sylvie. faculdade de filosofia, ciências e letras de araraquara, araraquara, 1972.

nerval, gerard. sylvie. les filles du feu, p. 109/139. garnier-flamarion, paris, 1965.

__________. sylvia. edições mozart, recife, 1936.

__________. sílvia. as filhas do fogo, p. 93/122. estampa, lisboa, 1972.

__________. sílvia. rocco, rio de janeiro, 1986.

__________. sylvie. plaza & janés, barcelona, 1999.

proust, marcel. contre sainte-beuve. iluminuras, são paulo, 1988.