SOLDADOS DA BORRACHA: UMA EXPERIÊNCIA

 

 

ANDERSON DE JESUS DOS SANTOS

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE – UFRO

 

 

            Em dois anos de pesquisa que desenvolvemos com soldados da borracha obtivemos nove entrevistas, a primeira delas que conseguimos foi anterior ao projeto Nordestinos na Amazônia, foi a primeira vez que utilizamos os conceitos de Nascimento voluntário e Cápsula Narrativa. O que mais tem nos impressionado é que após dois anos de pesquisas, nos convencemos que a melhor entrevista que temos é a do senhor Manoel Patrício.

            Não pretendíamos utiliza-la no Projeto Nordestinos, porque o senhor Manoel Patrício não era nordestino apesar de ser soldado da borracha, por sugestão da professora Fabíola Lins Caldas utilizamos a entrevista para analisar a narrativa dos soldados da borracha que fossem nordestinos com aqueles que fossem naturais da Amazônia.

            Quando entrevistamos Manoel Patrício não tínhamos idéia se iríamos utilizar sua entrevista para um trabalho de pesquisa ou mesmo para a monografia, mas por termos contato com a família e estar sempre conversando com ele perguntamos a ele se nos concederia uma entrevista.

            Após a entrevista e a conferencia, que ocorreu dois meses depois, estivemos em sua casa para entregar para ele uma cópia da entrevista, que anteriormente ele havia pedido, ele também não pediu nenhuma alteração na entrevista que lemos para ele, já que ele apesar de ler devagar, tem também problema de visão e pediu que lêssemos para ele.

            Dos soldados da borracha que entrevistamos Manoel Patrício é o único que fala das dificuldades enfrentadas na floresta durante sua vida sem perder o controle das suas emoções, chorar, sentir raiva ou mesmo entrar em pânico e, ainda deixar aflorar o sentimento de patriotismo existente entre os soldados da borracha.

            Manoel Patrício nasceu nos seringais, mas a cartografia imaginária dele aparece de forma mais clara que os nordestinos. Essa cartografia imaginária seria o espaço constituído por ele pela vivência como podemos observar neste trecho:

 

“(...) Ai o patrão viu que ele não aguentava mais fazer aquele produto que ele fazia, pegou ele jogou fora do seringal. Jogou ele na beira do Rio Jamari, na boca do Massangana. (...) Ai jogou nois na boca do Jamari, nois ficamos tudo criança, só uma irmã que era mais velha, mamãe e papai. Papai inchado nas pernas, não podia mais trabalhar não. Aí ele foi no depósito de São Carlos e, conversou com o dono de lá. Rapaz tem uma colocação com nome prainha, lá perto do Rio Branco essa colocação tem um castanhal muito grande e lá dá pra vocês ficar uns tempos né? (...) (...) Ele pegou a beira do rio e foi assim até numa colocação com nome de Genebra perto do Rio Branco, aí ele gritou o morador veio, e, deu passagem pra ele, e, disse: eu quero ir no Papagaio, que nesse tempo chamava de papagaio a vila lá.(...) (...)senhor pega esse caminzinho aqui, e, sai no fio Rondon, o senhor vai debaixo do fio, cruza rio branco e, aí o senhor vai olhando sempre ao lado direito, tem um caminho, o senhor pega o caminho do lado direito que vai direito na vila. Aí tá certo. Papai pegou o caminzinho e si mandou, aí chegando no rio branco a valência que o morador tava, deu a passagem pra ele no rio branco, e foi embora.”

 

            Mas no caso de Manoel Patrício ele determina esse espaço de uma maneira bem mais detalhada e elaborada do que os demais, a preocupação na sua narrativa em falar com riqueza de detalhes sobre o seringal, as colocações, as estradas de seringa e dos patrões aparece com maior clareza do que os demais, nesse caso os nordestinos, e,. não acreditamos que seja apenas pelo fato de ter nascido na região, mas há no caso do senhor Manoel Patrício uma nulidade do discurso patriótico de soldado da borracha, no momento que pedimos à ele que falasse de sua experiência de vida, não aflorou o discurso de soldado da borracha, observado nos nordestinos, ou seja, o discurso do soldado que encara a floresta, firma acampamento e corta a seringa como se estivesse cumprindo uma missão oficial a ele confiada, não ocorre na narrativa de Manoel Patrício mesmo ele sendo soldado da borracha.

            Manoel Patrício conta sua experiência de vida sem ter as preocupações que os nordestinos tinham em sua vinda para a Amazônia, a adaptação e o aprendizado no corte da seringa, já que desde a tenra idade já aprenderia o ofício com os pais. No caso dos nordestinos as dificuldades eram maiores, pois além de não conhecerem a floresta, havia uma série de outros problemas que enfrentavam como o caso das colocações que ficavam distantes e as habitações eram construídas por eles mesmos. Se o caboclo via a cabana como habitação o nordestino já há tinha como uma barraca de campanha já que eles estavam em uma missão.

         O completo isolamento dos meios de comunicação e os precários meios de transporte existentes nunca possibilitaram a Manoel um deslocamento maior do que cem quilômetros o que nos faz lembrar em muito a vida na Idade Média, dadas é claro as proporções sem comparações exageradas. O texto Manoel Patrício não apresenta preocupações com a Pátria, com a guerra, ou mesmo riquezas, o seu texto é um cotidiano, um ir vivendo. Mas existe algo que aproxima Manoel Patrício dos demais soldados, o fato dele também ser um estrangeiro. Talvez não haja compreensão quando dizemos que Manoel Patrício também é um estrangeiro, visto que, já tínhamos dito que ele havia nascido e vivido sempre em uma mesma região. Explicaremos melhor.

            O conceito de estrangeiro que estamos falando é um conceito desenvolvido por Chevallier (2002), que trata toda uma ocidentalidade como estrangeiros. Adão após sua expulsão do paraíso, passa a ser um exilado, um homem em busca de uma Pátria. Os filhos de Adão herdam essa condição de exilados e tornam-se hospedes de passagem, migrantes que vivem de forma errante sobre a terra em busca da desejada Pátria.

            As noticias sobre a fartura e riqueza na Amazônia movimentam os nordestinos para a região no período da guerra, homens com uma visão de mundo completamente diferente dos caboclos da região, mas por que razão classificar Manoel Patrício como estrangeiro? Nesse caso não se trata dele ter nascido aqui na Amazônia ou lá no Nordeste, seria o conceito da qual Chevallier (2002) afirma:

 

“(...) Assim, todo filho de Adão é um hospede de passagem, um estrangeiro em qualquer país em que se encontre, e até mesmo em seu próprio país. (...) Em toda sociedade o estrangeiro é aquele cujo amor está em algum outro lugar.”

 

            O senhor Manoel Patrício também é um hospede de passagem, um homem em busca de sua Pátria. Em sua narrativa ele conta toda sua trajetória de vida, narrando as dificuldades desde a infância até quando se torna homem feito (re)criando com minúcias o espaço por ele vivido. Os seringais, colocações que de tempos em tempos eram substituídas por outras, após seu esgotamento, desavenças com patrões ou outros trabalhadores, por proximidade maior de uma vila e ou rio e também por doenças.

            Os rios e igarapés com nomes definidos, seringais, vilarejos e mesmo colocações, faziam parte desse espaço vivido por Manoel Patrício, como havíamos falado antes uma espécie de cartografia imaginária, que existe apenas na memória, já que de forma material, concreta não existe, Manoel Patrício ao contrário dos nordestinos não sofre por não ter encontrado na Amazônia o Paraíso, a mãe provedora, ou por ter sido enganado por políticas de Estado.

       Manoel Patrício conhece muito bem esse pequeno mundo e suas dificuldades, mas ele é estrangeiro em sua própria terra, um andarilho em seu labirinto verde, um homem em busca da terra da fartura talvez Cocanha ou Xangrilá, mesmo sem nunca ter ouvido falar desses mundos, era um homem em busca de um mundo além do seu próprio mundo.

 

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