RODIN
O grande escultor francês Auguste Rodin nos aparece como o protótipo do escultor, do artista, daquele que mergulhou fundo na alma humana e de lá retirou a forma, a matriz, o dizer, o gesto fundamental. Escultor que resume os séculos anteriores e projeta todos os possíveis da forma: a forma germinando como colônia de bactérias. Aquele que dominou não somente as técnicas, mas arrojou um olhar essencial sobre as coisas, deixando uma marca indelével. Arte que inspira mesmo aqueles que seguem, depois dele, outros caminhos, e aquele que muda a visão dos que o antecederam. Um eixo artístico inescapável. Aquele que era um ardente estudioso da Arte Clássica e do Renascimento, tendo praticado em sua obra uma síntese insuperável. Tendo das ruínas Clássicas e de Miguel Ângelo recebido a idéia de desprezo a aparência externa das suas obras, deixando para a imaginação do expectador o possível complemento. Esse inacabamento irritava o público ao mesmo tempo em que fazia a sua fama. É um Miguel Ângelo da modernidade. Rodin era e continua sendo para muitos a imagem acabada de um deus, ou do artista como um deus, aquele que cria formas novas, movimento inesperado e vida onde antes só havia pedra, metal, argila.
A primeira questão é saber porque durante muitos anos acreditei, vi, senti, pensei assim, igual a todo mundo; segundo, porque ainda praticamente todos assim consideram, vêem, crêem, desenvolvem histórica e teoricamente não somente a escultura, como a História da Arte: porque não se percebeu nem se percebe o óbvio? Principalmente quando a questão envolve, antes de tudo, o olho, o tato e as formas de reflexão diretamente ligadas a forma.
Não há em toda a obra de Rodin um único pedaço que não seja uma pose, não participe de um gestual pequeno-burguês e burguês, ao bufo teatral. Rodin é o gestual ridículo transformado em forma; o gestual posudo (aquele que parece significativo e universal mas é somente o de uma classe que se toma como universal) daquele que vive de rendas, vive do comercio, daquele que domina as finanças, vai a Opera, está nas conversas, nos bulevares, daqueles que se deliciam na metrópole, no centro do mundo, mas jamais participaram das aristocracias destronadas e postas como bibelô das burguesias nos libretos, nas saídas das festas, ao longe.
Esse gestual sem origem (dizendo que é natural e universal), tem em si mesmo, em sua grandiloqüência de grandes significados, no já consolidado trajeto (história) burguês, seu próprio pedestal, seu postal. E a vitória desta obra escultórica é não somente um esquecimento, mas uma conquista, um triunfo daquele universo que já não se põe em dúvida. Rodin representa o ridículo já não visto ou já não podendo ser visto por muito tempo dentro do próximo século: o anti-Rodin tanto no século XIX quanto no século XX, sempre foi questão artística, não a apreensão de um caricato montado como arte, como modelo, sendo somente reflexo farcesco, histriônico e inconsciente daquilo que uma classe que se torna dominante passa a considerar, a fazer, a ver, a desejar, a acreditar como natural, universal, histórico e artístico. E não se consegue mais ver diferente, a não ser dentro da própria lógica instaurada pelo conjunto de poderes que a formataram.
A segunda questão que nos interessa é porque ainda praticamente todos assim consideram, vêem, crêem, desenvolvem histórica e teoricamente não somente a escultura, como a História da Arte. A resposta já se encontra delineada nos pontos anteriores. O universo cultural dominante, aquilo que é considerado, que não é excluído, tem poder, tem valor universal, é gerado nos centros de dispersão, se tornam parte da história, parte do arsenal humano, daquilo que foi conquista da raça, daquilo que apagou sua instauração e a função que a fez existir, persistir e se impor como exemplo. Não é mais possível ver o óbvio porque esse óbvio é toda a realidade, sem outro parâmetro, que foi destruído, esquecido ou impossibilitado de existir ou significar: e sem história, sem camadas significativas uma obra já não representa nada.
A primeira questão, é saber porque durante muitos anos acreditei, vi, senti e pensei que Rodin era o que todos dizem. As respostas possíveis dentro de um conjunto em rearticulação é que minha posição perceptiva comunga com a instauração, reprodução e manutenção daquilo que se entende como real e como campo cultural: meu programa não é nem pode ser escrito atemporalmente nem por mim. Minha inteligência, minha cultura, minha percepção cultural são marcadas pela instauração de poder dos campos onde trafego, onde penso, onde falo, onde sinto, onde desejo, onde crio. Meu Auguste Rodin era o mesmo do mundo. Eu sou marcado pelas crenças que se pensam autônomas quando é esse mesmo sistema de crenças que se pensa a si mesmo tendo como garantia esse mesmo sistema, dizendo sempre que está além, esta fora do limite, é o todo, é universal: a voz do senhor, a razão do senhor, o corpo do senhor, o desejo do senhor estão dentro, entranhados a ponto de não haver nada além do senhor.