HISTÓRIA ORAL COM OS CASSUPÁ
CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE –UFRO
O caderno de campo, um dos principais instrumentos metodológicos utilizados pelos antropólogos, vem sendo utilizado de acordo com as perspectivas teóricas de cada um que o faz de instrumento metodológico. Criando diferentes estilos de escrita etnográfica. Do relato de viagem como descrição vislumbrada, estruturalista, etnocêntrica, auto-análise, ênfase dos esforços desdobrados em campo ao texto etnográfico como descrição densa. As diferentes posturas assumidas no decorrer das práticas antropológicas, nos trouxeram uma reflexão madura da prática de campo e da escrita etnográfica. A principal discussão é o caráter de veracidade do texto do etnógrafo. Da antropologia clássica a antropologia moderna, a concepção do trabalho de campo e conseqüentemente da escrita etnográfica, vem se contradizendo e reformulando-se, tornando a antropologia, um conhecimento que enfrenta a construção do seu saber como construções interpretativas, se desprendendo da busca de uma verdade única. Geertz se compromete com essa discussão ao pensar o fazer antropológico.
Para Geertz praticar etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas o empreendimento não se dá simplesmente pelo desenvolvimento desses processos determinados mas pelo tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição densa” (Geertz, 1989:20). O texto etnográfico é resultado de todo esse processo, mas é assumido por Geertz como uma construção do etnógrafo, como interpretações de interpretações, não como uma constatação da veracidade dos acontecimentos baseados na afirmação do “estive lá”.
A idéia que se formula é de que o diário de campo, sarcástico ou uma monografia alentada, podem ser diferenciados como um relato pior ou melhor. No entanto, uma interpretação profunda ou uma descrição superficial é também a melhor virtude da escrita etnográfica. Se a etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem a descrição, então a questão determinante para qualquer exemplo de um diário de campo não é medir a qualidade de cada um, mas nos posicionar contra o poder da “imaginação” cientifica que nos leva ao contato com as vidas daqueles que a ciência toma por estranhos, por meros objetos, nos colocando fora dessa lógica objetificadora, debruçando nosso olhar sobre o outro enquanto Outro.
Nós oralistas, mantemos um diário de campo como registro do desenvolvimento dos procedimentos metodológicos, para proporcionar uma reflexão do andamento da pesquisa, das posturas no trabalho de campo, para que no decorrer da pesquisa possam ser avaliados, possibilitando maior amadurecimento na pesquisa. Tornando-se um referencial na finalização dos trabalhos, garantindo o registro da evolução da trajetória do projeto. Meihy (1996:98). No trabalho de história Oral, o diário de campo torna-se uma das leituras sobre o contexto social, cultural, político e econômico da “comunidade” em que se desenvolveu a pesquisa. Podendo também, ir além dessas estruturas, sendo um instrumento em que se expresso como o oralista se colocou a interpretar e a forma em que a “comunidade” se apresentou a ele. Os relatos vão se constituindo a medida em que as leituras vão fluindo, leituras que vão sendo tecidas mutuamente, na interação do diálogo estabelecido entre nós e eles/eles e nós.
Nesse sentido quero apresentar meu relato de campo como uma representação das experiências vivenciadas no campo que não chegou a ser uma pratica antropológica: levantar os graus de parentescos, a relação de poder entre os diferentes grupos, coletar as narrativas dos mitos, estudar a ocupação tradicional e formação do grupo. (Todos esses procedimentos antropológicos seriam de muita utilidade para os Cassupá que estão institucionalmente firmando sua representação étnica à sociedade como um grupo étnico). Ao mesmo tempo, de uma certa maneira, não deixaram de ser transparecidos em alguns momentos perceptivos na minha vivência de campo.
O percurso metodológico desenvolvido, de uma certa forma chegou a contemplar alguns desses procedimentos, transparecidos nas narrativas, como alguns rituais antigos, o lugar de origem, a relação de poder entre os grupos, aspectos da produção econômica, e o ritual da chicha[1] que se apresentou como marca de diferença no cotidiano dos diferentes grupos que vivem na terra indígena Guaporé.
Tornar público meu diário de campo é relevante porque entendo que é uma das leituras sobre os Cassupá e os demais povos indígenas que interagi; das minhas percepções, de como me coloquei a interpretar a forma em que se apresentaram a mim. Esse relato apresentado é resultado de uma transcriação de uma primeira descrição. No processo transcriativo, trabalhei a estrutura do texto, permanecendo apenas aquilo que para mim foi mais significante na vivencia de campo.
TERRA INDÍGENA TUBARÃO LATUNDÊ
26, 27, 28 de setembro de 1998, 16, 17, 18 de novembro de 2002, novembro de 2001.
Cheguei até aos Aikanã que se encontram no Território Tubarão Latundê, por intermédio de seu Clóvis coordenador da OPIC’S[2]. Seu Clóvis havia ido até aos Aikanã para confirmar suas origens, seu anseio era de legitimar a História de sua gente, através daquelas pessoas que ele tomava como testemunhas. Seu Clóvis acreditava que nesta região, era o lugar do início da trajetória dos Cassupá. Achei importante acompanha-lo porque pretendia entender o contato e o deslocamento dos Cassupá através das experiências de Vida das pessoas que seu Clóvis ia me indicar.
As conversas na língua Aikanã; foi a barreira erguida durante todo o trabalho de campo. Um limite tinha se estabelecido entre nós. Alguns assuntos conversavam em português, outros entre si na língua Aikanã.
Seu Clóvis e dona Luíza, levaram-me a casa do seu José Ribeiro e de seu Severino. O motivo dessa escolha se deu por seu José Ribeiro ser um dos Aikanã mais velhos e ter presenciado a saída dos Cassupá do seu lugar de origem. E seu Severino também por ser um dos mais velhos do Grupo dos Cassupá que realizou o movimento migratório do território de onde se têm menções que os Cassupá se originaram, região próximo ao rio Apediá e Machado[3]
Os Aikanã tinham adquirido costumes da nossa cultura por meio do contato interétnico, mas não tinham suprimido totalmente suas diferenças. A língua Aikanã, que continuam falando é uma forma de manterem sua condição de diferença. Mantendo o seu padrão lingüístico acreditam garantir sua identidade étnica. Segundo dona Luíza, os Aikanã ensinam o português para as crianças na aldeia mas não deixam de ensinar a língua Aikanã; diz que é preciso aprender a falar a língua do branco para poder entender e ser entendido pelo branco, mas é a língua Aikanã que mostra que são diferentes dos brancos. Percebe-se que a língua é tomada como um atributo cultural para manter a distinção nós e eles.
Na aldeia algumas famílias vivem distante uma das outras para poderem fazer criação de animais e se afastar de problemas corriqueiros de vizinhanças mais próximas; como no caso de Luíza Aikanã e Severino Aikanã. Isso não os torna isolados da comunidade, eles mantêm sua relação comunitária, visitam-se uns aos outros, participam das festas e fazem algumas trocas de alimentos do roçado. A distância da casa deles, para o espaço em que as famílias construíram moradias próximas uma das outras é de aproximadamente três horas de caminhada. Nesse espaço encontram-se as demais casas, este lugar é a segunda aldeia. A primeira, depois do contato com nossa civilização é em outro lugar mais distante, chamado de gleba. Nessa segunda aldeia tem uma escolinha e é assim que as pessoas se referem ao lugar. As casas são uma próxima da outra, uma na entrada, feita de palha, com um terreiro grande, vinte metros, mais ou menos a frente, havia outra casa pequena, feita de barro, estava fechada, em suas proximidades pareciam ter colocado fogo para limpar o terreiro, a terra era preta, havia alguns troncos de árvores pequenas, que pareciam ter sido derrubadas para ampliar a entrada para um espaço maior onde ficam três casas e a escola. No meio fica um grande pátio de chão bem pisado, do lado direito ficam duas casas e do lado esquerdo fica outra casa ao lado da escola.
Visitamos uma família que morava em umas daquelas casas, fui apresentada à família, conversamos, ouvi a conversa entre eles sobre as notícias tragas por seu Clóvis; descontraídos comíamos amendoim, produto cultivado nos roçados das famílias e alimento tradicional dos Aikanã, ainda bastante consumido.
Olhava para tudo, mas, continuava vendo somente o visível nada além disso; a casa era de pachiúba, coberta de tabuinha, e no chão puro, tudo muito limpinho, na parede cartazes da campanha contra a AIDS, não sei qual era a função deles, se era para a conscientização de prevenção a doença ou se era para tapar as frestas das paredes. Pareciam estar lá mais para tampar as frestas da casa. Ao olhar para as duas mocinhas que estavam lá, me agradei, por apresentarem uma postura bem adequada para nossa sociedade, sua limpeza e o jeito de se vestirem que não era nada de luxuoso, eram apenas vestidinhos comuns, mas que davam boa aparência. A postura de se sentarem (uma delas estava de pernas cruzadas) me fazia olhá-las como igual; segundo seu Clóvis elas eram evangélicas. Meu olhar ocidental, se agradava em ver o que era apenas a sobreposição da cultura ocidental cristã sobre uma outra cultura que, na relação com o cristianismo adquiriu essas práticas comportamentais e doutrinárias.
Visitamos seu José Ribeiro, tinha acabado de chegar do roçado; dona Luzia e seu Getúlio nos acompanharam. Ao entrarmos na casa de seu José, senti um impacto. Lá dentro parece que o mundo era outro, houve um estranhamento entre eu e aquelas pessoas, o olhar delas era de desconfiança, as crianças choravam, umas eram acalentadas nos seios de suas mães, outras eram ralhadas; uma senhora parecia estar acuada no canto da casa, ao lado de um grande fogão de barro. A família do seu José Ribeiro, sua esposa, suas filhas, e seus netos não esperavam que eu fosse até a sua casa, demonstravam timidez, as crianças me estranharam. Na verdade eu me surpreendi com a esposa do seu José Ribeiro, por ser tão diferente, a impressão que tive é que ela teve pouca influência com nossa cultura. Todos daquela comunidade por mais inseridos que estejam em nossos padrões sociais, são diferentes de nós, mas suas diferenças não estavam tão explícitas como naquelas pessoas que eu acabava de me deparar.
Meio a todo esse estranhamento estava seu José Ribeiro que, encontrou com um sorriso seus parentes, debruçando um olhar curioso sobre mim. Fui apresentada a todos, nos cumprimentamos e fomos convidados para sentar. Em cima do fogão de barro estava uma panela grande com o mel coletado por seu José, sua esposa nos serviu em uma cuia pequena, conversavam animadamente entre eles, não entendia nada do que estavam falando, mas percebia que era sobre mim, riam muito, fiquei observando um pouco sem jeito e ao mesmo tempo curiosa, mesmo sabendo que não iam me explicar o que estavam falando, ao contrário estariam quebrando os limites estabelecidos por eles naquela conversa da qual eu não fazia parte, por não ser um deles. As risadas cessaram, a conversa tomou um tom sério, então me convidaram para iniciar a entrevista.
Entramos para o quarto cheio de mosquiteiros com redes e em um canto do quarto uma cama de casal, onde sentamos, além do seu José Ribeiro, entraram sua esposa, seu Clóvis, dona Luzia e seu Getúlio. Seu José Ribeiro estava com a aparência muito tensa, falou pouco em português, iniciou sua narrativa contando da lembrança que tinha do dia em que os Cassupá saíram do lugar chamado Cascata, onde moravam; limitou-se a falar somente dessa lembrança e permaneceu em silêncio, dei por encerrado seu fluxo narrativo e procurei incentivá-lo a dar continuidade em sua narração. Perguntei-lhe se queria falar mais alguma coisa sobre sua vida, respondeu-me que não lembrava de quase nada, então dona Luíza interveio em nossa conversa, pedindo a ele que falasse um pouco mais sobre sua vida, começaram então a conversar entre eles, seu Getúlio e seu Clóvis também participaram da conversa, no intervalo do diálogo entre eles e seu José Ribeiro, dona Luíza se direcionava para mim e traduzia suas conversas para o português. Foi estabelecida então a partir deles uma entrevista coletiva.
Fomos na casa de seu Severino tio do seu Clóvis, andamos umas duas horas para chegarmos até lá, logo na entrada tem uma tapera de palha onde estavam as colheitas do roçado, lembro ter visto, vários cachos de bananas e espigas de milho. Andamos mais um pouco e chegamos na casa de seu Severino; na frente tem uma casa pequena de palha, fora do cercado, com um outro cercado ao seu redor, depois vem à casa maior, feita de madeira, onde mora seu Severino e sua família, com um grande terreiro cheio de fruteiras. Seu Clóvis foi recebido com muita alegria, fui apresentada a seu Severino e a sua esposa.
Dessa vez não fui impedida de entender o que falavam. Conversavam na mesma língua que a minha. Ao encerrarem o assunto iniciei a entrevista com seu Severino, podemos dizer que seu Severino é um narrador nato. Sua narrativa seguiu-se, sem nenhuma interrupção ou estímulo de perguntas. Iniciou sua fala por onde quis. Ao esgotar seu fluxo narrativo, não houve necessidade de pedir que falasse mais de alguma coisa.
No final de sua narrativa disse que não tinha mais nada para dizer, falando que era a vez de dona Maria Tadeu falar. Não tinha pensado em entrevistar sua esposa, mas como tinha sido indicada por ele e ela estava demonstrando que queria ser entrevistada, acabei por entrevistá-la. Dona Maria Tadeu e seu Severino possuem uma narratividade muito emocionante é como se estivessem revivendo tudo o que estavam narrando. Ao encerrar a entrevista com dona Maria Tadeu, percebi que um dos grandes problemas na aldeia é a bebida alcoólica e os madeireiros. As lamentações relacionadas a esses problemas estavam explicitas nas narrativas da maioria dos colabores que tinham sido entrevistados.
Com as experiências que vivenciei junto aos Cassupá e Aikanã na primeira fase da pesquisa, aprendi que é possível trocar experiências com o outro, respeitando, suas diferenças, sem impor a lógica cultural da qual faço parte. Via no seu Clóvis um arquétipo do Herói, passava admirá-lo por sua liderança, frente a sua gente, o que mais me encantava era seu desejo de reconstruir sua identidade à partir da retomada de um território para os Cassupá, anseio que não é individual, mas de uma coletividade representada por ele.
Depois de dois anos retornei aos Aikanã, a primeira vez foi no ano de 1998 e a segunda em 2000. Fui recebida como uma filha que retorna a sua casa. Retornei aos Aikanã para ler os textos resultantes das entrevistas feitas com eles.
Seu Getúlio esposo de dona Luíza havia falecido, na conversa que tivemos demonstrou uma tristeza consolada em seu rosto. Com a morte de seu marido o anseio de estar junto aos Cassupá havia aumentado. Dona Luíza é Aikanã, mas por ser irmã de dona Luíza Cassupá por parte de pai e não ter ninguém com parentesco mais próximo na aldeia, tem maior identificação com os Cassupá que vivem em Porto Velho e por isso o anseio de viver próximo de sua irmã e sobrinhos.
Seu Severino não me reconheceu, depois que falei da visita que tinha feito a ele e da conversa que tínhamos tido há dois anos atrás; ele sorriu e me olhou com ar de reconhecimento.
Durante a leitura do texto resultante de sua narrativa, tomou uma feição séria e atenta, algumas vezes sorria, outras vezes me interrompia para comentar alguma coisa, para dizer que não era da forma que eu estava falando determinada situação, ou para redizer algo, tornando mais claro o que havia dito. No final do texto perguntei se tinha mais alguma coisa para acrescentar, respondeu-me que não, que era tudo aquilo mesmo.
Seu Severino contou que tinha ido passar uns dias na aldeia dos Kwazá. Estava encantado com o lugar, falou que lá era muito bonito, tinha muita caça, que quando chegava o fim da tarde a caça ia gritar na porta da casa e que os bichos começavam a cantar. Mas lá na aldeia onde ele mora não tem mais nada, não tem mais caça nem peixe, no final da tarde a única coisa que escutam cantar são os sapos... Com a expressão irônica complementou: “mas ninguém come sapo”. O desencanto de seu Severino é por perceber que o seu mundo (da caça, da pesca, e do canto dos bichos) está em decadência.
A imagem que seu Severino tem da aldeia onde vive é oposta da imagem que construiu da aldeia dos Kwazá, para ele o lugar ideal para se viver é o lugar não devastado, o lugar que ele se sente bem, que se sente vivo, tudo isso se expressava na face e no sorriso de seu Severino, quando falava das caças e dos cantos dos bichos que ouvia na aldeia dos Kwaza; enquanto que ao se referir à aldeia que vive, demonstrava um semblante de tristeza.
Essa imagem transparecida por seu Severino, da aldeia onde vive os Aikanã, correspondia com o meu olhar. Na primeira visita que fiz a aldeia me encantava com tudo que via, mas notei que havia problemas como os causados pela exploração da madeira. Dessa vez meu olhar não foi tão encantado, percebi que a aldeia estava passando por uma crise devido à escassez de alimentos. Algumas famílias ainda tinham o restante de alguns produtos do roçado anterior que era o cará branco. Mas não eram todas as famílias que tinham essa reserva.
O recurso da pesca também estava muito precário. Alguns artesanatos (colar, brinco, anéis, sinto) confeccionados de penas, sementes e tucum são repassados para a FUNAI que revende, ou são vendidos por eles mesmos quando vão a cidade ou quando tem alguém de fora na aldeia.
Presenciei a divisão da caça entre algumas famílias. Essa divisão foi feita entre três famílias, o chefe de uma família que foi o caçador, dividiu sua caça (macaco) com a família de seu irmão que se encontrava fora da aldeia por motivo de doença e com sua mãe que já era anciã. Assim como a caça, percebi que estava sendo divido com os parentes mais próximos os produtos do roçado, no caso dos alimentos do roçado a divisão não era só com os parentes próximos, mas também entre as famílias que tem afinidade uma com a outra.
Dona Luíza tem um estoque de cará em sua casa e distribui com algumas que vão a procura em sua casa. Mesmo assim dona Luíza não achava que tinha o suficiente para a alimentação de sua família. Sua noção de boa alimentação é típica do nosso padrão alimentar: arroz feijão e carne de boi, frango, ou alguma caça.
Neste período que fui à aldeia era um período eleitoral, vi no caminho da casa de dona Luíza para a escola, umas placas pequenas de madeira, com nome de candidatos, um dos Aikanã era candidato e disputava os votos dos Aikanã com um candidato de Chupinguaia, que ganhava a simpatia de alguns Aikanã doando cestas básicas para famílias Aikanã e promovendo festas no município.
Dessa vez a imagem que fiquei da aldeia foi da miséria. A explosão de problemas ocasionados pela permanência de madeireiros . Não tive o mesmo olhar encantado da primeira vez. A miséria que estavam passando era conseqüência da dependência da alimentação adquirida da cidade, por conta também da espera da chuva para começarem seus roçados. O intervalo de um roçado ao outro estava sendo maior, os alimentos do último roçado estavam acabando e de alguns havia acabado, a falta de peixe e de caça contribuíam ainda mais com a crise de alimentos.
Saí da aldeia com uma sensação pessimista e frustrada, vi o caos se instaurando. Percebi as relações de poder estabelecidas na aldeia, que estabelecem os jogos de ocultação do que é permitido ser revelado e do que deve ser ocultado. E a impotência dos insatisfeitos que ao mesmo tempo em que se opõem ao poder se submetem a ele.
Retornei pela terceira vez a terra indígena Tubarão Latundê para realizar a conferência do texto com os dois colaboradores: Maria Tadeu Aikanã e José Ribeiro Aikanã, que não se encontravam na visita anterior. Dessa vez a relação com os colaboradores já estava bem estabelecida, por esse motivo foi possível maior interação com eles. Um dos momentos mais fortes que vivenciei durante os dias que fiquei na aldeia foi o encontro com os colaboradores num só momento, que se deu ocasionalmente na visita que me fizeram.
Nesse encontro conversamos entre outros assuntos sobre suas festas atuais e as festas que eram realizadas por seus antepassados. Pensando sobre essa conversa e sobre as narrativas dos Colaboradores percebi que há uma reformulação das festas tradicionais nas festas atuais. As datas e celebrações ritualísticas tradicionais do grupo deixam de ser praticados nos padrões tradicionais de seus antepassados, mas são vivenciados em momentos que aparentemente são comemorações do calendário cristão, como por exemplo a festa de comemoração do natal.
As festas de menina moça enquanto ritual de passagem de menina para mulher, e de casamentos nos padrões tradicionais dos antigos, não são mais praticadas. Mas o natal como comemoração dentro do calendário e do sentido ocidental é o momento de encontro das famílias, onde os moradores da gleba e do rio do Ouro se reúnem, sendo a Gleba o ponto de encontro, onde os cantadores cantam acompanhando o ritmo da melodia da taboca e do apito, instrumentos tradicionais feitos de taquara. Os cantadores que são os mais velhos (entre eles José Ribeiro e Maria Tadeu), ao que se percebe são os portadores da tradição dos antigos e a ponte que pode ser atravessada entre o tempo tradicional/mítico e o ocidental cristão/capitalista. Tempos estes instaurados na temporalidade vivenciada pelos Aikanã.
VIVÊNCIA COM OS CASSUPÁ – Br 364, km 5,5
30 de maio de 1998 a setembro de 2001.
Algumas famílias Cassupá vivem em uma área pertencente ao Ministério da Agricultura, localizada na margem direita Br 364, km 5,5 sentido Cuiabá. A maior parte das famílias, mora nos bairros periféricos da cidade.
A imagem do lugar era de um pequeno vilarejo em ruínas, pequenas casas de madeira, as mais antigas são de modelo padronizado e bastante danificadas, são poucas casas. As casas em que as famílias Cassupá residem foram construídas para as pessoas que trabalham no Ministério da Agricultura. As que estavam vazias foram cedidas para os Cassupá.
Seu Clóvis como meu intermediador ficou de me esperar na casa de sua mãe, Quando cheguei lá ele não havia chegado. Sua mãe estava no quintal sentada num banco debaixo da sombra de uma árvore. Aproximei-me dela e perguntei por seu Clóvis, o aguardamos por um tempo, vi que não ia mais chegar, resolvi começar a conversa com dona Maria, disse a ela que estava fazendo um estudo, onde eu conversava com as pessoas sobre suas experiências de vida, expliquei as etapas metodológicas, falei da entrevista, utilizei o termo, escrita do texto para mencionar a fase de transcrição e textualização, enfatizei o compromisso de retorno. Em nenhum momento mencionei que estava interessada em fazer entrevistas com índios, mas devido em outras ocasiões terem sido procurados por serem índios e não terem recebido retorno nenhum, tinham decidido não dar mas nenhuma informação sobre eles quando fosse solicitada.
Dona Maria disse-me que lá não tinha nenhum índio que falasse na gíria, que lá ninguém era índio e que era para eu ir na casa do índio que lá eu encontraria um monte de índio que fala na gíria. Expliquei a ela que não tinha ido atrás de nenhum índio, que meu interesse era apenas nas experiências de vida das pessoas. O que quisessem falar, o que achassem importante ser registrado, para que outras pessoas principalmente seus descendentes, pudessem saber de sua vida. O argumento que utilizei fez com que ela aceitasse a falar de suas experiências de vida. Não tanto por saber que ia tornar conhecido o que falasse para outras pessoas, mas por tornar conhecido aos seus netos e seus descendentes.
Depois das explicações ela acabou entendendo minha proposta, mas não foi gravado nada do que conversamos. Estava sem gravador, então combinamos a entrevista para a próxima visita.
De acordo com dona Maria os mais antigos já morreram quase todos. Ainda existe um casal de velhinhos, mas não moram na vila; três meses atrás morreu uma anciã que era irmã de dona Maria. A antiga moradora da casa abandonada ao lado também é uma das mais velhas, mas depois da morte de seu marido havia retornado a Terra indígena Guaporé.
Na casa da dona Maria moram cinco pessoas além dela, uma filha, duas netas e um filho.
O semblante de dona Maria era triste... Concordou que eu voltasse, não marcou data, disse que qualquer dia eu a encontraria. Como se estivesse preocupada com a possibilidade de ser mandada embora daquele lugar, disse que sairá de lá somente se o Ministério da Agricultura mandasse e que enquanto não mandava, ficava por lá criando suas galinhas e plantando suas fruteiras.
Após estabelecer o primeiro contato com dona Maria, demorei a retornar ao lugar onde vive as famílias Cassupá, porque estava realizando a etapa das transcrições[4] e textualizações[5] das entrevistas realizadas com as famílias Cassupá que vivem na Terra indígena Tubarão Latundê. Priorizei o encerramento dessa etapa para depois iniciar a etapa de entrevista com os Cassupá de Porto Velho. Não deixei de estabelecer contato com seu Clóvis e as primeiras entrevistas foram realizadas com ele.
Somente em 1999 iniciei as entrevistas com os Cassupá que se localizam na área do Ministério da Agricultura, mas sempre me mantive informada por seu Clóvis sobre as realizações políticas organizadas pelos Cassupá e Salamãi. Participei da segunda assembléia dos Cassupá dia 15 de dezembro de 1998 no fórum das ong´s. Onde foram apresentados e avaliados os avanços de sua organização política. Na assembléia reuniram-se os Cassupá que vivem na área do Ministério da Agricultura e os que vivem nos bairros de Porto Velho, juntamente com os Salamãi que junto com os Cassupá lutam pelo reconhecimento de seus direitos. A união política entre os Salamãi e os Cassupá se deu por terem percorrido a mesma trajetória e por haver inter-casamentos entre algumas famílias dos dois grupos.
A realização da assembléia é o momento de reunião e mobilização dos Cassupá e Salamãi, é também a confraternização das famílias espalhadas em Porto Velho, sendo ainda momento de afirmação política dos dois grupos, onde apresentam suas reivindicações para as entidades governamentais e não governamentais presentes, convidam representantes indígenas para compartilhar as discussões sobre as problemáticas enfrentadas particularmente por eles e as gerais da política indígena.
Meses depois retomei minha aproximação com dona Maria Cassupá. Como o intervalo entre a primeira visita e a segunda foi distante, na segunda visita apenas conversamos, não gravamos nenhuma entrevista, dona Maria ainda demonstrava um certo estranhamento. Mesmo demonstrando receio com o que dizia, falou de seu pai e do Vitor Dequech o Coordenador da Expedição Urucumacuã que oficialmente contactou os Cassupá na década de 40’ (séc. XX) Contou que teve medo dele quando chegou na aldeia, diz que ele ainda era novo e barbudo e teve medo dele por sua aparência ser desconhecida. Depois quando morava aqui na área do Ministério da Agricultura tornou a velo, mas não teve mais medo dele e inicialmente chegou nem a recolhê-lo, pois ele já estava velho.
Além do choque transparecido por dona Maria ao deparar o desconhecido, percebo a mudança de papeis de Vitor Dequech na relação dos Cassupá, no primeiro contato representava o estranho e institucionalmente o invasor, o civilizador, e depois o conhecido, o aliado dos Cassupá. Em 1993 Vitor Dequech escreve um artigo no jornal alto madeira falando sobre a expedição, citando os Cassupá como um dos grupos Indígenas contactados por eles. O que tornará referência para os Cassupá situarem o ponto inicial de sua trajetória. Vitor Dequech é visto pelos Cassupá como um dos seus aliados por ter contribuído com as informações dadas no artigo que fala da Cascata, lugar de origem dos Cassupá dando sustentação para a reivindicação da pertença étnica perante a FUNAI.
A primeira entrevista com dona Maria acabou não se realizando no dia marcado. Dona Maria não se encontrava, havia recebido a visita de dona Maria Campé (Salamãi) e juntas foram coletar castanha lá mesmo na área do Ministério da Agricultura, para os lados de uma antiga fazenda próxima ao primeiro lugar de moradia das famílias Cassupá, chamado por eles de Mucura.
Dona Maria não estava, mas encontrei dona Lúcia Cassupá que mora na casa que da primeira vez que fui visitar dona Maria estava em ruínas, haviam construído outra casa no lugar, isso já fazia com que a imagem do lugar deixasse de ser triste. O lugar estava mesmo diferente parecia com mais vida, outra casa havia sido construída atrás da casa de dona Lúcia, onde morava sua filha Letícia. Que também estava retornando para o lugar.
Falei para dona Lúcia sobre a entrevista que iria realizar com dona Maria, iniciando uma aproximação para uma possível entrevista, expliquei o procedimento metodológico da pesquisa e perguntei se ela estava interessada em falar sobre sua experiência de vida. Dona Lúcia mostrou-se muito interessada e se dispôs a realizar a entrevista no mesmo dia, como eu estava com o material, realizei então a primeira entrevista com dona Lúcia, que me impressionou por sua iniciativa e por me mostrar o jornal com o artigo de Vitor Dequech sobre a expedição Urucumacuã e os Cassupá, no decorrer de sua entrevista, utilizando-o como estimulo para sua narrativa, não com a leitura do artigo mas mostrando-me as fotos da maloca e dos Cassupá, hoje falecidos.
Retornei com dona Lúcia para esclarecer alguns pontos incompreensíveis de sua entrevista. Dona Lúcia chegou até a porta de sua casa e me recebeu sorrindo. O que me fez sentir mais à vontade. Convidou-me para entrar, expliquei a ela que tinha ido para conversar sobre algumas coisas que eu não havia entendido na entrevista gravada com ela. (a captação de sua fala ficou muito baixa e incompreensível)
Aparentemente dona Lúcia estava mais saudável que dá outra vez, mas havia passado o mês anterior a minha visita, internada no hospital da FUNAI. Estava ressentida porque sentiu que não havia sido bem recebida no hospital. Disse que foi recomendada a procurar um posto de saúde da próxima vez que ficasse doente, “pois o atendimento no hospital da Funai priorizava os índios que vinham doentes da aldeia”.
O interessante nessa visita é que dona Lúcia já estava me esperando. Dona Lúcia demonstra satisfação por estar participando da pesquisa. Tem consciência de que suas experiências de vida serão de alguma forma registradas e isso a faz se sentir importante.
Nesse mesmo dia fui visitar dona Maria que sabia que eu havia entrevistado dona Lúcia, estava alegre e interessada em falar sobre suas experiências de vida. Marcamos uma data para a entrevista. Dona Maria estava de casa nova, não era mais a velha casa de palafita.
Aos poucos o lugar vai se renovando, não só com as construções das novas casas, mas com a chegada de outras famílias, além de dona Lúcia que havia retornado, mais duas famílias Cassupá haviam chegado. E a presença das crianças, correndo, sorrindo, brincando no quintal, já dava um novo tom de vida para o lugar.
Retornei com dona Maria na mesma semana. Eu estava com viagem marcada para a Terra indígena Guaporé, onde ia conhecer as famílias Cassupá que moram no local e queria realizar a entrevista com dona Maria antes de viajar.
Perguntei a dona Maria se estava preparada para nossa conversa, disse que sim; mas não sabia por onde começar. Disse a ela que poderia começar por onde quisesse, por onde achasse melhor. Então começou pela trajetória deles: Cascata, Ricardo Franco, Ribeirão e Br 364, km. 5,5.
Depois de ter esgotado seu eixo narrativo, tentei retomar as conversas iniciadas por ela nas outras visitas mas ela não quis mais falar sobre o assunto.
Falei a ela sobre minha viagem a Terra indígena Guaporé, antigo posto indígena Ricardo Franco. Percebi que ela ficou contente, recomendou-me que olhasse o lugar e procurasse reconhecer as coisas que havia falado em sua narrativa, mostrou-se contente e admirada por saber que eu iria até ao local por onde tinham vivido.
Além da realização das entrevistas e retornos para aprofundamento da cápsula narrativa, foi estabelecida uma relação de amizade entre minhas colaboradoras e eu. Tornei-me de uma certa forma uma ponte entre elas e os demais colaboradores, que vivem nas terras indígenas Tubarão Latundê e Guaporé. Dona Lúcia havia vivido muito tempo no antigo posto indígena Ricardo Franco e após a morte de seu marido retornou para a atual Terra indígena Guaporé. Hoje vivendo na área do Ministério da Agricultura, lembra saudosamente de seus parentes com quem conviveu mais, os Canoé. Sente-se sozinha. Dona Lúcia se identifica como Cassupá por ter sido casada com um Cassupá e ter sido criada junto aos Cassupá vivenciando toda a trajetória do grupo, mas seus pais eram Canoé.
Dona Maria Cassupá, também se sentiu comovida por eu ter ido até o Ricardo Franco e ter conhecido os filhos do irmão de seu marido ambos falecidos, falar sobre eles a ela é uma forma de os aproximá-los, pois não os vê desde quando eles eram criança e tem remotas chances de revê-los. A não ser que um deles chegue a vim visitá-la, mas para ambos há muitas dificuldades de deslocamentos.
Vivenciei com os cassupá os momentos de confraternização e organização política que foram à assembléia de maio/2000 e o almoço de ano novo de 2001. Esses momentos são marcados pelo encontro das famílias Cassupá e Salamãi e a chicha doce de macaxeira que não deixa de ser simbólica no sentido de estarem mostrando que ainda produzem e bebem sua bebida tradicional.
Essa terceira Assembléia geral dos Cassupá e Salamãi, realizou-se na sede do Ministério da Agricultura, em relação à segunda, foi mais burocratizada no que diz respeito às representações das entidades governamentais e não governamentais, a mesa de abertura foi composta pela OPIC’S, CUNPIR, Ministério da Agricultura, CIMI, Fórum das ONG’S, UIRAPURU, FUNASA, Associação dos Karitiana e dos Tenharim.
O ministério da Agricultura estava presente apenas para desejar as boas vindas e as demais entidades foram para apresentar os projetos realizados com e para os indígenas, incluindo em seus planos de ações os Cassupá.
Institucionalmente a representação política dos Cassupá e Salamãi se solidificou e uma de suas reivindicações, que era de serem aceitos como etnia indígena, concretizou-se. Hoje estão incluídos nos programas de formação de professores e agentes de saúde indígenas e recebem o apoio das entidades não governamentais.
TERRA INDÍGENA GUAPORÉ
A terra indígena Guaporé situa-se a margem direita do rio Guaporé. Antigo posto indígena Ricardo Franco, atualmente sob a subordinação da administração da FUNAI de Guajará Mirim.
Através de uma das políticas desenvolvida pelo SPI, de intervir nos seringais próximos e dentro das terras indígenas que submetiam os indígenas à mão de obra extrativista (poaia, caucho e borracha) em regime escravista e os expunha a contrações de doenças desconhecidas, desencadeando num processo de depopulação; formou-se a população do antigo posto indígena Ricardo Franco, hoje atual terra indígena Guaporé.
Os grupos indígenas começaram a ser levados para o Ricardo Franco desde o inicio da década de 40’(séc. XX), mas somente a partir da década de 70 que o SPI intensificou a sua atuação, recolhendo as famílias e interferindo nos seringais. Os territórios tradicionais em que vivam estes grupos indígenas situava-se nas proximidades dos rios: Rio Branco, Colorado, Mequéns, Corumbiara e dos afluentes situados ao sul do rio Ji-Paraná. (Meireles,1989: 04).
Atualmente encontram-se distribuídos na Terra Indígena Guaporé 11 grupos diferentes, que são os Massaká, que também assumem a identificação Cassupá, Canoé, Wajuru, Cujubim, Macurap, Aruá, Jabuti, Tupari e Mutum. Reunidos no mesmo local, os inter-casamentos foram fluindo, o que possibilitou o aumento demográfico, mas trouxe outras implicações como a perda do domínio lingüístico de alguns grupos. De maneira geral ainda é adotada nos inter-casamentos a regra de descendência Patrilinear. Muitos grupos não dominam mais sua língua materna, há alguns grupos que apenas os mais velhos dominam. Em algumas famílias o pai e a mãe sabem falar a língua de seus grupos, mas por serem padrões lingüísticos diferenciados, falam cotidianamente em português, fazendo com que seus filhos não dominem o padrão lingüístico patrilinear nem matrilinear.
Os mais novos entendem a língua dos diferentes grupos e quando seus pais ainda dominam sua língua, também conseguem entende-las, mas não sabem falar.
Em 1989 Denise Maldi Meireles realizou uma pesquisa etno-histórica na terra indígena Guaporé e diz ter a impressão ao proceder o levantamento de dados junto á população mais idosa do Guaporé “estar buscando o que restou após um terremoto”.
Hoje a minha impressão é que essas pessoas construíram um outro mundo cultural, que não é mais o mesmo o de antes que se esfacelou e jamais poderia ser, mas a partir dos destroços do terremoto que os atingiu, reconstruíram-se novas formas de viver. Mas esse terremoto que atingiu seus mundos culturais deixou feridas abertas, ainda não cicatrizadas em suas lembranças. A impressão maior é que apesar da sobreposição da cultura ocidental, o preparar, o tomar, o festejar, o vomitar a chicha é uma forma comum entre os diferentes grupos de vivenciar o seu próprio tempo. Tempo do roçado individual e coletivo, do contar e do ouvir as aventuras da caça, do discutir os planos coletivos da aldeia, do desabafo,do trabalho, da festa.
O5, 10, 11, 13 de maio de 2000, 14, 15, 16 de novembro de 2000.
Depois de esperar três dias em Guajará-Mirim, o barco ia retornar ao Ricardo Franco.
Segunda feira às seis horas da tarde, antes do barco sair conversei com uma anciã, que morava no Ricardo franco, mas não ia nessa viagem porque estava fazendo tratamento no estomago, depois quando cheguei na aldeia fiquei sabendo que era mãe do seu João Massaká que estava indo ao encontro.
O barco estava lotado, na parte de baixo tinha mais gente; no compartimento de cima era mais confortável e já haviam reservado um lugar para mim, em baixo além do barulho do motor era muito úmido, mesmo assim era o lugar que havia mais crianças pequenas e recém-nascidas. Em cima todos se acomodaram em suas redes. Passamos uma noite viajando, o barco estava muito pesado, e ia deslizando lentamente sobre a água, porque além da super lotação de pessoas havia as cargas que estavam levando.
Chegamos no Ricardo Franco às nove da manhã. Na parte da tarde fui ao roçado do seu Renato que é irmão do seu João; conheci a roda d’água, um sistema para canalizar água para toda a aldeia.
No terceiro dia que estava no Ricardo Franco, informaram-me que seu João havia chegado na noite anterior da Bahia da Coca, aldeia vizinha onde havia ido caçar. Fui visitar seu João para conhece-lo e explicar meu trabalho, na ocasião procurei saber se ele iria querer falar sobre sua experiência de vida.
Quando cheguei na casa de seu João, fui bem recebida, seu João já estava a minha espera, ansioso para saber o que eu queria com ele, falei a ele que conhecia seus parentes que moravam em Porto Velho e que eles tinham me falado dele. Seu João não entendeu o que eu estava querendo. Perguntei se ele estava interessado em falar de suas experiências de vida, mas seu João continuou sem entender muito bem, então sua esposa e seus filhos interviram e disseram que era para ele contar a História do povo dele, como ele havia visto no livro a História dos outros índios. Foi então que disse que havia entendido e perguntou-me se era isso, respondi a ele que se fosse isso que ele quisesse falar poderia ser... Mais animado falou que já tinha até visto uma História dos Cassupá.
Disse a ele que poderia contar-me o que quisesse. Eu não queria induzir a sua narrativa, estava evitando os termos: índio, povo indígena, tribo, mas foi inevitável esse direcionamento depois da intervenção de sua família; eles já se vêem inseridos nesse discurso. Mesmo assim eu não poderia ser ingênua a ponto de achar que não estava direcionando sua narrativa, afinal de contas eu tinha me deslocado de Porto Velho até sua casa no vale do Guaporé para conversar com ele. A minha presença era uma grande interferência.
Depois da entrevista seu João convidou-me para conhecer seu roçado. Fui com ele e sua esposa, mostrou-me orgulhoso sua plantação de maniwa. Seu João estava emocionado por ter falado de seus parentes; de uma certa forma percebi que seu João via em mim o início da reaproximação com seus parentes que ele aguarda há muito tempo.
Após a entrevista com seu João fomos até o sítio onde estava havendo uma festa de chicha de trabalho. Elenilza me explicou que essa chicha era uma forma de pagamento de um roçado, quando o dono do roçado chama outras pessoas da comunidade para ajuda-lo, no final do roçado oferece chicha para todo mundo. Enquanto a chicha está sendo preparada, o dono do roçado é dono da chicha, mas depois que termina de prepara-la, as pessoas que trabalharam no roçado passam a ser donos.
Quando chegamos ao sítio, todo mundo estava tomando chicha, todos da festa anterior estavam presentes e mais outras pessoas que eu ainda não tinha visto. O pessoal da Bahia da Coca (uma aldeia vizinha) tinham ido para a festa. As pessoas estavam agrupadas. Uns dos grupos estavam posicionados em forma de arquibancada, os da fileira da frente ficavam sentados no chão, os da segunda ficavam sentados numa espécie de banco e os terceiros ficavam em pé. O ponto forte dessa chicha estava sendo o pajé que rolava pelo chão e não agüentava mais nem ficar em pé, vomitava e ria falando um monte de coisas em sua língua. Todos riam, parecia estar em transe.
Na última noite que passei na aldeia fui visitar a professora da aldeia em sua casa, conversamos sobre minha pesquisa. O mais importante dessa conversa foi ela ter falado que os Cassupá que vivem no Ricardo Franco, hora se identificam como Massaká, hora se identificam como Cassupá, eles usam as duas identificações, seu João se identificava como Cassupá, mas seu Renato que é seu irmão, variava entre as duas identificações, no entanto utilizava mais a identidade de Massaká. Antes da informação da professora já havia notado que havia essas duas formas de identificação utilizadas por seu Renato e seu João. Os dois são registrados como Massaká, mas se alguém chega procurando por Cassupá eles assumem-se como Cassupá.
Os dias que fiquei na aldeia, me proporcionaram a vivencia em um tempo diferente da cidade, a chicha pareceu-me ser o ponto forte de suas tradições e o elo que unia os diversos e diferentes grupos que vivem no antigo posto indígena Ricardo Franco. Por outro lado percebia que na organização política se separavam, organizando-se em associações onde cada grupo tem sua própria representatividade política. Mesmo assim havia interesses comuns na busca de melhorias para a aldeia, desenvolviam atividades coletivas como o roçado para a manutenção de recursos financeiros para a escola e reuniam-se para discutir interesses comuns em benefício de todas as famílias da aldeia.
Retornei no dia 15 de novembro de 2000 na Terra indígena Guaporé. Depois de acomodar minhas coisas na casa do chefe de posto, a primeira família que visitei junto com Elenilza, foi a de seu Renato Massaká; conversei com dona Maria Machado Macurap, mãe do seu João e do seu Renato, antes que embarcasse no barco Ricardo Franco que estava no porto preparando-se para partir em direção à Guajará-Mirim. Na curta conversa que tivemos, dona Maria começou falar de seu marido. Em sua lembrança permanece a imagem de um marido trabalhador, que vivia longe de casa devido o serviço que prestava ao SPI.
Dona Maria narrou com ressentimento o trabalho desempenhado por seu marido: _ “meu marido foi uns dos que abriu esses lugares todos e todas as estradas daqui e agora os mais novos que chegaram, ficam dizendo que foram eles, os antigos trouxeram da Bolívia os primeiros bois para a aldeia e os novos ficam dizendo que são donos. Escuto tudo isso calada, não falo nada”.
O desabafo de Maria Machado correspondeu com a mesma insatisfação de seu João, presente em sua narrativa. Sentem-se injustiçados, por não haver alguma forma de reconhecimento aos primeiros grupos levados para o Ricardo Franco, responsáveis pela base inicial da estruturação da aldeia. Hoje os descendentes dos Cassupá/Massaká, são um dos grupos reduzidos, a única família que permaneceu no Ricardo foi a família constituída por Julião Massaká/Cassupá e Maria Machado Macurap. A redução do grupo na aldeia pode ser um dos motivos de não terem nenhuma representação política.
Como já havia marcado a conversa com seu João um dia anterior, sabia que ele ia oferecer uma chicha de trabalho em sua casa, por isso resolvi ir cedo para casa de seu João. Cheguei as 7:00 horas e encontrei seu João carregando macaxeira, que havia deixado de molho no porto de um dia para outro, para prensar e tirar a massa para fazer farinha.
Cheguei junto com o primeiro roçador e acompanhei todos os trabalhos. Enquanto os demais homens roçavam, seu João construiu a base do forno que após ter sido assentado, foi logo inaugurado com a massa que já estava pronta para a farinhada.
Tomaram chicha no decorrer de todos os trabalhos e depois do termino dos trabalhos foram para a casa de festa que seu João construiu, para continuarem tomar chicha até secarem os dois cauchos.
Durante a chicha seu João se ausentou, para fazermos a conferência do texto, apesar da agitação do dia concentrou-se para ouvir a leitura do texto, texto e emocionadamente confirmou tudo que estava no texto dizendo que não tinha o que tirar nem colocar. Partindo de alguns pontos da cápsula narrativa[6], puxei mais assunto com seu João, que contribuíram com o aprofundamento de sua narrativa.
Os participantes da chicha de seu João foram convidados para participarem da chicha em comemoração ao aniversário do irmão da Elenilza, que iria realizar-se em sua casa, há 1 Km de distancia da casa de seu João. Elenilza pertence à família Tupari, única família dos Tupari que residem no Ricardo Franco. A festa começou no final da tarde e terminou só de madrugada. Não Participei até o final fui cedo para casa do chefe de posto. Em um mesmo dia tive oportunidade de participar dos dois tipos de chichas existentes na aldeia, a chicha de trabalho e a chicha de festa.
Podemos perceber diferentes tempos, marcados pelo ritual da Chicha que são diferenciadas pela Chicha de trabalho e a chicha de festa. Na chicha de trabalho são realizados os roçados individuais ou coletivos e nas chichas das festas os membros da comunidade bebem, dançam, compartilham os segredos dos efeitos da própria Chicha. As duas são momentos de encontros onde revivem as experiências que marcam o aspecto coletivo do seu cotidiano.
A presença de instituições: escola, chefe de posto da Funai e a farmácia, marcam sem muita rigidez, um certo tempo cronológico ocidental, devido o horário do sino de entrada na escola, do medicamento e da transmissão da rádio da (FUNAI) que de uma certa forma interagem em seu cotidiano, mas não os prende a essa cronologia. Podendo haver por exemplo no horário de meio dia o início de preparação para um roçado coletivo, onde as famílias se encontram para tomar chicha e preparar as ferramentas de trabalho. Nesta situação ha a oposição do tempo do roçado sem horário estabelecido sobre o tempo mecânico da produção.capitalista.
Visitei seu Francisco Canoé um dos mais velhos, da aldeia. Seu Francisco chegou no posto Ricardo Franco ainda no tempo do SPI e trabalhou na frente de atração de outros indígenas ainda não contactados da região[7]. Quando cheguei em sua casa já havia saído com sua esposa para o roçado. Suas filhas, noras e netas estavam preparando a chicha para o outro dia, que iria ser oferecida após os homens terminarem de roçar o pátio da casa do Jorge Santos Canoé até a casa de seu Francisco Canoé. Nessa chicha percebi a divisão do trabalho, as mulheres da família reuniram-se na casa que seria oferecida a chicha, e os homens ficam responsáveis pelo roçado no outro dia. Talvez seja por esse motivo que não vi nenhuma das mulheres roçando junto com os homens nas chichas de trabalho que presenciei.
Perguntei ao seu Francisco se sabia falar na língua dos Cassupá. respondeu-me que nunca existiu Cassupá, existiu Massaká. Contou que uma Massaká fugiu com outro Massaká por um rio e esse massaká chamava-se Cassupá, por isso passaram a ser chamados Cassupá.
Por meio da curta conversa com dona Maria Machado e seu Francisco Canoé, incluindo a narrativa do seu João e a própria observação da distribuição das lideranças na aldeia, percebe-se que a família Massaká/Cassupá atualmente não exerce poder nenhum na Terra indígena Guaporé, mas já exerceu. O pai do seu João parece ter sido uma das grandes lideranças no início da instalação do posto indígena Ricardo Franco. Por meio dessas conversas e da entrevista com seu João, percebe-se que no período em que o SPI utilizava os indígenas na Frente de Atração, havia vários grupos de trabalho para os diferentes postos Indígenas. Em cada grupo existia um líder e as conversas com os mais velhos e a entrevista com seu João indicam que o pai do seu João era o líder do grupo residente no posto indígena Ricardo Franco.
ALGUMAS QUESTÕES A SEREM CONSIDERADAS
As famílias Aikanã e Massaká reconhecem os Cassupá como seus parentes, os Aikanã dizem que os Cassupá são Aikanã e os Massaká dizem que Cassupá e Massaká são o mesmo Povo, que a identificação Cassupá foi adquirida depois da saída de seu território de origem.
A identificação dos Cassupá não pode ser entendida dentro dos padrões institucionais do reconhecimento de uma etnia em que o grupo étnico é reconhecido por seus atributos culturais, língua, lugar de origem e costumes culturais. Dentro de um discurso etnológico situado num campo subjetivo, o que é levado em conta na definição de um grupo étnico são os traços que os próprios indivíduos que atuam no grupo julgam significativos, dessa forma o princípio de nascimento é um elemento utilizado por grupos étnicos no processo de recrutamento, isto é, como critério de aceitação dos seus membros (Poutignat, Streiff-Fenart 1998:160:161). Mas a filiação não se apresenta sozinha na definição da pertença étnica, a sua afirmação se baseia simultaneamente no reconhecimento da origem e na identidade manifesta. Esse critério de reconhecimento é um dos traços considerados na identificação Cassupá, todos que se dizem Cassupá são legitimados a partir da identificação assumida por seus pais por meio do reconhecimento dos mais velhos.
O lugar de origem para os Cassupá representa muito mais que um lugar territorial é antes uma formulação mítica e coletiva de sua identidade. É somente a partir da formulação discursiva dessa origem que é possível dizerem-se Cassupá. A origem e a trajetória são tomadas como referenciais de uma história comum e um sentimento de identidade.
O sofrimento compartilhado em uma trajetória dá sentido para a vivência e a identificação do grupo. O reconhecimento da identidade Cassupá entre eles parte do reconhecimento de uma origem comum, o lugar Cascata é o referencial para a formulação da origem comum. E a trajetória compartilhada passa a representar a estrutura mítica que desempenha um papel sustentável na definição do ser Cassupá que se fundamenta no sentimento de uma História Comum, construída por uma memória coletiva, nutrida pelas lembranças de suas experiências vivenciadas no trajeto de suas vidas.
A busca da identidade Cassupá é a busca do sentido de sua existência como grupo, como povo, mais ainda é a vontade de manter essa existência por meio de seus sucessores, é o impulso de lutar contra o esquecimento e alcançar uma imortalidade simbólica. É esse sentido que sustenta existencialmente sua “identidade” e sua “diferença”.
Notas
[1] Chicha é uma bebida preparada com milho ou macaxeira, cuja fermentação propicia um leve teor alcoólico. Ingerida em grande quantidade, colabora com animação dos participantes das festas, sem chicha não há festa. A chicha também anima os trabalhos comunitários, seja pelo fator estimulante, bem como pela riqueza de nutrientes: amido – consistência alimentar. O significado simbólico varia de acordo com as representações discursivas que determinam as nomeações de cada realidade referida.
[2] Organização dos Povos Indígenas Cassupá e Salamãi. Criada a partir de um encontro com a comunidade no período de 15 e 16 de dezembro de 1995. A partir dessa organização política iniciaram a luta por um território, buscando através dos mais velhos a compreensão de sua origem e trajetória para ser utilizada como base para a reivindicação da pertença étnica.
[3] Jornal Alto Madeira, Porto Velho, 30, 31, de maio de 1993. encarte especial, escrito por Vitor Dequech, como contribuição, com os Cassupá na comprovação de sua identidade étnica, para reivindicarem seus direitos enquanto indígenas, junto a FUNAI e demais instituições.
[4] Na fase das transcrições, das entrevistas é passada para a escrita a narrativa dos colaboradores, não somente o que é dito, mas os gestos, as emoções, os ruídos; de forma que seja passado o contexto do momento em que se realizou a entrevista. “... a passagem fiel do que foi dito para a grafia” MEIHY (1991:30)
[5] Textualização processo de estruturação das entrevistas em textos, mas propriamente a construção de textos em colaboração, a fala do oralista é integrada na fala do colaborador, o que não é meramente o ato de riscar perguntas e deixar respostas. Mas, o momento em que se deixa fluir a voz do colaborador, mantendo sua temporalidade.
[6] Como resultado de uma origem voluntária que permite aparecer o eixo narrativo do próprio entrevistado; sua temporalidade pessoal; principio, meio fim que dirigirá nosso trabalho de transcriação, sem precisarmos mais refazer os eixos a nossa revelia (...) temos uma cápsula narrativa com estrutura única e uma temporalidade específica. Caldas (1998: 39)
[7] os grupos indígenas que foram conduzidos para o Vale do Guaporé, antigo Posto Indígena Ricardo Franco, foram utilizados pelo SPI como mão de obra agrícola, extrativistas e nas frentes de atrações de índios isolados.
BIBLIOGRAFIA
CALDAS Alberto Lins. SEIS ENSAIOS DE HISTÓRIA ORAL. Caderno de Criação, UFRO/Centro de Hermenêutica do Presente, nº15, ano V, p. 37/57, Porto Velho, junho, 1998.
__________. ORALIDADE, TEXTO E HISTÓRIA: PARA LER A HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1999.
__________ NAS ÁGUAS DO TEXTO. Edufro, Porto Velho, 2001.
GEERTZ, Renato. A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS. LTC, Rio de Janeiro, 1989.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. CANTO DE MORTE KAIOWÁ. Loyola, São Paulo, 1991.
__________. MANUAL DE HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1996.
MEIRELES, Denise Maldi. ENTRE MUTUNS, SABIAS E LABAREDAS DE BREU. UnB, Departamento de Antropologia, Núcleo de Pesquisas Etnológicas Comparadas, datilografado, Brasília, 1989.
POUTIGNAT, Filippe; ESTREIFF-FENART, Jocelyne. TEORIAS DA ETINICIDADE. Unesp, São Paulo, 1998.
Jornal ALTO MADEIRA, Porto Velho, p/ 30, 31, de maio de 1993.