SOBRE O TEMPO

 

 

         O historiador é um dos criadores de tempo. Uma das suas funções é pensar e tecer o tempo: sua “missão social” criar a ordem para essa multidimensão imaginária. O tempo dominante durante esses últimos duzentos e cinqüenta anos (séculos dezoito ao vinte) é o tempo do progresso, do futuro, da revolução, do tempo realmente existente como dimensão natural. A História é produzida com essa e para essa perspectiva de tempo. Mas o tempo mudou, ou melhor, as condições básicas desse período mudaram: o tempo começa aos poucos a se tornar instável, hipertextual, hipersignico, sem origem e sem fins, sem melhoramentos. E a História entrou em crise: não crise do tempo, mas de como tomar novamente a função historiadora, que é gerar certa ordem temporal, certo sentido para o informe. Como se pudesse encontrar no tempo sua meta, sua hierarquia, uma volta a disciplinaridade. Mas o tempo enlouqueceu e a História não sabe o que fazer.

         Sendo o tempo uma polidimensão em devires imaginários, a questão da História não se resolve tecnicamente ou no patamar da própria disciplina. Sua substância precisa ser enfrentada fora do pensar tradicional do historiador. A História é incapaz de pensar sobre sua matéria (o tempo) sem fazer interferir seu específico sistema, criado exatamente por um desmesurado rizoma temporal. Só depois de refazer a questão do tempo é que se pode voltar ao centro da História.

         Enquanto o tempo na História for tratado como algo, como uma coisa, um “aspecto do real”, um “depósito do acontecido”, uma dimensão neutra e existente com sua ordem, movimento e estrutura; como uma expressão de sociedade, cultura e espaço; algo universal e natural; como qualquer coisa que lança uma luz “vindo do passado para o presente” ou quando o “futuro depende do passado”, os impasses historiográficos do fim do século XX não poderão se pôr numa possibilidade de resolução provisória, de redirecionamento, de refundação do fazer historiador, que tem patinado nas obviedades tradicionais.

         O tempo ainda, estranhamente, não deixou de ser usado em-nome (como a História), um lugar de aprendizagem seja para o príncipe, seja para o estado, seja para o trabalhador, seja para o “futuro da nação” e sua “memória”: o tempo ainda é ordenado para funções de dominância, não somente por discursos dominantes, mas principalmente de uma maneira que transforma a experiência viva numa discursividade morta, erudita e inútil.

         Por isso a História não “estuda” o passado, mas o tempo, que não é presente, passado ou futuro, mas a experiência virtual da “coletividade”, dos grupos e de indivíduos, de materiais, de campos, de técnicas e tecnologias, de saberes e poderes, de rituais e comportamentos, de fluxos e refluxos. Presente, passado e futuro já é interferência discursiva, determinado ordenamento, determinado sistema valorativo que inclui e exclui, visão de mundo se impondo à matéria viva da experiência imaginária da “coletividade”. Já começamos a ficar longe do tempo oitocentista (progressista e reacionário), do tempo novecentista (positivo e evolutivo), do tempo vintecentista (tecnológico e genocida): os tempos da natureza e do universo ocidentais, os tempos de uma tribo sendo reduzidos a um único tempo e imposto como exemplar, científico e verdadeiro. Seu telos e sua origem, cabeça e rabo do oroboro, era ocidental, tribal: esse o tempo da História, tempo e História que se dissolveram no ar.

         Essa História e esse tempo “começam na pré-história”, se impõem aos “mesopotamicos”, aos “egípcios”, aos “chineses”, aos “gregos”, a escravos, senhores e servos, a operários e camponeses, a revoluções e a todo tipo de regime. Começa com Heródoto, passa por Tucídides, Cícero, Agostinho e chega tranqüilamente ao fim do século XX como uma massa única, um corredor levando tudo numa direção, num sentido, numa ordem: o que difere são os pensadores e os historiadores. Dimensão neutra onde tudo acontece: fluxo de rio que corre para o mar. Mesmo desmoralizada enquanto "exemplum vitae", se mantêm como se ainda fosse a “escola comum” de “todos os povos”.

         Ou a História se torna um enfrentamento da sua função discursiva (dar ordem e sentido a experiência temporal: sua grande dignidade enquanto conhecimento) ou ficará em transe, rotacionando entre questões filosóficas, epistemológicas, técnicas e metodológicas. Pensando que “estuda o passado para compreender o presente e prever o futuro”, ou somente para formatar a lógica individual via educação como um preparo para a “vida do trabalho”.

         O tempo não é “aquilo que passa”, mas aquilo que, imaginária e simbolicamente, somos, e temos que enfrentar, modelar, interferir, refazer, negar e dissolver. Perdemos o poder da idéia de revolução porque nosso tempo, pelo menos durante o século XX, foi sendo imobilizado numa naturalização esgotante, numa universalização criminosa e numa racionalidade assassina. Num tempo tornado natureza, numa “sociedade” também naturalizada, ou “sociabilizada”, a revolução tornou-se ou uma impossibilidade ou um crime.

         Dissolvidos concretamente as comportas do presente, do passado e do futuro (compartimentos que desaparecem numa velocidade sem paralelo), o discurso historiográfico vem se enfraquecendo, se tornando inútil e ridículo: a rememoração construtiva da História satisfaz hoje somente ao estado, as oligarquias do saber e aos sensos comuns mais destroçados: nenhum passado se ilumina mais nem ilumina o presente, enquanto o futuro volta-se para dentro da pastosa inexperiência; já não podemos olhar nada como se olhássemos do futuro, muito menos do passado: o imediato e suas torrentes hipertextuais exigem outras estratégias, outra História, outra maneira de enfrentar a diferença, a multiplicidade, o genocídio, o horror conradiano, o cotidiano, o desaparecimento dos limites, a relativização radical de tudo, as novas politi-cidades: o tempo exige deixar de ser “planificado”, “consumido”, “distribuído” e “produzido”. Por trás desse tempo só há o mercado: o imediato do presente é o lugar do enfrentamento: o tempo se politiza de uma maneira inesperada: o imediato não é somente o que passa, o vazio, o irrecuperável, o intocável, mas o lugar da revolução, isto é, o lugar da História e da ação política: o futuro e o passado são dimensões vivas de um fazer agora, de um fazer contra (esse tempo e essa História só podem ser feitos num regime radical de negatividade): sem presentismo: o imediato é a maior densidade possível, ou mais vazia das coisas, dependendo de como os discursos, as práticas, os rituais, os protocolos o esvaziem ou o tratem como multidimensão virtual.