A crise do humanismo e a morte do homem em Michel Foucault
Mestrando em Filosofia Social - PUCCAMP
Em julho de 1999 o filósofo alemão Peter Sloterdijk provocou a revitalização de uma polêmica ao proferir uma conferência cujo título, "Regras para o parque humano", apresentava uma explanação sobre a crise do humanismo ocidental e uma relação deste com o problema da aplicação da engenharia genética em seres humanos. Sloterdijk acabou sendo criticado por se comportar de forma elitista e deixar transparecer um suposto "nazismo". Uma das reações mais violentas ao seu texto veio de Jürgen Habermas que acusou Sloterdijk de avaliar a questão sem considerar as implicações históricas, políticas e sociais a que são remetidas todas as discussões sobre o tema, tentando se passar por biomoralista.
Para Sloterdijk, a tentativa de programar a história por meio de uma engenharia social faliu, mas o programa de aperfeiçoamento da natureza humana continua. Fazendo referências que vão de Platão a Freud ele insiste que o parque humano conteria em sua essência o projeto humanista republicano platônico. Para ele, Platão teria estabelecido as bases da necessidade de uma espécie de "antropotécnica", através da qual as "pulsões animais" dos homens seriam contidas por "pulsões domesticantes", a fim de se atingir um "Estado perfeito". A habilidade dos sábios apontada por Platão teria, ao longo da história do humanismo, passado da leitura ("lesen" em alemão) à seleção ("auslesen"). Isso porque a arte do cultivo humanista teria passado de uma necessidade de discernimento "intelectual formativo" para a de discernimento "material\experimental formativo". Em síntese, teria se estendido das categorias estritamente filosóficas para as práticas políticas e científicas.
Assim, da leitura à formação, o humanista ocidental característico de uma época tecnicista como a atual acaba por se comportar como um fabricante da própria natureza humana. Sua proposta é uma tentativa de pensar as conseqüências do desenvolvimento da técnica e de se discutir um código antropotécnico, tendo em vistas ser impossível impedir que o progresso da genética alcance cedo ou tarde patamares previstos pela ficção científica. O silêncio nesse caso não nos livraria do inevitável.
A presença da biotecnologia tem abalado de certa forma a compreensão da inteligência ocidental sobre seu próprio processo de desenvolvimento. Embora tenham conseguido acompanhar a superação de algumas barreiras metafísicas, os cientistas do mundo inteiro estariam tentando suspender o que Sloterdijk chamou de quarta barreira, o limite entre máquina e organismo. Ele afirma que este limite nunca pareceu de fato tão ameaçado, e embora a batalha moral que se encontra na prática da programação gênica em seres humanos, a biotecnologia é um horizonte promissor da indústria atual, dando fôlego para a soberania de mercado que substituiu a noção de cidadania pela de consumidor. Nessa perspectiva o horror humanista encontra o narcisismo na patologização da velhice, na beleza higiênica dos corpos esculpidos e no culto da eficiência a toda prova.
O que importa aqui não é satisfazer os interesses que prezam pela democratização do consumo de bens gênicos mas entender os expectros da aparente revolução ontológica que se apresenta. A apreensão pragmática da idéia de Natureza, ou o que resta dela, torna-se o foco de uma cognoscibilidade orientada pela eficácia, onde permanecer sendo é "programar eficientemente". De acordo com o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, o homem da cultura genética não conhece outra possibilidade que a sua "tecnhé", e a própria definição da cultura como algo que se diferencia da Natureza tende a se dissolver. Com o "natural" destituído de seu privilégio, a consistência ética da engenharia genética migra para a discussão sobre os procedimentos técnico-sociais, como regulamentação jurídica, padrões de comportamento e demandas de consumo. Assim, o drama da morte da Natureza é privatizado.
O materialismo, desse modo, deixa de ser uma concepção de mundo e torna-se uma prática ética que molda o real, verdadeiro exemplo de transcendência. De uma forma inversa isso faz lembrar o programa romântico que discutia a possibilidade de, em virtude do medo do avanço industrial, se colocar "espírito na máquina", humanizando-a. Parece que a própria crise do humanismo nasce um pouco da incapacidade, não de humanizar as máquinas, mas de se perceber que elas foram "humanizadas demais". Parece que hoje se chega à conclusão de que havia "espírito demais" nas máquinas quando elas serviram a algo como o holocausto, em todas as suas proporções, seja no extermínio de judeus nos campos de concentração na Alemanha, seja nas bombas atômicas lançadas sobre o Japão, seja nas milhões de mortes anônimas - civis que serviram de alvo às tecnologias de guerra pesada que nasciam para não encontrarem ainda seu ocaso.
A troca de acusações entre Habermas e Sloterdijk encontrou no problema político o foco que chamou atenção para o desenvolvimento de uma tecnologia que não será mais uma entre as outras, mas representa um potencial emancipatório que chega a ser assustador, pois como afirma Pondé, desde o mito da Queda, romper o que é considerado o "limite natural" significa a sensação de vertigem do ser. De caçadores-coletores do natural, passamos a seus programadores. Na esteira dos acontecimentos Sloterdijk, em entrevista ao jornal "Folha de São Paulo", evoca então a figura de Michel Foucault, lamentando sua morte prematura, afirmando que no fundo seria esse o seu tema, a biopolítica e o poder sobre a vida, e que a sua lucidez e capacidade de análise fazem falta hoje em dia. Mas em que medida Foucault poderia atender ao chamado de Sloterdijk?
No primeiro volume de sua "História da sexualidade" Foucault discorre sobre a noção de biopolítica, na qual havia começado a trabalhar quando se confrontava com os temas sobre os indivíduos e os modos de objetivação pelos quais estes passam ao serem considerados numa relação de poder político. O direito de vida e de morte, inerente ao modelo clássico de soberania, significa que a vida e a morte não são fenômenos naturais imediatos que se localizariam fora do campo do poder político. A partir do século XIX esse direito se transforma e de um direito de "fazer morrer e deixar viver" o direito que se instala é o de "fazer viver e deixar morrer", já que no plano de um contrato as pessoas se reúnem para constituir um soberano que as protejam e as mantenham vivas. Estudando esse poder ao nível de suas técnicas de atuação Foucault as identifica não por se aplicarem ao corpo dos indivíduos, como as disciplinas, mas à própria vida, ao próprio homem ser vivo. Essa nova tecnologia não é individualizante, mas massificante, porque investe sobre o homem-espécie, constituindo-se numa biopolítica da espécie humana. No foco da biopolítica estão os processos que envolvem a vida dos homens, como natalidade e morte, doença e saúde, acidente e previdência, enfim, toda a longa série de fatores que serão necessários para constituir um governo dos vivos, segundo a idéia de população.
A vida como um fato político entra na economia do governo, que desenvolve estratégias para sua melhor disposição dentro do corpo social. A biopolítica vai se dirigir aos acontecimentos aleatórios numa população considerada em sua duração, estabelecendo mecanismos reguladores que busquem o equilíbrio, uma espécie de homeóstase diz Foucault, para assegurar compensações. Os processos biológicos do homem-espécie devem ser assegurados por uma regulamentação que seja capaz de manter no campo de visibilidade do poder político a existência humana, segundo princípios de previsibilidade. Entre a ordem disciplinar dos corpos e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica circula a norma, conferindo ao biopoder um controle sobre os fatores de risco e perigo que cercam uma sociedade complexa.
Mas numa sociedade guiada pela idéia de fazer viver como é possível para o poder político exercer o direito de matar? Como exercer o poder da morte num sistema político pautado pelo biopoder? Foucault cita o racismo como sendo um meio de introduzir no domínio da vida apropriado pelo poder um corte, o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Se o poder de normalização quer exercer o velho direito de matar então ele deve passar pelo racismo. A guerra, desde que deve expor os cidadãos ao combate, deve apelar para o racismo, assim como a luta contra a criminalidade e contra o terrorismo. O racismo assegura a função da morte no biopoder segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa enquanto membro de uma população ou raça, numa pluralidade viva e unitária. O próprio nazismo foi uma extenuação do biopoder, segundo Foucault.
Os estudos de Foucault alertam para o fato de que novos domínios de saber engendram formas de poder que lhe são correlatas, incluindo estratégias de utilização das novas técnicas, que constituem uma pré-configuração de sua aplicação social. O que importa é tentar entender de que maneira uma ação coletiva na forma de uma participação democrática tem forças para dar ao projeto técnico que se aproxima rumos realmente diferentes.
Ao afirmar que a evolução das coisas na cultura ocidental é por demais poderosa para ser contida por meio de uma mera meditação ou da abstinência conservadora, Sloterdijk ressalta que há um desconforto no poder de escolha, e que em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve. A formulação (deliberativa e participativa) de um código de antropotécnicas pode ser a saída para os horrores iniciais que tal projeto representa. Afinal, múltiplo nas formas, o programa tecnológico da modernidade precisa continuar expandindo seus efeitos benéficos.
Mas há um problema. Mesmo que para muitos cientistas o sentido ético da própria evolução tecnológica seja banal, ou seja, sem sentido próprio, constantemente voltam os alertas dando conta de que dentro das máquinas ainda há "espíritos demais" que as comandam, enfim, aviões comerciais não colidem com prédios por ser da sua natureza colidir com prédios. Como pensar melhor essa ambivalência sem cair numa teratologia? Nos seus últimos estudos Foucault passa a trabalhar mais intensamente as questões que envolvem a relação do indivíduo consigo mesmo. Sabe-se muito bem que os trabalhos de Foucault, em sua grande maioria, têm um sentido normativo neutro, com em Weber, e de sua desistência quanto às tarefas do humanismo, tendo sido inclusive o responsável por uma polêmica "morte do homem". Mas, que sentido têm essas palavras hoje em dia?
Ora, em primeiro lugar nos lembra a revolta de Foucault com os discursos próprios às ciências que se organizaram em torno do indivíduo e o transformaram num objeto de estudo e manipulação. Mas antes do que uma revolta contra as ciências humanas, uma revolta contra a imposição de padrões de racionalidade que impedem uma relação do indivíduo com ele mesmo. De fato, Foucault sempre se preocupou com a violência inerente a certas formas de racionalidade, das quais procurou fazer uma genealogia, com o objetivo de inverter seus padrões de visibilidade. O sentido normativo neutro de suas pesquisas buscava, ao invés de prescrever regras de ação, restituir a capacidade do sujeito de compreender o horizonte de liberdade no qual ele é obrigado a interagir. Nesse sentido, o alerta de Sloterdijk sobre a inevitabilidade da programação gênica causa espanto. Os seres humanos são impelidos para tomada de decisões sobre seu próprio futuro sem que sequer entendam a extensão dessa necessidade imediata. O que se torna imperativo nesse caso, não é tentar tomar o poder das mãos que detém o conhecimento técnico, mas refletir sobre de que forma estamos, cada um de nós, implicados nesse problema.
Do ponto de vista dos governados preocupados com os possíveis horrores da indústria de biotecnologia, não se deveria voltar uma atenção total para a fabricação de códigos, embora em algum momento tal intervenção seja imprescindível, já que é inerente ao processo democrático. Deve-se focar também os meios pelos quais a sociedade se sente obrigada a decretar a inevitabilidade de sua intervenção num terreno em que só participa com a aceitação ou não do consumo. Sobretudo porque, como nos chama à lucidez Michel Foucault, devemos tomar cuidado com as ilusões que nos fazem crer em necessidades ou exigências fundamentais cuja imperatividade pode ser facilmente legitimada, como os assassinatos em massa o foram durante todo o século vinte, na sua grande maioria, em nome do progresso científico e de direitos inalienáveis. Enfim, existe uma reconsideração a ser feita, seguindo os passos de Foucault, e diz respeito às condições através das quais, cada um de nós, enquanto um ser humano é chamado à razão para decidir sobre si mesmo sem dispor de um verdadeiro poder de escolha. Nesse sentido é como se estivéssemos sendo incluídos para decidir se queremos ser mortos ou se queremos cometer um suicídio.
Em segundo lugar, ainda com Foucault e sua morte do homem, talvez cada um desses momentos de suspensão metafísica de barreiras tradicionais guarde uma oportunidade construtiva. Se em algum instante ficou claro que havia "espírito demais" nas máquinas, e que o limite entre organismo e máquina deva ser suspenso em detrimento do organismo que somos, talvez - se isso representa uma morte "inevitável" da "Natureza humana" - devamos aproveitar um pouco a ocasião que nos convida a morrer recordando as últimas lições do professor francês. Analisando Epíteto e Sêneca Foucault regressa aos textos clássicos que discutiam a relação do indivíduo com a verdade. Um dos exercícios dos Estóicos, e dentre eles quem mais o praticou fora Sêneca, encontrava-se a melete thanatou, que funcionava como um exercício da morte, com o objetivo de torná-la atual. Para Foucault o que faz o valor particular da meditação da morte não é somente que ela antecipa a maior das desgraças, mas é o fato de ela oferecer um olhar retrospectivo sobre a própria vida. Considerando-se a si mesmo a ponto de morrer, pode-se julgar cada uma das ações que se está cometendo segundo seu valor próprio. Para Sêneca o momento da morte era aquele em que se poderia ser juiz de si mesmo e medir o progresso moral que se terá tido até o último dia. Na intimidade dessa experiência o sujeito está livre para decidir o quanto de verdade sobre si mesmo consegue enxergar e suportar.
Em "L´homme revolté" Albert Camus nos ensina que o momento da revolta é um momento de negação e de afirmação. É a recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e uma adesão integral e instantânea do homem a uma certa parte de seu ser. O instante positivo de todo ato de revolta é uma tomada de consciência, não apenas em nome daquilo que se é, mas, sobretudo, em nome da condição de se decidir sobre aquilo que se quer ser. A necessidade de posicionamento a que alude Sloterdijk é um processo um pouco mais amplo do que um discussão local sobre uma possível moratória para as pesquisas sobre engenharia genética, posto que é, no limite, um problema que envolve consciência e liberdade. Mas o mais interessante talvez seja observar que na expectativa desse perigo humanista, e de toda a paranóia que ele provoca, um excêntrico paradoxo exerça sua pressão realmente inescapável, e que mesmo agora não parece falhar: a proximidade técnica do perigo reproduz as condições históricas por meio das quais, em todos os tempos, surgiram filósofos.