MINÚSCULO ESTUDO DE EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS DE GUAJARÁ-MIRIM, RO
CENTRO DE PESQUISAS LINGÜÍSTICAS DA AMAZÔNIA -UFRO
“El lenguaje es, portanto, uma fuerza creadora de la nacionalidad; también es la fuerza que determina el comportamiento del individuo de forma decisiva. Por otra parte, el lenguaje es un producto de la nación, de las fuerzas intelectuales que actúan en ella.” (Adam Schaff)[1]
1. Introdução
Como força criadora da nacionalidade, segundo a idéia de Schaff, baseando-se em Humboldt, a linguagem congrega um sem-número de características culturais do povo que a fala, além do sistema orgânico que rege propriamente a linguagem, a saber, sua gramática.
Desenvolvi em outra oportunidade[2], a respeito da construção da teoria da metáfora funcional, a idéia de que, em muitas circunstâncias, a língua é mais do que um mero sistema de comunicação e funciona como um depósito das experiências culturais de uma comunidade, experiências essas que se revelam em construções atípicas, em figuras que só fazem sentido em cenários muito específicos, em estruturações sintáticas que parecem fugir aos parâmetros gramaticais impostos pela língua e que, em suma, formam um conjunto peculiar de fatos da língua como falada em uma comunidade que só podem ser justificados como o resultado de uma longa e complexa construção cultural por parte dessa comunidade de falantes.
Neste artigo abordarei algumas dessas construções culturais, na forma de expressões lingüísticas colhidas na região de Guajará-Mirim, fronteira brasileira com a Bolívia, tentando recuperar, na medida do possível, os processos como elas foram constituídas.
2. Expressões idiomáticas
O conceito de idioma se confunde, em muitos trechos da literatura lingüística, com o conceito de língua. Historicamente, porém, o conceito de idioma decorre do conceito de estado organizado e da necessidade (mais ideológica do que real, diga-se) de estabelecer “línguas oficiais” nesses estados. A idéia de idioma acaba evoluindo, então para o que seria, por definição, “a língua oficial de um estado organizado”.
Essa “língua oficial”, como era de se esperar, acaba se diferenciando de nação para nação em que uma mesma língua é oficialmente falada (p.ex.: inglês dos Estados Unidos e inglês da Inglaterra; português do Brasil (brasileiro) e português de Portugal) e a necessidade de explicar diferenças lingüísticas naturais em sistemas oficiais de línguas absolutamente arbitrários e artificiais, gera, por sua vez, o conceito de expressão idiomática.
A tradição definiu a expressão idiomática da seguinte forma:
"Expressão idiomática é qualquer forma gramatical cujo sentido não pode ser deduzido de sua estrutura em morfemas e que não entra na constituição de uma forma mais ampla.” (Dubois et alii, p.330)[3]
Em outras palavras, a expressão idiomática é um tipo de construção que não decorre diretamente do sistema gramatical da língua oficialmente adotada, mas da construção cultural que uma comunidade de falantes faz com e nessa língua e, por isso, ou seja, por ser esse tipo de “aberração gramatical não autorizada” precisa ter sua inelutável presença nos idiomas atenuada por um “não entra na constituição de uma forma mais ampla”.
Na verdade, as expressões idiomáticas entram sim na construção de formas mais amplas da língua, apresentam uma estruturação lógica e processos de constituição já bem conhecidos e não são fruto de um acaso pervertido que desbanca a pureza das línguas oficiais. Ao contrário disso, são o resultado de um conjunto de processos bastante produtivos em qualquer comunidade de falantes, que acaba por estabelecer traços morfossintáticos muito próprios que passam a atuar como elementos diferenciadores daquela comunidade, ou seja, passam a atuar como marcas identitárias.
3. Marcas identitárias
Embora a idéia de elementos diferenciadores entre culturas não seja nada original, tenho chamado de marcas identitárias a toda e qualquer forma de diferenciação cultural que se configure como uma especificidade de uma comunidade qualquer em relação a outra, o que inclui as formas como essa comunidade usa seu idioma. Esse nome foi uma decorrência quase natural de um trabalho de caracterização cultural de nações indígenas da região de Guajará-Mirim e Costa Marques que desenvolvi na época e para os fins de meu doutoramento, em que percebi que as diferentes nações indígenas que falavam línguas da mesma família Chapakura, línguas tão próximas que poderiam, em dados momentos, ser consideradas como variantes de uma mesma língua, faziam questão de manter sua identidade nacional a partir de pequenas diferenças lingüísticas sempre evidenciadas nos contatos intertribais.
Essas marcas identitárias servem, como o nome procura expressar, à construção de uma identidade cultural da comunidade, embora não sejam, ao que parece e na maioria das vezes, propositadamente construídas para esse fim[4], mas acabam sendo propositadamente usadas para esse fim (sempre que passam a ser identificadas, nesse processo de relação intercultural, como diferenciadores importantes) a cada vez que se torna necessário, privilegioso ou prestigioso “identificar-se” como diferente.
O uso de marcas identitárias é bastante evidente, por exemplo, em relações conflituosas entre culturas que já foram (ou que são) de alguma forma rivais[5], como se revela em casos como os das chacotas brasileiras ao sotaque do português europeu, das piadas indígenas a traços da cultura branca em contraposição aos da sua cultura, entre inúmeros outros exemplos.
Por outro lado, em caso de subjugamento cultural, aqueles que acatam pacificamente a posição de subjugados tendem a muito rapidamente tentar apagar suas marcas identitárias e adotar as marcas da outra cultura, como é o caso atual da cultura brasileira em relação à cultura norte-americana. As desculpas para isso são as mais diversas. Por exemplo, publicar artigos em inglês ou francês em periódicos brasileiros é simploriamente desculpado pela “mundialidade[6] do inglês” ou pela “tradição cultural do francês”. Da mesma forma, ocorre quando da adoção de programas de informática em língua inglesa, da adoção de vocabulário inglês principalmente em áreas tecnológicas, em que é chique parecer entendido, e por aí vai... Entretanto, há de se notar que há países cujos povos têm interesse declarado de manter suas marcas identitárias muito evidentes, e essa abdicação pacífica à diferenciação não acontece – pelo menos não de forma tão patente - como, por exemplo, na China e em países do Oriente Médio. E que fique claro que aqui não estou procedendo um julgamento de valores morais e éticos e nem das razões que levam um povo a abdicar ou não de suas marcas identitárias, mas apenas descrevendo. A única observação ética que gostaria de fazer - e mesmo assim reforçando o fato de que não se trata de uma observação bairrista ou xenófoba – é que, ao que parece, indivíduos que abrem mão de suas marcas identitárias nunca conseguem ser plenamente aceitos em outra cultura e não são, por sua vez, reaceitos normalmente em suas culturas de origem, tornando-se algo como indivíduos “anacionais”, “gente-ad-hoc”, e alimentando fortes traços de rejeição em ambos os lados culturais. Mas isso já é tema para um estudo de Sociologia.
3. Algumas expressões idiomáticas de Guajará-Mirim
Guajará-Mirim foi uma cidade que teve bastante tempo para desenvolver marcas identitárias interessantes. Cidade de difícil acesso por décadas e com um povo fundador bastante brioso, foi chamada de a Pérola do Mamoré[7] e era motivo de extremo orgulho para seus habitantes, principalmente pelos níveis de organização urbana que possuía, quando comparada à desorganização urbana de Porto Velho, a capital do Estado de Rondônia. Sua colonização foi bastante atípica para uma cidade Amazônica, com os tradicionais nordestinos soldados da borracha, mas também com forte influência de famílias libanesas e gregas que chegaram em função da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Também há de citar-se a sempre presente influência da cultura da Bolívia, país cujas relações comerciais com Guajará-Mirim constituíram, historicamente, o sustentáculo econômico da região, ora para o lado de cá, ora para o lado de lá, e a oposição constante dos colonizadores brancos aos muitos povos indígenas, tradicionais donos das terras, oposição que criou traços culturais muito fortes, principalmente nas primeiras famílias colonizadoras.
Nesse cenário bastante complexo de relativo isolamento e, ao mesmo tempo, diversidade cultural, Guajará-Mirim desenvolveu um conjunto significativo de marcas identitárias, dentre as quais interessa aos fins deste artigo o conjunto lingüístico. Passo, portanto, a apresentar uma poucas dessas expressões lingüísticas que caracterizam os falantes típicos da região[8] e que, no conjunto de suas marcas identitárias, acabam por constituir uma pintura interessante e original de um dos povos desse povo brasileiro.
Convém frisar que todos os exemplos aqui apresentados foram colhidos em conversas absolutamente informais, nas mais variadas situações sociais na área urbana de Guajará-Mirim (desde, por exemplo, uma compra de feira, até uma sessão solene de colação de grau). Também acrescento que meu interesse aqui não é com a forma fonética ou fonológica da expressão, por isso todos os exemplos vêm grafados na forma ortográfica padrão.
3.1. Só pára andando
Nesta expressão causa curiosidade a sentido muito especial em que é utilizado o verbo “parar”. Embora costumeiramente denote o cessamento de uma ação, nessa expressão esse verbo denota continuidade.
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa - DHLP[9], que uso como referência neste trabalho, ainda aparecem outros sentidos como “deter-se”, “dispor”, “juntar”, “oferecer, expor (a face parada)”, “chegar ao fim”, “não se deslocar”, “não ir além” e alguns outros que sempre se referem a esse cessamento de atividade, de condição estática. Entretanto, em nenhum momento o DHLP (e tampouco o Aurélio[10]) registram esse sentido de “dar continuidade”, “manter-se em modo contínuo”. Nos exemplos colhidos essa conotação fica evidente:
1. Aquele rapaz só pára namorando o tempo inteiro. (O rapaz fica o tempo inteiro namorando ou está sempre namorando.)
2. Não consigo fazer o que você me pede porque só paro trabalhando o tempo todo e estou pra ficar louco. (Não paro de trabalhar, em todo o tempo estou trabalhando.)
3. O problema dela é que ela só pára doente. (Está sempre doente.)
4. Essa Maria corre-campo só pára andando o dia todo. (Nunca pára de andar, está de contínuo andando (pela cidade).)
5. Um funcionário como esse, que só pára fazendo merda, eu não quero nem me pagando. (Um funcionário que fica o tempo inteiro errando o serviço, que nunca faz algo certo.)
Convém registrar que o verbo “parar” somente assume este sentido (pelo menos em todos os exemplos que colhi) junto ao advérbio “só”, constituindo uma expressão: “só parar (fazendo y)”.
É possível entender o sentido de “parar” nessas expressões como “parar ou estabelecer-se em uma condição/estado/ação definido”. Assim, a derivação do sentido mais comumente aceito para o verbo “parar” para o sentido de “manter-se em modo contínuo” parece mais lógica e poderia ser considerada, com razoável critério, como uma forma de metonímia, a despeito do incrível paradoxo aparente da expressão que motivou o título deste artigo: “só pára andando”. A idéia de exclusividade que o modo contínuo exige viria do advérbio “só” que ajuda a construir a expressão a qual, assim, assume um sentido que pode ser definido como: “exclusivamente manter-se (fazendo y)”.
3.2. Só anda parado
Ao lado do “parar”, com o sentido de modo contínuo vem o “andar” com quase o mesmo sentido e igualmente sempre associado ao advérbio “só”. Nos exemplos abaixo pode-se notar isso:
6. Estão passando fome porque o cara só anda parado. (Ele não arruma – ou não quer arrumar – trabalho.)
7. Se você estudasse não teria essa encrenca, mas anda só de arruaça na sala e ainda quer aprender. (Você fica o tempo inteiro fazendo bagunça na sala de aula.)
8. O problema desses políticos é que só andam roubando e esquecem de trabalhar pelo povo. (Eles roubam continuamente, tudo o que fazem é roubar.)
9. Estou preocupado porque a nenê só anda pegando febre. (Ela está continuamente tendo febre, permanece o tempo todo – ou a maior parte dele - em estado febril.)
Nesses exemplos, o sentido de modo contínuo da expressão é bastante claro e a aproximação com alguns sentidos registrados para “andar” no DHLP, como, p.e., “ter seguimento” ou “apresentar certa condição não permanente” parece mais fácil do que na expressão anterior. Ainda assim, a exclusividade exigida pela idéia de modo contínuo é dada pela junção de “só” ao verbo e este sentido específico (que igualmente pode ser definido como: “exclusivamente manter-se (fazendo y)”) também não é registrado naquele dicionário.
3.3. Que-só
Em um artigo[11] recente, Ilari comenta a produtividade da delocução como forma de criação de expressões e palavras nas línguas. Tomando como base a idéia de verbos delocutivos de Benveniste, Ilari ressalta que as construções delocutivas, isto é, aquelas que surgem a partir de locuções na língua e que, por isso, guardam traços e podem ser reconstruídas (muitas vezes) somente a partir do conhecimento dessas locuções, são extremamente comuns nas línguas naturais e mereceriam atenção mais aprofundada dos estudiosos. O advérbio “que-só” é um exemplo desse tipo de construção.
Ele decorre de uma construção comparativa, usada para expressar a grandeza de alguma coisa. Essa construção remanesce em alguns poucos episódios, como nos poucos exemplos locais que consegui recolher em doze anos de registros. Alguns dos mais elucidativos são:
10. Esse sujeito fede que só macaco molhado. (Ele fede muito como fede muito um macaco molhado.)
11. O menino anda crescendo que só pé de milho. (O menino cresce rápido como cresce rápido um pé de milho.)
12. Aquele sim era trabalhador que só Dom Rey. (Ele era muito trabalhador como era trabalhador o Bispo Dom Rey[12].)
13. Tinha bebido que só pé-inchado[13] pra ver. (Ele tinha muito bebido como só um alcoólatra beberia.)
Nesses exemplos, nota-se que a construção comparativa que se faz com “que só” tem o sentido de “apenas como”, “somente como”. Entretanto, com o decorrer do tempo, o termo usado como base de comparação foi suprimido, uma vez que servia exclusivamente para ilustrar a grandeza que se pretendia demonstrar com a construção. A construção comparativa formada com “que só” transforma-se em uma palavra de caráter adverbial “que-só”, a qual passa a ser usada sozinha.
“Que-só”, como aplicado na região, significa, geralmente, “muito”, “demasiadamente”. Veja-se o conjunto de exemplos abaixo:
14. Esse cara é feio que-só. (Ele é muito feio.)
15. Também, vendendo droga o cara ganha dinheiro que-só, mas depois se ferra. (Ele ganha muito dinheiro.)
16. Joguei bola que-só e estou fedendo que-só e preciso tomar banho com aquele sabonete que é cheiroso que-só. (Eu joguei muito, estou fedendo muito e o sabonete é muito cheiroso.)
17. A casa da tia é limpa que-só, mas ela também é chata que-só. (A casa é muito limpa porque a tia é muito exigente.)
Mas, da mesma forma que as expressões que denotam elevada grandeza são corriqueiramente usadas em construções irônicas, o advérbio “que-só” também aparece nesse tipo de construção, como em:
18. Estou preocupada que-só que ele vem me bater... (Não estou nada preocupada com isso.)
19. Estou com vontade que-só de fazer isso agora... (Não estou com nenhuma vontade de fazer isso agora.)
20. Esse cara é lindo que-só e acha que ainda vai arrumar mulher que preste... (Ele não é nada bonito.)
Nesses casos, a ironia revela o oposto da grandeza normalmente expressa pelo advérbio “que-só” associado um verbo ou adjetivo.
3.4. Velho-podre
A expressão adjetiva “velho-podre” não pode ser entendida simplesmente como oposta a “novinho e em perfeitas condições”. Ela tem um sentido mais complexo, essencialmente depreciativo, de algo que não presta, que não tem serventia, que é muito feio, que é muito inadequado a uma certa finalidade, que não apresenta os requisitos básicos exigidos para uma função, entre outros. Os exemplos abaixo demonstram um pouco disso:
21. Estou pensando que a gente ia jantar em um lugar bacana e você me traz nesse restaurante velho-podre. (Restaurante de baixa categoria.)
22. Eu não vou comer essa comida velha-podre sem sal. (Essa comida que, por estar sem sal, tem gosto ruim.)
23. Olha só a bicicleta velha-podre do cara!
No caso do exemplo 23, o sentido ocasional foi “bicicleta que é mesmo velha e que não está bem conservada”, mas, em outra ocasião, registrei com o mesmo grupo de meninos:
24. Olha só com que bicicleta velha-podre ele quer apostar com nós!
Desta feita, um dos meninos, o tal da “bicicleta velha-podre”, estava com uma bicicleta novinha, recentemente recebida do pai como presente de Natal, mas que era do tipo BMX e sem marchas, enquanto os outros queriam apostar corrida com bicicletas com marchas. Logo, o sentido de “velha-podre” aí não era de “velha e mal conservada”, mas de “inadequada à finalidade a que se propôs usá-la”, o que não deixa de ser profundamente depreciativo para a bicicleta e para o proprietário. Continuemos os exemplos:
25. Ela me disse que o cara era um gato, mas era um cara velho-podre, de cabelo meio verde, meio amarelo. (Ele era um rapaz muito feio, entre outras dádivas naturais...)
26. Eu não vou nesse passeio velho-podre que eles estão combinando. (Passeio sem-graça, que não me agrada, sem atrativo algum.)
27. Ela ficou mangando da festa da outra, mas na hora de fazer a festa do filho dela só saiu uma festa velha-podre. (Foi uma festa muito ruim, provavelmente mal feita, mal organizada e com comida ruim, ou ainda, uma festa demasiadamente simplória.)
28. Esse professor velho-podre só fica pegando no meu pé, achando que eu não tenho capacidade. (Professor desqualificado, sem autoridade, de baixo nível.)
29. Também, ela foi arrumar um marido velho-podre safado, e o que ela esperava? (Um marido que não preenche as melhores qualidades esperadas (ou sonhadas...) de um bom marido.)
Esses exemplos demonstram um pouco da complexidade de sentidos que a expressão “velho-podre” assume, todos eles, entretanto, de caráter profundamente depreciativo.
É muito difícil identificar uma origem precisa para esta expressão. Mesmo os falantes mais antigos da localidade não têm qualquer referência histórica para ela ou qualquer explicação mais detalhada, a não ser de que tudo o que é “velho-podre” não presta. Talvez estejamos diante de uma extensão metonímica complexa dos sentidos de “velho” e “podre”, que juntados em um único adjetivo composto o qual guarda traços dos sentidos básicos de ambas as palavras originárias, se constitui como uma nova palavra, com uma significação mais ampla e complexa do que a que se obteria com a simples junção sintagmática dos adjetivos “velho”e “podre” associados a um nome qualquer.
3.5. Dá de fazer
Esta é uma utilização típica do conectivo “de” na região. Enquanto no restante do país a construção seria “dá pra fazer”, aqui na região esta forma com “pra” é vista com ressalvas e, em função da polissemia do verbo “dar” (que permite a conotação de “assumir a condição passiva no ato sexual”) a ela responde-se “não precisa: pode fazer sem dar mesmo...” esta interpretação decorre do sentido de “finalidade” associável ao conectivo para/pra, que não existe em “de”.
Assim, a construção “dá de fazer” não permite a conotação que se dá à forma mais difundida nacionalmente da expressão, mas é improvável que a forma regional com o conectivo “de” tenha surgido em decorrência de algo relacionado a esse fato. E também, não consegui identificar nenhuma razão histórica para esse tipo de construção, embora haja uma hipótese local de que isso seria algum tipo de influência do espanhol, na fronteira com a Bolívia. Entretanto, se isso for comprovado um dia, restará explicar porque a expressão é encontradiça em um conjunto de comunidades muito maior do que apenas a região fronteiriça.
3.6. Me briga e me monta
As construções com o pronome “me”, entretanto, em sua forma regional típica, como nos exemplos:
30. Testou de castigo porque minha mãe me brigou quando eu cheguei tarde em casa. (Minha mãe brigou comigo.)
31. Esse cara me machucou porque ele me montou nas costas sem eu ver, e aí eu caí. (Montou em minhas costas.)
32. Se você tirar nota baixa, a professora te briga e daí teu pai te briga também. (A professora briga comigo e meu pai briga comigo também.)
Essa construção encontra analogia em outras do brasileiro em que o pronome antecede o verbo, como “me conhece”, “me prejudica” e “me paga”, mas é interessante a adoção de seu uso com os verbos “brigar” e “montar”, popularmente regidos pelos conectivos “com” e “em” respectivamente: “brigar com” e “montar em”. Esse uso do pronome antes do verbo não deixa de ser uma forma de focalização o objeto em relação ao verbo, mas isso só não justificaria uma construção tão singular em relação ao uso popular no Brasil.
Ainda aí aparece a hipótese local de influência do espanhol fronteiriço, e, realmente, é impressionante o uso dessa forma de regência entre os muitos migrantes que vivem na faixa brasileira da fronteira, embora isso fosse facilmente explicado pelo aprendizado da língua local pelos migrantes bolivianos. Mas, se isso vier a ser comprovado, ainda aqui, ficaria faltando explicar a razão da disseminação macrorregional da expressão.
3.7. Não num sei não.
O uso de três negativas para o mesmo verbo também parece constituir uma expressão idiomática regional típica. Em outras partes do Brasil, registrei o uso de duas negativas concomitantes, especialmente entre nordestinos, com as formas a.[não num ______] e b.[não _______ não], mas muito mais significativamente com essa forma “b”:
33. Não num comi isso hoje.
34. Não provei não essa experiência.
35. Não num sei do que se trata.
36. Não acabei não o que estava fazendo.
Outra forma de negativa dupla e muito difundida em todo o país é o uso de advérbio de negação associado à negação dos nomes “nada”, “ninguém”, “nunca” e “nenhum”, como em:
37. Nunca vi ninguém ali. (ao invés da construção com uma só negativa: Nunca vi alguém ali.)
38. Não faço nada que machuque ninguém. (Ao invés da construção com uma só negativa: Não faço algo que machuque alguém.)
39. Não vi nunca nenhuma coisa igual a essa. (Ao invés da construção com uma só negativa: Nunca vi alguma coisa igual a essa.)
Em todos esses casos, construções como
a. [não num ______]
b. [não _______ não]
c. [não _______ nenhum]
d. [não _______ ninguém]
e. [não _______ nada]
f. [não _____ nunca]
funcionam, sem aparentes restrições na língua, difundidas pela maior parte do país. Mas não havia, ainda registrado o uso disseminado de uma tripla negação, que parece ser até a junção das formas “a” e “b” acima expostas.
Essa junção poderia ser explicada pela formação da população de Guajará-Mirim com nordestinos, que preferem a forma “b” e a grande quantidade de bolivianos que moram na cidade, dentre os quais praticamente todos usam muito corriqueiramente a forma “a”[14]? É possível imaginar isso e, em sendo aceito, estaríamos diante de uma junção de expressões idiomáticas deveras interessante, na qual duas formas de construção com dupla negação se fundem em uma forma com tripla negação: a. [não num ______] + b. [não _______ não] = g.[ não num ______não]. De qualquer forma, aqui apresento alguns exemplos de tripla negação em um mesmo sintagma:
40. Não num recebi não ainda o décimo e, por isso, só te pago na semana que vem.
41. Sabe que eu não num sei não esse negócio de Matemática.
42. Da casa? Não num entendo não porque as paredes ainda ficam rachando.
E, durante os registros, encontrei três exemplo de quádrupla negação, com associação de nomes nos moldes das estruturas “c” a “f”. Vejamos as frases:
43. Desse troço eu não num compreendo nada não.
44. Eu não num roubei ninguém não e isso é tudo mentira da polícia pra me incriminar.
45. Ele não num sabe porra nenhuma[15] desse troço não: é pura garganta dele.
Nos exemplos 43 a 45 nota-se que a estrutura básica g. [ não num ____ não] é ampliada em uma posição negativa aparentemente opcional, criando a estrutura:
h. [não num ______ (_______) não]
nada
ninguém
nenhuma
nunca
que seria, então, a forma mais ampla de negação que já encontrei na região, com quatro posições negativas associadas a um mesmo verbo, sendo três diretamente adverbiais (1, 2 e 4) e uma completiva verbal, com um nome de negação do tipo nenhum, nada, ninguém ou nunca.
Assim como nas demais construções negativas, nesse caso, ainda, prevalece a dúvida quanto ao histórico da construção ou os processos diretamente envolvidos em sua arquitetura, embora tenhamos a hipótese da fusão de expressões. Mas a não identificação precisa do processo de construção certamente não desmerece o brilho próprio e peculiar da construção em si.
4. Conclusão
Como ressaltei no início deste estudo, o conjunto de marcas identitárias de um povo ajuda na constituição de sua personalidade ou, como se diria lembrando a visão Humboldt, de seu “volksgeist”. Não se trata de um conjunto de particularidades insignificantes que devam ser desprezadas como esquisitices de um povo ou deixadas ser destruídas por um ensino massivo e massacrante da língua materna como a vêem os normativistas, mas que precisa ser preservado ao mesmo custo da preservação da própria identidade da comunidade que utiliza essas marcas.
Estudos - mesmo que preliminares e incipientes como este - dessas marcas culturais, sejam da linguagem, sejam de qualquer outra manifestação, valorizam essa riqueza humana e ajudam em sua preservação.
Numa época em que a parte mais endinheirada do mundo luta pela massificação dos homens e a destruição dos limites nacionais, em uma sanha avassaladora pela conquista econômica e a outra parte, menos endinheirada, tenta resistir a essa dita globalização, cumpre que as pessoas que reconhecem a importância das diferenças humanas se concentrem mais e mais no registro e na defesa de cada traço cultural que nos caracteriza dentro dessa enorme, complexa e maravilhosa diversidade chamada humanidade.
Notas
[1] Adam Schaff (1964). Lenguaje e Conocimiento. Mexico: Editorial Grijalbo.
[2] Celso Ferrarezi Jr (2002). “A Metáfora Funcional”. In: Livres Pensares. Porto Velho: EDUFRO.
[3] Jean Dubois et alii (1990). Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix.
[4] Embora haja casos interessantes de construção proposital de diferenças registrados na literatura.
[5] Por exemplo, em relações internacionais do tipo colonizador/colonizado, invasor/invadido, explorador/explorado.
[6] Falar em “universalidade do inglês” já é sacanagem: até no Céu e no Inferno andam falando inglês...
[7] Mamoré, rio que marca a divisa do Brasil com a Bolívia na Amazônia Ocidental.
[8] Embora possam não ser expressões exclusivas de Guajará-Mirim, sendo que algumas sào encontradiças em outras áreas próximas da Amazônia.
[9] Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.
[10] A termo de comparação, convém relacionar também: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1999). Novo Dicionário Aurélio Século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, uma vez que se trata do mais popular dicionário brasileiro.
[11] Rodolfo Ilari (2002). “Encore Quelques Délocutifs”. In: DELTA 18 (Especial):115-130. São Paulo: EDUC.
[12] Dom Xavier Rey, personagem importante da história local e muito venerado entre os habitantes mais tradicionais da região.
[13] Expressão local para “alcoólatra”.
[14] Como em: “No, no lo conozco.” ou “No, no lo veo.”
[15] Expressão popular e muito difundida localmente, equivalente a “nada”.