Sartre e a Liberdade: Impressões Sobre a Má-Fé
incipit: aproveito a obra de sartre na comemoração desses cem anos do seu nascimento para infestar sua obra e alguns conceitos: sartre aqui é somente desculpa para me soltar: essas palavras parecem de Sartre, mas são somente seus fantasmas que soltei sobre mim mesmo. assim, ao dizer sartre, me digo melhor porque ele está ali onde comecei. o corpo sartriano, essa inigualável ponte, será meu lócus de liberdade. vou devorar ele para satisfazer necrofagamente minhas exigências: com suas idéias, digo as minhas, com seus sentimentos digo os meus, com suas pontes alargo as minhas: e nos entredevoramos sem ser e sem estar.
1. Enganar aos outros pode ser fácil, não a nós: mas essa é a razão da má-fé. Ela é fuga do inescapável. Daí porque sua dimensão é ontológica. Fuga essencial de certas responsabilidades e da responsabilidade. Conforto e aflição pela condenação sartriana da liberdade, a má-fé disfarça nossas ações de nós mesmos e dos outros, para que nossas responsabilidades não sejam minhas, sejam de outro, de outros, do mundo: assim é visto e enfrentada outra realidade, outras verdades, outro eu e outras alteridades. A má-fé, em termos de consciência, é a própria dimensão de liberdade, de plasticidade da virtualidade individual, que pode enganar até a si mesmo sem se dar conta.
2. Temos responsabilidade conosco, escolhemos nossa vida e seu projeto (ou aceitamos a formatação como única realidade). Só há má-fé pela liberdade fundamental (má-fé é aceitar limitar sua própria liberdade): do caos ao ser, passamos pelas escolhas naquilo que nos tornamos. Do caos que somos ao nascer, passando pela formatação, que é aquilo que faz com que isso seja eu, faz com que eu participe de uma comunidade, de uma linguagem, de uma tradição. Esse trajeto num determinado momento exige escolhas minhas, posições, indisposições, crenças, participações, afirmações e negações. Há um momento onde aceito ou recuso aquilo que fizeram para me tornar o que sou, mas como sou mais do que essa feitura, pois sou livre, posso escolher. Nesse momento a má-fé, e não a lucidez, é dimensão essencial.
3. Somos a escolha que fazemos: e nosso mundo, aquele que aparece para nós, faz parte dessa escolha. Somos aquilo que se apresenta, se relaciona, se revela, aparece na experiência nossa com os outros. Esse se revelar desvela o que somos e, por conseguinte, nosso entorno, nossas escolhas, nossa má-fé e nossa lucidez, todos os sims e todos os nãos, nos cabendo gerar aquilo que sartre chama de essência: liberdade no projeto de existir.
4. Minha existência depende das minhas escolhas para esse projeto: na má-fé se nega a liberdade e a responsabilidade das minhas escolhas: os outros se sobrepõem a mim, o projeto da manada sobre o meu, os determinismos de classe, de sociedade, de tempo aparecem como forças intransponíveis. sem um ser definido, a não ser enquanto formatação, isto é, enquanto fôrma que sociabiliza e cria o tempo, seria preciso assumir algo individualizante, algo que fosse eu: pondo o foco sobre um deus, uma pátria, um povo, uma crença, um estado, uma língua, uma história a má-fé apaga a responsabilidade da escolha e o desespero por não poder dominar as conseqüências dessa im-posição: a responsabilidade passa pela liberdade. Fugindo dessa liberdade assumimos teatralmente papéis sociais, normalmente de vítimas. A teatralização social é sempre determinada seqüência de máscaras que nos escondem, escondem a responsabilidade e liberdade, escondem o entorno monstruoso que compactuamos: são álibis.
5. Medo de escolher, escolher a existência, de optar o que vou ser, constituindo minha perspectiva, minha essência, minha específica busca, minha voz, minha atuação, minha resistência, minhas aceitações (a liberdade não é, em primeiro lugar, uma “conquista” externa, um ponto de chegada ou o “resultado de um movimento social”). Sem liberdade, sem uma liberdade essencial, tudo isso é impossível (na má-fé fujo de mim, daquilo que deixo de ser, daquilo que poderia ser). Daí o medo, a angústia, o desespero, os receios com a vida além daquelas advindas do horror do campo de concentração que é a vida para os pobres, a grande e esmagadora maioria (o horror é negar à essa maioria a possibilidade da liberdade: desde sempre não esquecer de dizer que eles são lixo e não podem escolher porque há um deus, um espírito, um estado, algo qualquer, que escolherá por eles, alguma coisa que é melhor do que eles). Não há nunca os universais (o Homem, a Humanidade, a História, a Natureza), mas sempre a individualidades esmagadas, a liberdade vista como limitação e afastamento do bem (a manada). Tanto a manada quanto deus, espíritos, matérias e energias são recusas da liberdade, são delegações, da responsabilidade consigo mesmo e com os outros: mas essa mesma recusa só é possível pela liberdade essencial que é negada, pondo em seu lugar a má-fé, desde o destino até um deus qualquer ou a economia, a política, a religião, a família, seja o que for. O que importa à má-fé é uma desculpa, um bode expiatório, um culpado. Eu e minha liberdade já não temos nada haver. A má-fé nega a liberdade. Nega a mim mesmo como escolha e a responsabilidade por escolher: nega a singularidade (por isso nada sintetiza maia a má-fé do que os regimes totalitários, autoritários e as congregações de todo tipo). Por isso posso cantar de mãos dadas com a manada: eu aceitei esse caminho, essa hipóstase, essa falsa recusa de ser eu mesmo. Minhas razões não advêm mais de mim, mas sempre de algo fora, além, antes, misterioso, escondido. A má-fé instaura a falsidade e a infidelidade como formas de vida.
6. A alienação e a ideologia não podem ser tomadas como “fundamento”, como “causa”, como “origem” ou justificativa: isso seria tratar o indivíduo como coisa amorfa, impotente, feita pelo “processo de produção”, reprodução e consumo; refugo, limalha e pó-de-serra da mais-valia, criatura sem possibilidade de escolha, sem nenhuma forma de poder: a inversão é absolutamente necessária: começar pondo os indivíduos como “forças naturais” e “forças sociais e históricas” é tornar, primeiro, cada um inocente e incapaz (tornar infantil, tolo, bárbaro, inumano, secundário, dispensável) e, segundo, ver as modificações sociais apenas pelo viés do estado e do partido, do “grande herói” e dos “momentos históricos”, isto é, sob o tacão seja das naturezas, seja das “leis sociais” ou de uma “vanguarda esclarecida” que indicará o caminho e a forma de estado e vida, de realidade e verdade que devem ser vividos.
7. Na má-fé quem mente e para quem se mente é o mesmo: o enganador e o enganado se confundem na mesma máscara (na mesma persona, no mesmo papel, na mesma atividade). Para negar a mim mesmo, para impossibilitar a plenitude de minha liberdade, preciso também mentir verdadeiramente para os outros, preciso defender minha vida e minhas escolhas, preciso combater a liberdade dos outros e a liberdade nos outros. A negatividade dessa não-escolha, desse não permitir ao outro a liberdade, caracteriza a consciência e aparece como ética e moral, ação política e educação, utopia e filosofia. O escravo e o feitor, o prisioneiro e o carcereiro, o carrasco e o juiz, o pai e o professor, o patrão e o político, o sacerdote e as ovelhas são as formas híbridas de ser dessa consciência covarde. Para que o outro acredite é preciso que eu acredite antes. Só posso punir se me puno antes; só posso legislar contra a liberdade do outro se antes já anulei minha liberdade. Mas para fazer isso entro numa dimensão diferente da mentira: na mentira engano o outro sabendo que minto. Sabendo o processo, a forma e o conteúdo da mentira, sua finalidade. Não há inicialmente, na má-fé, esse outro para enganar como na mentira.
8. A negação da má-fé é negação-de-si-mesmo ao mesmo tempo em que é negação de certos outros, de certas formas de vida, de pensar e agir; mas não podemos dizer que ela se faz somente numa interioridade, mas em reação aos outros, normalmente para se integrar, para recusar a liberdade e a responsabilidade com essa liberdade, com o se fazer. Na má-fé há a consciência das escolhas seja na interioridade seja nas relações sociais. A má-fé é projeto livre da consciência contra essa mesma liberdade.
9. A má-fé não é algo externo ou tão íntimo que afaste a responsabilidade da consciência (nem inconsciente nem ideologia explicam): é na consciência o local de combate, a consciência do que acontece ou aconteceu: derrota ou vitória, rendição ou aceitação são constituídas pela consciência. O eixo dos “distúrbios da mente” são exemplarmente conscientes. Não se perde os fios: simplesmente negamos toda a rede por que a má-fé criou dependências comigo mesmo (coerência e vergonha) e com os outros (como devo ser para os outros, como devo pensar para ser aceito e querido, para não ser um excluído). A responsabilidade por nossas ações aparece inteira nessa dimensão da má-fé. Afirmação e desejo, negação e vontade, aceitação e fuga, entrega e descontrole, inocência e culpa são manipulados conscientemente.
10. Natureza e história, estado e corpo, sexo e cor, indivíduo e sociedade são espécies de fugas, de má-fé, de materializações cômodas de má-fé pessoal e coletiva. Nego a liberdade para afirmar o determinismo seja ele qual for; nego a responsabilidade para elevar a lei; dissolvo a individualidade para impor a coletividade, a sociedade; nego meu desejo para desejar o que todos devem desejar: deixo de ser criador para ser criado, deixo de ser indivíduo para ser sujeito, deixo de ser eu para ser objeto, deixo de criar o universo e passo a ser somente elemento do mundo. Aceito ser o não ser: escravo, servo, trabalhador, macho, fêmea, brasileiro, velho, novo, adolescente, pobre, rico.
11. Ser rico ou pobre não é escolha. É o que sartre chama de facticidade, o que põe limite. Eu apareço em condições dadas, eu pareço ser condições dadas. Mas ser uma das “classes”, aceitar ser uma das “classes”, comungar com suas crenças e limites, é parte da minha liberdade. Minha consciência depois de determinado ponto se vincula à rede de sua escolha. O limite existe porque escolho o limite, eis a má-fé, por ver nele uma saída, uma falta de saída, uma comunhão, uma determinação, o melhor. Praticamente tudo que sou, mesmo parecendo “natural”, “histórico”, “social”, “econômico” ou “cultural”, não passa de escolha, de aceitação, de curvamento de espinha, de fechamento de olhos e boca, de um fechar escandaloso do desejo, do sonho, da revolta, da liberdade: eu sou esta manada, a manada é o universo, a manada é eterna, a manada é o único horizonte, a única verdade, a única vida. Quando as “condições externas”, a facticidade, é compreendida como menor, insignificante, eu não fico mais rico ou mais pobre (desejo do consumidor), mas me liberto de suas condições, de suas “redes intransponíveis”: a consciência é a transcendência da facticidade, é a compreensão prática de sua plasticidade, da sua “possibilidade objetiva” em ser mudada, transformada, revolucionada: não sou essa miséria ou essa riqueza, não sou essa cor que dizem que tenho, não sou essa deficiência, não sou esta nacionalidade, essa cultura, essa língua, esse território, essa cidade, esse sexo, esse desejo, essa vontade, esse emprego, essa manada: sou a transcendência da negatividade: só assim posso dizer quem sou e para quem sou: sou o outro. sem poder ser mais e sem poder ser menos (facticidade) e podendo ser outra coisa contra a manada (transcendência) se põe não somente a questão da má-fé, mas a questão da revolução e sua maneira de ser nesse começo de milênio.
12. A revolução é absolutamente necessária, imprescindível, inescapável: sem revolução não há existência; a revolução não é conseqüência natural, social, histórica ou de classe: a revolução é a consciência da plasticidade da existência que somos nós mesmos, criada e mantida por nós; o horror social é produzido, reproduzido e mantido por todos nós em campos e redes de crenças e práticas; a revolução é a consciência de que somos nós os autores, os atores, os cenários, o palco, a platéia e o teatro: mudar é, em primeiro lugar, saber e agir conforme isso: é atingir a plasticidade na sua matéria, no seu ritmo, no seu acorde, nos seus contrapontos; a revolução não é uma situação futura, um estado futuro, não é um estado a se alcançar, um governo, um país, um povo, um lugar feliz e próspero, cheio de comida, moradia e empregos, mas a luta contra o presente, contra o passado, contra as formas de submissão, de imposição, contra o trabalho; as revoluções armadas sempre buscam conquistar o estado para fazer ele funcionar melhor: a meta é sempre ser contra a existência do estado em que forma seja; sem lutar pelo estado a revolução não pode ser armada, violenta, não só por princípios éticos ou morais, mas por questões ontológicas: o estado conquistado não é vitória, mas infantil derrota para o monstro, é continuar o mesmo sonhando que tudo mudou; lutar com resistências, greves, não-violência, vírus, educação, consciência, com palavras, drogas, arte, suicídios, com tudo que trave os sistemas e redes sociais, com tudo que dê mais consciência, que enferruje, que infeccione, que crie dúvida, atrito; atingir o imaginário em suas crenças, em suas inércias, em suas imobilidades, em sua subserviência; criar destruindo, educar em atrito, produzir desvelando, revelar explodindo; desconstrução crítica sem ataque físico, sem destruição material, pois são iscas das crenças: o real não está nas coisas, mas em si mesmo enquanto projetor de realidades; vandalizar, protestar, desfigurar; pornografar o universo, o corpo, as palavras, as relações; sabotar, minar, solapar, não fazer parte de nenhum partido, de nenhuma organização, de nenhum galinheiro cheio de ilusões corporativas, comunitárias; não desejar o poder e as coisas: o social é uma ilusão para a manada, para fazer comungar, para apagar a individualidade: não usar nunca o poder, libertar ele da carne, da pele, dos ossos, dos sonhos e desejos.
13. Mas a revolução só pode ser novamente posta em questão ao se atravessar a densa atmosfera de má-fé. Essa atmosfera, essa névoa nefasta, foi criada e mantida durante todo o século xx e ainda se mantém viva e atuante. Negar que a tradicional maneira de “fazer revolução” é periculosa, criminosa e brutal (principalmente depois da “tomada do poder”, quando se inicia a “reorganização do estado”, as perseguições, os campos de extermínio, as torturas, os silenciamentos, as obrigações impossíveis) é começar a buscar concretamente saídas para atingir o real na sua plasticidade, na sua virtualidade móvel e polimórfica: é usar os meios não do estado para recompor o estado (isso é a revolução tradicional: o estado, a economia e as “classes dominantes” se curando através da ingenuidade das “classes dominadas” e dos “revolucionários” loucos por poder, aqueles que suas famílias, seus grupos e classes perderam), mas da própria virtualidade na sua medida de criação imaginária: atingir as densas redes virtuais dos múltiplos imaginários seria atingir o real, o concreto em sua forma de existência, reprodutibilidade e dimensão (a revolução está nessa interferência). a revolução não é feita imitando o passado, mas aprendendo com ele que a revolução está aqui, agora, de uma forma completamente nova, exigente e em movimento. fazer a revolução é ouvir e criar os projetos para esse agora.
14. Não se desculpar, assumir, não escapar, se expor, não se livrar, enfrentar: a má-fé é alivio, solução, fuga, ponto de parada, o exercício de uma máscara, uma satisfação e uma comunhão (ao mesmo tempo é ameaça total): a responsabilidade da liberdade luta contra a coisificação, o destino, os outros, a manada, a história, as leis, a genética, o clima, a raça, a classe, os costumes, as circunstâncias, a idade: não devo culpar nada nem ninguém: eu escolhi, esse sou eu (sou muitos, sou legião, não tenho nome, não sou um papel num teatro escrito e dirigido por outros: não sou, nem sou o que pareço ser, nem o que posso ser), isso são vocês, esses são meus motivos, minhas idéias, meus corpos, minhas palavras (a franqueza a e sinceridade são requisitos: a parrhesia): nada me determinou ou obrigou: eu escolhi: sou essa escolha, essa liberdade, a negatividade dentro dessas circunstâncias (por isso não sou as máscaras que querem que eu seja, nem exerço as funções que dizem esse lugar que ocupo por escolha e resistência, jamais por necessidade e obrigação: negar exemplarmente sem cessar desfaz o tempo inteiro os papéis: dissolvo os papeis e os atores que acreditam que são reais). E somente essa liberdade afirmo e confirmo. Não adianta pressão, tortura, ameaça, terror: não escolho a má-fé como saída: o universo que se fôda e vá à merda.
15. Minha depressão, minha amargura, minhas angústias, minha impotência, minha solidão, meu cansaço, meu medo são máscaras que exigem sentimentos apropriados, palavras e emoções corretas: meu corpo imita cada “estado d’alma” como o ator imita seu personagem até se tornar ele. Ou a consciência e a liberdade de não se infestar com as máscaras possíveis na virtualidade íntima, aquela que exercemos sozinhos como num teatro da crueldade para dizer aos outros, ou exercemos com os outros para satisfazer nossa má-fé, nos livrando da responsabilidade e da liberdade em fazer cessar essa situação, essa representação, esse teatro, essa dramatização produzida por nós mesmos: representar, “em sociedade”, é teatralizar o poder. Para que todas aquelas situações fossem verdadeiras seria preciso que eu fosse uma delas ou todas, que elas fossem “dentro de mim” um espaço real, natural, social e pessoal, que minha consciência pudesse se tornar aqueles sentimentos, mas como sou nada, sou somente enquanto teatralizo, tudo isso é má-fé, é papel de teatro, de drama, de fuga da liberdade, da responsabilidade pela máscara e suas representações.
16. Quando afirmo: “sou homem”, “sou mulher”, “sou gay”, “sou lésbica”, “sou negro”, “sou deficiente”, “sou funcionário público”, “sou advogado”, sou “palhaço”: o que estou dizendo é que aceito o papel imposto pela manada, as idéias da manada, a natureza e as inversões da manada (normalmente projetando idéias, conceitos, crenças “no real”, como se “o real” fosse assim e não uma síntese exatamente desses cordões de crenças), assim como as conseqüências do exercício desse papel, do limite desse desejo, desse corpo, dessa alma. Acredito piamente que esses papéis são reais, verdadeiros, universais, naturais. Passo a ser um deles. sofrendo uma dramatização esperada e exercida por mim não porque eu sou isso, mas porque assim exige o exercício desse papel para os outros. Passo a representar e a descolar dessa representação sua condição de teatro: e torno real o personagem e suas circunstâncias. Naturalizar, historicizar e universalizar são as formas mais cruéis de justificar a má-fé como algo verdadeiro, para todos e sempre: devo assumir não uma máscara, não um ser, uma maneira de ser e desejar, mas os fluxos do desejo, a liberdade de não ser, me tornando qualquer coisa naquele momento, naquelas circunstâncias: eu nunca sou o que sou, mas o que escolho ser naquele momento: sem fugir, sem escamotear, sem mentir, sem esconder. Não sou isso agora nem aquilo antes, mas todas as formas da liberdade, do olhar, da língua, do corpo, das relações: a coerência é com a incoerência, que é a forma da liberdade. Só posso tomar consciência desse ser em devires, só posso dizer que essa consciência são esses devires, porque não me imobilizo num ser, não uso a má-fé para cessar numa representação, afirmando nem o que sou nem o que não sou: sou-tudo-o-que-não-sou e não-sou-tudo-o-que-sou: posso-ser-tudo-que-não-sou e não-ser-tudo-que-sou: posso-não-ser porque não-sou: sou-ser-em-devires: meu ser ad-virá.
17. A má-fé é consciente, não é inocente nem é crítica. A má-fé recusa ver, recusa o que está diante dos seus olhos: ela escolhe ver aquilo que esperam que seja visto: ela é rede de decisões muito precisas sobre o que é a existência, os outros e eu, o real e o imaginário, o permitido e o proibido. A consciência sabe o que faz e porquê. Sabe o que perde e o que esconde. Mas cria e projeta seu universo submisso, seu sonho de determinação, de atrelamento, de coisificação e comunhão: a má-fé é um dos cimentos da realidade, da virtualidade enquanto universo da colméia, do cardume, do formigueiro: a má-fé é a parte falsa, íntima, supurando, de uma matriz cínica e perversa. Ela se confirma a si mesma e tudo que ele possibilita existir confirma ela mesma: a má-fé é um círculo: ela é sua própria evidência, mas sua evidência aparece como outra coisa (mundo, sociedade, natureza, leis, corpo, história, povo, costumes, economia, política, religião): é verdadeira porque a base de sua verdade, as circunstâncias e situações, a materialidade e relações, são criadas e mantidas por ela mesma. Ela é o criador, o juiz, o carrasco e o produtor de seu próprio círculo naturalizado e universalizador: o mundo nos aparece da “maneira que é” por ser pura má-fé: somos-o-que-somos por má-fé, não por algum “processo histórico-social”.
18. Crer em qualquer coisa é abdicar de inquirir contra a crença. Querer atingir suas fissuras, seus vazios, a mim mesmo como sustentáculo dessa crença e aos que iguais a mim que cantam essas crenças de mãos dadas. A má-fé é boa-fé. Mas toda forma de crença, em si mesma, é não crença: ela só se mantém como crença se não se questiona, não destrói seus limites. A satisfação dentro das crenças (sejam científicas, filosóficas ou religiosas) é prisão viciosa. Crer e crer que se crê é ex-por a má-fé da fé, a fé enquanto má-fé: na verdade só acredito para participar da manada, por participar da manada. Mas essa tensão mantém a existência. Entre a recusa e o exercício da crença consolidamos o real, pois estamos de mãos dadas na dúvida, no perigo, no vazio (que não são nunca externos, mas insuficiências da fé por ser somente má-fé). Para crermos juntos, nego a liberdade, a mim e aos outros; nego a consciência e minha multiplicidade assumindo uma máscara e exigindo máscaras sociais específicas: fujo da responsabilidade em ser o construtor do teatro: e ponho a culpa naqueles que não compartilham o meu teatro: daí porque dentro de todo extermínio, de toda tortura íntima ou grupal, de toda perseguição, de toda discriminação, racismo e apartaide está a má-fé como uma defesa do bem, da verdade, da realidade, da natureza e das leis, suprema defesa da manada. a má-fé é a visibilidade das contradições e contradicções, das múltiplas desagregações da virtualidade íntima, grupal e social.
19. O que possibilita a má-fé não é a consciência como um receptáculo, como pensavam antes da fenomenologia e antes do existencialismo e ainda pensa “a ciência”; nem uma consciência-nada que é somente “consciência de alguma coisa” (o que se busca não são as coisas, como queria Sartre, mas as relações vivas entre-nós enquanto ilusão gerativa), abertura para o ente: qualquer dessas idéias fazem parte de crenças localizadas, datadas, crenças que perdem sua condição de serem idéias (não são nem podem ser o real, a verdadeira realidade): o que possibilita a má-fé é precisamente tanto a consciência quanto os indivíduos, a comunidade e o real, serem criações incessantes das relações vivas e imaginárias entre os indivíduos que, por não compartilharem do todo da criação em sua temporalidade repleta, criam fantasmas e defesas de sua realidade e de suas relações usando esses fantasmas como autores, máscaras, papéis, cenários, personagens, situações. O respeito e imitação disso tudo possibilita tanto a reprodução quanto a circulação: o real se repara, se restaura, se imita e, assim, cria uma identidade de sobrevivência, forma de existência que ele luta para fazer continuar. A má-fé não é rede dispensável num universo desses: ela é essencial. A chamada “atividade humana” é, na verdade, má-fé: essa é a forma de existência do imaginário que é o real, a virtualidade hologramática que vivemos como o real e que tem no tempo sua substância. Aquilo que está no mundo está em nós em primeiro lugar; aparece por ser um efeito ontológico de nós em funcionamento, em infinitas relações vivas de má-fé: assim criamos o universo e seus específicos limites.
20. Sem valores, sem um direcionamento valorativo; sozinhos no “deserto do real”; sem nenhuma desculpa razoável e legítima; responsável por nós mesmos, nossas decisões e paixões; sem um deus, um pai, um juiz, um herói, um hermeneuta para impor ou justificar leis e sinais; sem palavras eternas; sem natureza (se a natureza não existe tudo é possível): somos nós e somente nós quem faz e refaz tudo, que designa e quem decifra, quem acolhe e quem espalha, quem aceita e quem revoluciona: condenados à liberdade por nosso próprio existir, liberdade feita e refeita por nós, o caminho nessa noite escura é iluminado somente por nós mesmos: somos a origem, o suporte, a matéria e os fins da nossa ética e da nossa moral; somos responsáveis por tudo: o real somos nós em ação e inanição. Lutar contra as mil facetas multiplicadas ao infinito da má-fé é uma das tarefas inescapáveis da práxis em seu sentido restrito de reunião de prática e teoria.
21. Sendo livre, buscando a liberdade, busco a liberdade para todos, mas não num projeto estatal, numa revolução criminosa, para uma sociedade centrífuga e para um cotidiano de gulag. Sem a desculpa da natureza, da sociedade e da história: aberto em ação digo a matéria do imaginário, que é dizer o real, as deformações do real e a maneira viva de de-formar ele segundo a liberdade, o projeto de ser e de se tornar.
casa-azul-sobre-o-madeira
10 a 13 de junho de 2005
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