O TEATRO DO REAL

 

 

Incipit: O texto base deste ensaio é, em parte (uma parte pequena), “A Sociedade do Espetáculo” (Debord, 1997). Com ele buscamos tornar mais clara algumas noções, intuições, conceitos e visões sobre o presente e o real. Mas o texto base de Debord é somente pré-texto, ou pós-texto, ou a ausência do texto (o prazer se faz no fantasma do texto, no vazio, na ausência, na brecha do texto), um lócus de escrita, na produção de outros campos. Suas finalidades não coincidem com a matriz nem com a função da sua escrita: atingem a autoria dizendo apesar da sua presença. A negatividade em ação gera outro texto, outro pensamento, outra visão de mundo, outra ontologia, outra politicidade. O que permanece, os vestígios do outro texto sempre entre aspas, não garante nada, somente lugar inespecífico no corpus anterior, pois não importa a localização, mas o suporte provisório, já que a questão é se afastar, desdizer, se aproveitar, gozar longe e dentro para fazer fluir, dispersar, resimbolizar com negatividades em desmando. Transversalizar nos sentidos abertos e libertinos de um hipertexto.

 

1

 

*. O mundo é uma medusa: só pode ser tocado, morto, devastado ou compreendido através de um espelho: dizer ele diretamente como querem os realistas é fazer sempre seu jogo, jogo perverso de espelhos postos por quem pergunta e por quem responde: só podemos matar o mundo sabendo isso: só podemos conversar com ele sabendo isso.

*. O que existe, existe mesmo? Existindo, como vivemos/sabemos/sentimos que existe o existente, como existe esse existir? Qualquer resposta é interna ao sistema de perguntas: jamais um dizer uma exterioridade em-si.

*. A percepção estaria na ordem das idéias ou na ordem do mundo? Como perceber sem pensar: perceber sem estar numa confluência imaginária onde o tempo (instância imaginária e simbólica suprema) seria o norteador? Como perceber sem relacionar cada elemento com os outros: signos sobre signos: entregues as redes pensamos e vivemos o mundo: o que percebemos é o entre-nós. Sem eixos e limites não há o ser; o ontológico é decorrência do pensar: pensar é estar dentro de um campo produzido, sustentado e em devires jorrando do próprio com-viver: o tempo é a própria práxis.

*. A realidade é a imaginação social em constante formatação: é o caos domado, amordaçado, posto a disposição, eliminado pelo tempo que descende ele criando dimensões bem além do aqui fluindo em sentidos exatamente pela polidimensionalidade temporal do nosso existir.

*. Imaginação não é um exercício do inexistente, mas a manutenção do existente no centro da existência. A imaginação social (fluxo vivo de crenças, rituais, práticas, simbolizações) é o real.

*. Todo “conhecimento objetivo” é tão somente conhecimento esquecido de suas condições: estarrecido diante de si mesmo, de suas projeções sociais, pessoais e grupais.

*. A navalha de Occam: entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem: não multiplicar entes sem necessidade: a natureza-em-si é excessiva multiplicação que esconde a fonte: o entre-nós criando o tempo e seus fantasmas: a exterioridade é uma fonte fantasma da própria práxis. Mas nada disso é “mental”: o real é real exatamente por sua forma de existência: não é operação intelectual, mas dimensões vivas da práxis: criamos com o tempo o nosso lócus, os nossos campos de existência e resistência: relações, rituais e linguagens de poder: o imediato do presente não é exterioridade nua, mas jorros de desdobramentos temporais que criam e mantêm o significado de tudo ao nosso redor.

*. Não há o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido: sujeito e objeto são postulações do conhecimento na medida da sua existência: sem eles, sem causa e efeito, o pensamento escorrega em suas próprias ilusões, principalmente em seus desvios de totalidade monstruosa em-si: fora da individualidade e do entre-nós, fora do tempo, caímos sempre nas projeções imaginárias exatamente da coletividade e da individualidade: e pensamos sempre estarmos no real mesmo, aquele que nem um deus conseguiria satisfazer (mas que muitos exigem como suporte).

*. A linguagem não é o suporte do ser: essa é uma explicação: a linguagem é um dos momentos explicativos do ser, mas não esgota absolutamente nada: tudo pode ser linguagem somente porque esqueço que essa também é uma noção.

*. Essa é essencialmente uma questão ética: sem natureza, sem deus, sem sociedade como instância suprema em sua totalidade (o desejo das ideologias); sem instituição que garanta a eticidade do indivíduo (igreja, escola, família, estado); sem o real como uma organização estabelecida por algum poder regulador, como pensar a ética: e porque a ética deve ser pensada a partir dessas mega estruturas imaginárias como se fossem reais em-si? Pensada a partir dessas projeções como se fossem eternas ou eficientes, a ética tem sido somente uma ilusão desnecessária: muito bonita na teoria mas impotente na prática. Basta ver os socialismos reais e seus mortos, os cristianismos reais e seus mortos, os liberalismos e seus mortos, as democracias e seus mortos: e as torturas, os apartaides, os racismos: a ética fundada nas eternidades do real é mais periculosa do que um nazista e mais inútil do que o sexo dos anjos. A ética deve buscar na individualidade sua base: viver e fazer viver não por um estado, por um deus, por uma lei, mas porque sabemos cada um o quanto dói o desrespeito a essa coisa que somos nós e àquilo que podemos ser. A ética tendo o indivíduo como eixo e fim, como meta de todas as lutas, todas as normas, todas as fórmulas, todas as leis, todas as revoluções.

 

2

 

*. A imagem e a coisa, a cópia e o original, a representação e a realidade, a aparência e o ser, o profano e o sagrado fazem parte do mesmo holograma que é o real, dos mesmos sistemas em movimento, contato e troca: tudo está sempre dentro. Não há o real e o espetáculo, não há os personagens e as pessoas, não há um “diretamente vivido”, um contato direto com um real-mesmo, uma exterioridade crua que existiria até mesmo sem ninguém (o deus invaginado permitindo o sem presença para uma imaginação ingênua). Não há um afastamento do real em detrimento de um espetáculo: o próprio real é teatro, é espetáculo, é virtualidade: toda crença, toda percepção, toda descoberta, toda noção, toda visão de mundo são efeitos internos: isso não faz “desaparecer” o real, não o torna “subjetivo”, “idealista”, mas plástico, vindo dos processos vivos da práxis e das individualidades, dos sistemas de crença e presença, do tempo enquanto dimensão que permite esse descomunal holograma vivo.

*. As imagens, os conceitos, os pré-conceitos não se desligam, não se separam, não se autonomizam, mas fundem-se numa unidade que é o real, que é a unidade da vida. Todo “mundo à parte” é parte do mundo, isto é, da virtualidade: nada está fora e todo fora é um dentro por mais fora que pareça.

*. O espetáculo é a sociedade, não uma parte da sociedade: até mesmo a sociedade é uma projeção viva de si mesma, um sistema de compreensão. Olhar do espetáculo não é não ver, mas poder ver a sociedade em sua fundação, em sua matéria, onde o espetáculo midiático é somente um dos seus momentos.

*. As “relações sociais” são imagens em fluires, em dispersão, em redes meditizadas por feixes de crenças, de linguagens articuladas, de enganos determinados, de má-fé e poderes bem localizados, de traduções e convenções imperceptíveis mas atuantes.

*. A realidade como tecido polidimensional, multisignificativo e hipertextual é uma Weltanschauung, que é sempre presentificação, exposição, rede de crenças tornada realidade, tornada efetiva exterioridade. Não há uma realidade e uma Weltanschauung, mas as “duas” são dimensões da mesma virtualidade.

*. O espetáculo não é “o resultado e o projeto do modo de produção existente” (o espetáculo seria somente um sub-produto do capitalismo), mas a forma de existência de qualquer conceito de realidade (toda “sociedade” existe somente em manifestação, em festa, em representação de papeis, em substituição da “coisa” pelo “ator”), como o próprio conceito de “modo de produção”.

*. O espetáculo mesmo podendo e devendo ser combatido em sua manifestação naturalizada e universalizante, não pode ser “destruído”, isto é, o real não pode deixar de ser espetáculo, aquilo que é para os olhos, é representação, é substituição. Nele nada é “irreal”, mas o próprio coração do real na sua forma de existência. Não há o irreal no coração do real: o coração do real é o irreal, somos nós e o tempo: somos quase cem por cento imaginação (tempo) cercados pelos efeitos imediatos dessa imaginação (isso não vaporiza o real como temem os covardes do ser, mas atinge sua dimensão existente: assim podemos revolucionar não somente o imediato (politicidade), mas essencialmente o tempo (revolução), que é a nossa grande forma de existência: sem revolucionar o tempo o imediato continua intacto).

*. A “irrealidade da sociedade real” não é a “informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos”; não é a “sociedade de consumo” dominante enquanto produção e mídia: isso deve ser combatido na sua medida; mas a irrealidade constitutiva é o que permite não apenas a “sociedade de consumo” e a mídia, o espetáculo em seu sentido restrito e interno, mas na dimensão ontológica, logo política. A irrealidade do real é a arma contra esse mesmo real. Enquanto o espetáculo midiático toma o tempo para o esquecimento, isto é, para torná-lo impotente direcionando todas as energias para o consumo e gasto masturbatório, a compreensão do irreal do real aponta para outra direção.

*. Cindir imagem e real, sonho e vigília, festa e trabalho não é algo criado pela “sociedade de consumo” ou pela “explosão midiática”: sem fazer isso não existiria “sociedade”, principalmente porque não há nem jamais houve uma “unidade do mundo”, uma “totalidade real” que pudessem ser mutiladas, a não ser no cérebro dos “intelectuais burgueses” saudosos de uma pretensa “aura”, de uma exterioridade natural e em-si criada e habitada por uma argila insuflada.

*.  O espetáculo não inverte o real: o real não aparece como espetáculo nem o espetáculo como real: essa “alienação recíproca” não é a “essência e o sustento da sociedade existente”, mas a essência do real em todas as circunstâncias que conhecemos. Essa duplicidade, essa alienação e má-fé, essas reinversões onde o verdadeiro é o falso e o falso é o verdadeiro, atinge não somente a essência da mídia, mas do ser, que é sempre tribal, social e histórico em seus termos específicos.

*.  A visibilidade, a aparência que o espetáculo midiático torna possível não é uma “afirmação da aparência” ficando no lugar de uma realidade mesma que seria sua vítima, uma “negação visível da vida”: esse específico espetáculo além de ser uma dimensão fundamental da tecnologia, desvenda o nosso real como tão somente efeitos de uma mega encenação que chamamos real, mas que tem praticamente todo o seu corpo no tempo, isto é, no espetáculo imaginário de indivíduos, classes, grupos e coletividades.

*.  A linguagem sempre foi as múltiplas linguagens dos espetáculos que são o real e o real são precisamente essas linguagens em devires, em torções, em práticas, crenças e rituais. Que, objetivamente, não poderiam jamais se apresentarem como “uma enorme positividade indiscutível e inacessível”, proclamando que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”: o espetáculo midiático, coisa de feira e jardim de infância pode dizer isso, mas no espetáculo que é o real não há a passividade nem o monopólio da aparência: o tempo é a negação da aparência como único princípio: mesmo o imediato do presente (nossa única realidade: onde há a dor, o suor, a doença, a morte, o trabalho, o prazer, o descanso, os dentes da fera e os artifícios do tempo contra elas) é densidade extrema que se abre sem limite.

*.  O “mundo real” se converte em linguagem porque ele é linguagem enquanto dimensões temporais, relações, compreensão, percepção, atuação, espaço: são essas linguagens que são o real que enfrentam o caos e se criam enquanto mundo-nosso: mas há um “comportamento hipnótico”, hipostasiado, onde o tempo das linguagens e as linguagens do tempo se descolam e nos parecem “natureza”, exterioridade em-si, universalidade e matéria: porque suas feituras não são individuais, mas advêm do fluxo vivo da práxis, que não vemos, não tocamos, quase não vivemos nele: e os fantasmas voam por sobre nossos delírios.

* A “fraqueza do projeto filosófico ocidental” foi ter mantido esses fantasmas da práxis como reais, como instâncias verdadeiras fora da sua forma de existência: e lutamos a vida inteira, enquanto “coletividade”, “grupos” e “indivíduos”, com esses fantasmas como se tivéssemos lutando “contra o mundo”, quando estamos somente fazendo ele funcionar, se reproduzir, se retroalimentar, circular e negociar.