O RITO DE INICIAÇÃO DE EUCLIDES DA CUNHA NO SERTÃO

 

Enviado a Canudos pelo `Estado' no fim do século passado, o escritor assombrou-se lentamente com a região, mudança de espírito verificada em `Diário de uma Expedição'

 

UBIRATAN BRASIL

 

Empoleirado no lombo de um cavalo ou comprimido no tombadilho de um navio, nada parecia ser empecilho para o escritor Euclides da Cunha (1866-1909). Escolhido por Julio Mesquita para cobrir o levante de Canudos para o Estado de S. Paulo, o escritor deixou a capital paulista no dia 1º de agosto de 1897. Outros correspondentes já acompanhavam as infrutíferas tentativas do exército de derrotar os seguidores de Antônio Conselheiro, no interior da Bahia, e Euclides destacava-se como o escolhido natural para representar o Estado: colaborador havia nove anos, o escritor publicara, nos dias 14 de março e 17 de julho daquele ano, dois artigos com o título comum de `A nossa Vendéia'.

"São textos em que Euclides não apenas apresenta aspectos físicos daquela região do sertão como também se aventura a dar palpites sobre as dificuldades táticas e estratégicas do levante", comenta Walnice Nogueira Galvão, professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP e responsável pela organização de Diário de uma Expedição (Companhia das Letras, 300 páginas, R$ 24,50), reunião das reportagens publicadas no Estado. "Ele era um homem disposto a aventuras e, como escrevia muito bem, seu nome foi uma escolha natural do jornal."

A publicação do Diário permite conhecer detalhes da formação intelectual da que seria uma das principais obras da literatura brasileira, Os Sertões, publicada em 1902. No período em que cobriu o levante, Euclides passou por um verdadeiro rito de passagem: se quando deixou São Paulo estava seguro da natureza monarquista da rebelião em Canudos, o escritor (republicano convicto) é obrigado a reformular seu julgamento, forçado pelas continências. "No Diário, Euclides exibe uma escrita assombrosa, mas tem a pressa do repórter; o importante é que acumula material para a reflexão profunda sobre o fenômeno, que resultaria em Os Sertões", explica Walnice, em entrevista ao Estado, durante uma pausa de seu novo trabalho, uma coletânea de textos sobre o carnaval.

Estado - Além do rito de passagem, em que Euclides troca suas certezas por uma série de dúvidas (o que é notado ao longo das narrativas), qual outra característica importante é verificada no Diário?

Walnice Nogueira Galvão - Essa transformação no pensamento de Euclides é realmente importante e contribui para a confecção de Os Sertões. Mas o principal aspecto é seu contato com o sertão e com Canudos, com a guerra, os jagunços. Foi um impacto tremendo. Na verdade, esse impacto começou antes, com o primeiro contato com a paisagem do sertão, antes mesmo de chegar a Canudos. Na viagem de trem e a cavalo, pelo interior da Bahia, ele vai ficando tomado pela paisagem extremamente diferente e muito forte.

Estado - O impacto é grande porque Euclides desenvolvera antes um conhecimento científico sobre meio ambiente?

Walnice - Sim, mas o conhecimento era puramente teórico, apenas de livros.

Foi fazendo reportagem para o Estado que Euclides realmente conheceu a força do ambiente.

Estado - Aliás, o conhecimento científico de Euclides é muito contestado.

Ele era realmente habilitado para emitir tais conceitos?

Walnice - Na verdade, ele tinha o cientificismo do fim de século, que era tendência mundial naquela época. Era comum fazer alusões científicas, fazer referências a estudos. Trata-se de um cacoete daquela época.

Estado - Além do impacto provocado por esse contato com a natureza, em que outro momento Euclides começa a revelar mudanças em seu pensamento?

Walnice - A primeira vez em que ele começa a duvidar é em Salvador, antes de viajar para o sertão. Euclides presencia o interrogatório de um rapaz que fora preso em Canudos e fica extremamente espantado quando é perguntado ao garoto qual era o objetivo daquela insurreição. O rapaz responde: "Salvar a alma." Euclides fica estatelado com a afirmação e, ao final do texto, escreve que pessoas assim não mentem, não tentam enganar, nem hesitam. Esse é o primeiro sinal que aparece.

Estado - A linguagem do escritor ainda hoje tem muita força.

Walnice - E o mais impressionante é que ele escreveu as reportagens literalmente no joelho ou quando estava andando a cavalo. Dificilmente isso é notado, pois Euclides utiliza a língua portuguesa de forma impecável, com uma capacidade admirável de descrição do ambiente e expressão de suas reflexões e sentimentos. Outra grande vantagem, observada quando da leitura, é sua escrita irrefletida. O escritor, naquela condição de jornalista, pretendia apenas relatar os fatos palpitantes. Não há negações; o texto é muito bem escrito, direto, vivaz.

Estado - Há indícios de que Euclides levou uma câmera fotográfica, mas nunca surgiu nenhuma fotografia de sua autoria. Por quê?

Walnice - Só se soube que ele levara uma câmera por meio de uma notícia publicada por outro jornal. Mas nunca apareceu nenhum registro feito por ele. Confesso que morro de curiosidade para ver uma dessas fotos, se é que existem. Os documentos de que hoje dispomos foram feitos por um fotógrafo oficial da quarta expedição, chamado Flávio de Barros. São fotos muito bonitas.

Estado - É possível comparar as descrições feitas por Euclides com as imagens dessas fotos?

Walnice - Sim, é possível, principalmente com a descrição do acampamento e das roupas que eles usavam. É possível até identificar Euclides em uma das fotos do Flávio, no meio de uma multidão.

Estado - Ele estava usando farda?

Walnice - Não é possível perceber esse detalhe. Mas Euclides andava fardado até uma certa altura da viagem, quando chega no interior da Bahia. Depois, é obrigado a mudar.

Estado - Como era o noticiário sobre o movimento de Canudos?

Walnice - Muito caótico. Havia muita carta falsa, conspiração que não existia, diversas matérias com várias fontes e muita mentira. O que não é de se estranhar, pois muita coisa era orquestrada. Não podemos esquecer que todo material enviado era antes analisado pelo exército, que censurava as matérias. Euclides não comentou isso depois que voltou, mas alguns repórteres escreveram sobre o medo provocado pela censura. Durante a cobertura, não era possível fazer nenhum comentário contrário à armada. Um deles, aliás, Manuel Benício, foi expulso do acampamento antes do fim do conflito porque suas atitudes foram consideradas muito inconvenientes.

Estado - O que era proibido noticiar?

Walnice - A existência da fome em razão da falta de recursos, a desorganização total e uma mortandade cruel e desnecessária - afinal, estavam degolando prisioneiros amarrados. Só depois isso fora noticiado, provocando um escândalo.

Estado - É possível notar, no Diário, que Euclides desenvolve diferentes aspectos de Antônio Conselheiro. O que provocou essa multiplicidade de visão?

Walnice - Realmente há várias e incoerentes visões, que podem ser resumidas em duas opostas, positiva e negativa. De um lado, ele registra o Antônio Conselheiro como um condutor de povos, um profeta, um cristão primitivo capaz de levar o povo à salvação no meio do deserto. Ele até escreve que Conselheiro poderia tanto ir para o hospício como para a história. Já, do outro, há a crítica à religião, o que não é de se estranhar pois, por ser da escola militar, Euclides acreditava que aquilo era um atraso. Portanto, o Conselheiro nesse aspecto é um monstro e suas palavras são uma algaravia sem sentido. Ele chega até a ser tratado como um bufão. Exagerando um pouco e falando em termos freudianos, pode-se dizer que o sertanejo, o rebelde canudense, era o outro reprimido. Tinha-se vergonha da existência de brasileiros como aqueles: analfabetos, ignorantes, mal vestidos, descabelados e lutadores contra o progresso, a República. Mas, na verdade, Euclides não consegue definir um sentimento exato sobre o Conselheiro.

Exibe, porém, uma virtude: é o único a apontar qualidades dos jagunços, a coragem, a persistência, algo que nenhum outro fez.

Estado - Euclides havia abandonado o exército, desgostoso com a Revolta da Armada. Mas acabou voltando para cobrir o conflito em Canudos a pedido do Estado. O que provocou essa mudança?

Walnice - Seu grande senso de aventura. Perceba que, anos depois, quando já era famoso com a publicação de Os Sertões e membro da Academia Brasileira de Letras, ele fez um esforço tremendo para ser enviado para Alto Purus, na Amazônia. Na verdade, era uma atitude bem típica da época, pricipalmente entre alunos da escola militar, como ele era: todos estavam desejosos de descobrir o interior do Brasil. O desejo era integrar a população e o território, com um senso de nacionalidade. Um dos companheiros de turma de Euclides, aliás, era o Rondon, que acabou instalando linhas telegráficas até o Amazonas, além de criar o indigenismo brasileiro. Creio que essa tendência típica de engenheiro militar durou até Luís Carlos Prestes, o último com tal empenho patriótico.

Estado - Qual foi a influência dos textos de Euclides em outros escritores?

Walnice - Foi poderosa. Ele mapeou problemas brasileiros que ainda hoje são estudados: sertão, seca, povoamento, religiosidade popular, insurreições, revoluções, até reforma agrária e sem-terra. Tudo isso foi abordado em Os Sertões. A influência dividiu-se então em dois destinos. Primeiro a literatura, principalmente Monteiro Lobato, Graciliano Ramos e todo o ciclo nordestino, iniciado na década de 30. E também as ciências sociais - quando esses estudos começaram no Brasil, por volta da década de 40, os cientistas trabalhavam nas linhas abertas pelo Euclides, inclusive a questão racial dos negros, índios, da mestiçagem. Foi um mapeamento completo que ainda não se esgotou.

Estado - Quando deixou São Paulo, incumbido de fazer a cobertura para o Estado, Euclides já planejava fazer um estudo como esse para o livro?

Walnice - Ele queria escrever um livro, mas tenho a impressão que ele não sabia o que faria. Mas o impacto foi muito forte e ele só publicou Os Sertões cinco anos depois, em 1902, quando tudo já estava bem claro em seu pensamento. A partir daí, todas as edições seguintes tiveram mudanças apenas estilísticas. Ele estava mais preocupado com a estética que com a veracidade histórica do livro. Nem as correções que recebeu por cartas a respeito de informações foram aceitas - Euclides preferiu, por exemplo, corrigir sua tendência ao pleonasmo. Também a forma como compôs o livro, em três partes, segue o esquema determinista da época, ou seja, a terra, o homem e a luta. A primeira parte, aliás, a terra, é a mais bonita, escrita como um poema.

Trata-se de uma armadilha para o leitor, pois Euclides escolheu metáforas impregnadas pela luta que já tinha visto, anos antes. Não é uma descrição inocente da terra, que já está em confronto. Assim, por exemplo, ele compara o cacto de frade, que tem uma forma arredondada, com cabeça decepada. Os vegetais são agressivos para o estranho que chega lá, mas são aliados do sertanejo. Trata-se de um exemplo de grande literatura.

Estado - Por que ele deixou o campo de batalha há apenas dois dias do final do conflito? Foi por motivo de doença?

Walnice - Especula-se muito, mas não se sabe mesmo se ele estava doente. É muito estranho ele deixar a região no dia 3 de outubro quando todos foram embora dois dias depois. Há versões que dizem que Euclides estava horrorizado e não agüentava mais acompanhar tanta mortandade, por isso foi embora. Ele mesmo nunca esclareceu a data de sua saída. Mas, em sua caderneta de campo, há anotações do dia em que chegou e do que saiu.

 

O ESTADO DE SÃO PAULO, CADERNO 2

Domingo, 23 de julho de 2000