RUAS

 

 

incipt: [rua da alegria, rua de areia, rua de cá, rua de lá, rua de sangue, rua do comércio, rua dos apaixonados, rua dos cegos, rua dos escravos, rua dos indiferentes, rua dos loucos, rua dos penhores, rua dos trabalhadores, rua dos vagabundos, rua dos velhos, ruas abertas, ruas alucinadas, ruas ambíguas, ruas amorosas, ruas aristocráticas, ruas assombradas, ruas bêbadas, ruas caluniosas, ruas cancerosas, ruas carnavalescas, ruas claras, ruas conflituosas, ruas confusas, ruas covardes, ruas criminosas, ruas da fantasia, ruas da madrugada, ruas da morte, ruas da noite, ruas da ponte, ruas da praia, ruas da solidão, ruas da tarde, ruas das mulheres, ruas novas, ruas das paixões, ruas de baixo, ruas de cima, ruas de dentro, ruas de ferro, ruas de fora, ruas de gente, ruas de madeira, ruas de pedra, ruas de tijolos, ruas decadentes, ruas delicadas, ruas depravadas, ruas desertas, ruas desgraçadas, ruas desviadas, ruas distantes, ruas do choro, ruas do dia, ruas do horizonte, ruas do mar, ruas do meio, ruas do olho, ruas do prazer, ruas do reflexo, ruas do riso, ruas do vício, ruas dos homens, ruas dos surdos, ruas elogiosas, ruas escuras, ruas esquecidas, ruas estranguladas, ruas estreitas, ruas familiares, ruas fechadas, ruas furiosas, ruas gananciosas, ruas guerreiras, ruas honestas, ruas humildes, ruas imóveis, ruas impertinentes, ruas imundas, ruas infames; ruas infelizes, ruas infernais, ruas íntimas, ruas invejosas, ruas largas, ruas levianas, ruas livres, ruas medrosas, ruas melancólicas, ruas mentirosas, ruas miseráveis, ruas misteriosas, ruas mortais, ruas mortas, ruas movediças, ruas nervosas, ruas nobres, ruas perigosas, ruas poéticas, ruas prodigiosas, ruas próximas, ruas puras, ruas revoltosas, ruas românticas, ruas selvagens, ruas sem alma, ruas sem história, ruas sem lugar, ruas sem memória, ruas sem nome, ruas sinistras, ruas sinistras, ruas sóbrias, ruas sonâmbulas, ruas surdas, ruas trágicas, ruas vaidosas, ruas velhas, ruas verticais, ruas viajadas, ruas virgens.]

 

porque o pequeno, o minúsculo e o insignificante escondem melhor suas fundações, é que as cosmópoles desvendam aquilo que as cidades sempre velaram: o segredo das ruas.

as ruas não podem ser amadas. elas não são partilhadas por todos a não ser na ilusão das próprias ruas. a intimidade é fingida. ali não somos irmãos, nem família, nem companheiros, nem camaradas, nem amigos (também ilusões projetadas pelas ruas, criando as casas, as famílias, as corporações). servos clamando a igualdade. diferentes e tão parecidos: acessórios da produção e do consumo: prostitutas, cães vadios, trabalhadores, desviados, monstros, polícias, miseráveis. ali nada nos libera, tudo nos nivela no sonho da diferença.

é ruga, sulco, veio, rio, via: tempo, desvão entre casas: torção ficcional, ex-posição teatral das máscaras. a rua não é sintoma de vida, mas de exploração, de dor, de descaso, de indiferença, de fingimento: a rua só existe enquanto rua para os que podem. as ruas não têm alma. a rua não agasalha sequer a miséria que vegeta e tenta se abrigar nela: fêmea de tetas frias, secas e murchas.

as ruas se abrem para outras ruas. a rua é a dimensão dos medíocres, dos infelizes e dos artistas (de todos os esperançosos ingênuos). mas antes de tudo é passagem transversalizada dos trabalhadores (fundado, traçado, forçado pelo trabalho), essas formigas. mas a rua não é generosa. ela não denuncia o acidente, o crime, o delírio, nem a miséria: todas as palavras sobre ela escondem que nada pode ser dito realmente sobre ela. é o lugar dos que não podem dizer ou se dizer: são os seus não lugares: a rua não é: por isso aparece e só por isso aparece.

nela todas as línguas se reviram nas bocas e ouvidos, nela não há línguas. nela as línguas em coro apontam a morte e passam. impressões selvagens sempre abertas sobre transversais. a rua é o espaço dos lugares comuns. da nivelação. tudo nelas é raso, é clichê, é contra língua.

a rua é soluço e espasmo. na argamassa do calçamento há sangue, suor, esperma, lágrimas, catarro: suas bebidas prediletas. cada casa se ergue do cansaço exaustivo de uma infinidade de seres sem nome, sem memória, sem vestígios: são precisos ciências inteiras para detectar alguns arranhões sem corpo, sem história, sem papéis. os líquidos materializados em tudo isso não cantam, não dançam, não falam, não sofrem, não praguejam: se dão a beber calados.

a rua tem nervos em carne viva. a rua nunca é ingênua. ela mesma comete crimes, ela mesma treme em delírio, ela mesma chama os repressores (não há ruas sem repressores), ela mesma faz calar: ela come somente carne crua. a rua não cria nada.

para pensar que se conhece ela, para pensar que se vê ali dentro da sua jaula, é preciso andar como quem pode, andar como aquele que pode não andar (os corredores): seus verdadeiros seres (os andadores) não reparam nela. o flanador e sua arte é exercício dos mesmos exploradores que fazem com que ela seja um monstro: só há beleza nela quando se está leve, descompromissado com trabalho, comida, moradia, desurgenciado: a rua só se entrega na mentira romântica dos flanadores: ruas de palavras: ruas de poemas: formas de não ver: poética de olhos bem abertos.

flanar não é ser vagabundo e refletir sobre as coisas, mas fazer parte daqueles que não podem compreender as ruas. eles fazem parte daquilo que fazem com que ela seja o indisível, principalmente porque os que poderiam dizer o que são elas estão tão atarefados, tão esgotados, tão magoados, com tanta fome e frio, com tantos calos e pressa, tão desiludidos, tão coisa e tão bicho sem saber, com tanto medo, que nada podem comunicar e se comunicassem diriam o que dizem os flanadores, os cientistas, os filósofos: os donos da palavra, da imagem, da idéia, do sonho: eles só poderiam dizer como diz o senhor e os servos do senhor. a vadiagem dos que podem somente pensar, somente criar vento sobre a aspereza cruciante, não podem descobrir, abrir sua clareira.

perambular com inteligência cria sobre as ruas um traçado imaginário que obscurece as ruas: eles falam somente dessa sombra, não das ruas. todo transeunte é um criminoso incomunicável: nele reside a beleza cortical que não pode ser transmitida.

para o tipo que pensa poder compreender e viver cada rua como um ser vivo e imóvel a rua não se entrega a não ser enquanto imagens e palavras do lugar comum das ruas: seu viés é o mesmo das ruas: esse ponto cego: essa fala desfala as ruas com seus próprios mecanismos e armadilhas. porque as ruas nascem das feiras, do mercado, do comércio, da indústria, das finanças, do estado, do mistério: dos senhores guardando nos currais que são as casas, que são os edifícios e nas valas permitidas das ruas seus trabalhadores: seu ser nunca está nelas: está sempre antes, sempre depois: está sempre numa rua que não conseguimos encontrar, numa esquina sempre depois de outra esquina: sempre ou no todo ou no fragmento: num ponto ofuscado das transversais, onde não se pode ver nada nem ser visto, onde não se diz nem é dito, nem se toca ou se é tocado, onde não se pensa nem é pensado.

o nome e o sentido das ruas são ironias macabras, perversidades, esquecimentos. querem somente imitar sem conseguir se tornar alguém: as ruas invejam os nomes, as individualidades, as singularidades, a diferença, a beleza. ruas que parecem palhaços; outras são sérias; aquelas são pretensiosas; as do outro lado riem, lambem, chupam, dançam; algumas comem, rastejam, morrem. um universo de ruas nomeadas sem saber que possuem nomes da mesma maneira dos trabalhadores: para não se perderem, não se misturarem, poderem pagar em seu nome.

o tempo das ruas é a noite, é sempre a outra rua, onde não se está. as ruas não lutam contra treva nem em pleno sol do meio dia.

onde desponta o cansaço, o trabalho, a humilhação; a esperança reprodutiva; o inútil consumo; a consagração do horror - onde acaba a vida; o sonho; a conversa; a criação; o caminho: começa a rua.

nenhuma dessas pedras nos conhecem ou reconhecem mesmo quando vivemos cem anos passando por elas: nossa recordação mente sempre sobre as ruas porque caem em suas armadilhas.

a rua faz parte, sempre, do espaço da decadência, do passageiro, do armado para vender, do aberto para render, do destroçado para satisfazer o senhor. elas são um momento do comércio.

na rua se anda sozinho, se aprende a ser sozinho: onde se morre sempre sozinho. é onde está o mistério, o escândalo, o terror. onde os que querem subir se tornam iguais aos que estão descendo, onde os de baixo são iguais aos de cima. são sempre compostas de quase verdades, mentiras, lisonjas, insultos e fantasias que escondem sua alma da nossa carne. a rua só não é ocultação para os loucos: para eles elas não existem: são cenários que escondem mecanismos do viver.

as ruas e seus labirintos são ilusões perversas produzidas para que os escravos pensem que não estão num formigueiro, que estejam num teatro razoável, num mundo que pode melhorar, numa vida que pode ser protegida. as ruas não são tomadas por loucos, o que desvendaria rapidamente seus cenários monstruosos, mas por escravos delirantes segregando, com seus músculos e suas crenças, a realidade. são todos fantasmas tristes que vivem do pó das ruas, das migalhas da exploração como ratazanas, como gatos famintos e cães em carne aberta de sarna e solidão.