QUE SÃO TRANSVERSAIS?

 

 

         As transversais (www.unir.br/~primeira/artigo177.html) enquanto visão a partir de um ponto na cosmópole não é mais que primeiro momento. Enquanto perspectiva apenas abre a reflexão para algo mais complexo e coletivo. Sua dimensão se inscreve não somente como se estruturam, classificam e expõem o real, como ele é visto, pensado e produzido, mas como esse mesmo real é extensão viva e mutável tanto da coletividade quanto da singularidade e seu indomável deslimite: a exterioridade tendo sentido e forma apenas a partir das interioridades sociais (atividades comunitárias) e individuais (ação). As transversais são, nesse sentido, pontos privilegiados de onde podemos entrever questões essenciais que se exibem nesse começo de milênio. Para tanto precisamos aprofundar alguns temas.

         Num primeiro prisma as transversais implicam uma multidão incontável de configurações aleatórias entremeando profusões de acontecimentos, imagens, pessoas e coisas. As transversais são interligadas por uma rede randômica e singular, pois partem sempre do observador, cujos campos simbólicos e cognitivos se expandem numa ordem de grandeza até uma independência definitiva e não conhecida. As transversais libertam os sentidos ao mesmo tempo em que lhe apresentam seu poder e sua ação.

         Numa segunda paragem as transversais supõem uma grande variedade de indivíduos livres, desorganizados, sem hierarquias, entrecruzados sem categorias de espécies ou de superespécies, em número potencialmente ilimitado, sem perder de vista as diferenças, as segregações, os limites, as exclusões, o privilégio da posição. As interações, quando atentamos e participamos com precisão e atenção suficientes, permitem que descubramos que suas relações são essencialmente imprevisíveis, indetermináveis, multiformais, eqüipolentes a nós mesmos porque somos nós.

         Num terceiro espaço as transversais implicam a noção de transformação ontológica, de mudança radical, de reconfiguração, de reapresentação, de passagem de mundos, de ontologias, de conhecimento. Elas abrangem não somente o aparecimento e desaparecimento de sujeitos e coisas, mas também o surgimento de novas formas de seres e perspectivas, aniquilando legiões inteiras de formas estáveis, simplesmente móveis e estáveis que se apresentam como natureza e sociedade, sujeito e objeto. A impermanência radical das transversais conduz a diferenças de duração e até mesmo ao desaparecimento do tempo enquanto “realidade”, reaparecendo enquanto dimensões da imaginação e do imaginário: tensões que abrem e espremem o imediato do presente. As transversais não permitem que subsistam, em meio ao domínio geral estabilizador, pequenas ilhotas mais ou menos estáveis ou mesmo um conjunto em “evolução”, em “mutação”, em movimentos e formas ordenadas, reconhecíveis, domesticáveis, capturáveis: o que se prende não são mais transversais, não é mais o ser em profusão, em erupção criativa, mas o que se deixou apreender, o que consolidamos e enganamos para fisgar, o que instrumentalizamos para fazer obedecer.

         As transversais são independentes, agitadas por multidões variadas de sujeitos e suas perspectivas cujas interações são totalmente imprevisíveis; compostas por uma impermanência radical; por momentos estruturais do próprio sujeito ao se expressarem exprimindo a exterioridade; deslocamentos e figuras que se articulam em redes a partir de certa disposição singular que expressa fantasmagorias das cosmópoles, expondo-as, e que não poderiam ser vislumbradas ou pensadas fora dos seus quadrantes de produção. As transversais se tornam maiores na medida em que a unidade cede à multiplicidade e a movimentos intensos sem perder, contudo, sua forma de existência na singularidade.

         As transversais reintegram aspectos e temas que foram isolados com outros dando visibilidade ao excluído e retomando as razões da exclusão. Não deixa de ser um reconhecimento das dimensões da desigualdade ao mesmo tempo em que se torna enfrentamento de suas dimensões e posições, de sua plasticidade e de nossa força de criação e manutenção da realidade.

         Quando dirigimos o olhar com acuidade o mundo se revela como redes de transversais que surgem e desaparecem: podemos perceber ou não essas transversais e, normalmente, apreendemos transversais permitidas, isto é, formas estáveis, movimentos de poder, corpos capturáveis, saberes imobilizadores, evoluções: somente os movimentos múltiplos e polidimensionais livres abrem as possibilidades de visão aos movimentos lentos, das ações tradicionais que criam e mantém as formas e as classificações.

         Nossa atividade simbólica, criando e mantendo, destruindo e recriando o universo e nossos próprios sistemas cognitivos é o que torna continuamente mais complexa a matéria das nossas vivências e com elas refundindo sempre um renovado mundo, uma ra-refeita realidade, que tem seu fundamento em nossa atividade geral. Mas entre nós e a exterioridade é preciso excluir qualquer relação simples, qualquer relação na qual nós nos refletiríamos simetricamente na existência como num espelho que, para “funcionar”, exige sempre nossa presença.

         Longe de uma transparência nossas relações se erguem sobre um fundo obscuro, opacidade e desconhecimento inextirpável que se deve tanto ao fundamento (caos) quanto à alienação, talvez inextirpável por nossa não participação no que se cria e se mantém coletivamente. E, por isso mesmo, as transversais apontam para as possibilidades fendidas pela criação, horizonte de formas e de relações que recuam indefinidamente em um meio ao mesmo tempo livre e que escapa cada vez mais reformatando as visões, os corpos, os sonhos e desejos, assim como palavras e imagens. As transversais fazem crescer a complexidade cognitiva em todas as direções dos tempos do sentido na mesma medida em que as produzimos.

         O entendimento da liberdade das transversais - a experiência da multiplicidade em polimovimentos tanto no espaço quanto no tempo, tanto nas extensões subjetivas quanto nas suas expansões objetivas, que são fruto tanto das atividades coletivas quanto das ações individuais - é dimensão essencial do conhecimento do atual momento do mundo industrial e das cosmópoles. O descanso do espírito na simplicidade - ou abestalhamento - sempre foi acomodamento ridículo que serviu aos poderes e a cristalização das várias formas de trabalho. O abestalhamento permite entrever que partes das nossas experiências nasceram de movimentos retardados, formas incompletas, palavras de ordem do senso-comum, imagens estáveis, ações permitidas da produção e da reprodução, desconhecimento de si mesmo e entrega às simulações do “coletivo”.

         Mas o que seria uma meditação das transversais? Que liberdade de pensamento, que novos instrumentos intelectivos, que perspectivas sociais nos porão vivendo a experiência da multiplicidade, dos movimentos e da elegância das infindáveis danças que animam a vida? Vivenciar o múltiplo e todas as possíveis alteridades. Cultivar a diversidade das posturas cognitivas, intelectuais e formais. No mínimo conseguiremos ver o mundo e os outros em sua irredutível diferença e o horror da entrega à natureza, a sociedade, a história, ao real, a todas as imobilidades que se apresentam como movimento, revolução, mutação. Precisamos tomar nosso lugar na infinita plasticidade do real enquanto criação viva do ser social em seus limites e deslimites. A revolução que não tomar conta dessa perspectiva será somente um retorno as mais retrógradas formas de existência, um simples retorno as mais elementares ideologias do trabalho.

 

São Paulo, Perdizes, 13/07/2004.