ZONA DE IMPACTO
ISSN 1982-9108 ab irato
Vol. 11, Ano XI, março, 2008
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PONTUAÇÃO EM HISTÓRIA ORAL
Departamento de História – UFRO
Centro de Hermenêutica do Presente
www. albertolinscaldas.unir.br
albertolinscaldas@yahoo.com.br
A pontuação (“colocação dos sinais ortográficos na escrita; sistema de sinais gráficos que indicam, na escrita, pausas na linguagem oral”) é a aproximação ao oral, ao dito, atuando no texto no sentido dele, isto é, para realizá-lo, não para formatá-lo. A pontuação não é equivalente à textualização (Meihy, 1991), que inicia com a
“... anulação da voz do ‘entrevistador’, dando espaço para a fala do narrador. (...) Consta desta tarefa a reorganização do discurso, obedecendo à estruturação requerida para o texto escrito. Através das palavras-chave estabelece-se o corpus, isto é, a soma de assuntos que constituem o argumento. Faz parte do momento da textualização, a rearticulação da entrevista de maneira a fazê-la compreensível, literariamente agradável. Nesta fase anula-se a voz do entrevistador e passa-se à supressão das perguntas e sua incorporação no discurso do depoente.” (1991: 30)
Permanece, do conceito de textualização, quando existir “perguntas”, “anulação da voz do entrevistador”, mas não é anulação completa ou gratuita, mas inclusão na dialogicidade do texto quando isso for pertinente e exigido por essa mesma dialogicidade, tema ou narratividade.
O “desaparecimento” do entrevistador é inclusão dialógica, não sumiço, não corte aleatório ou “estilístico”, não é simples mergulho na fala do outro. As possíveis perguntas não somem por imperiosidade das modas, mas por, naquele momento de inclusão, fazer parte da narrativa.
Para se garantir a narração viva do “colaborador” é preciso que uma das vozes em diálogo (a entrevista não é ato técnico, mas vasto diálogo em busca do outro, de si mesmo, do nosso presente e daquele presente que não nos pertence) seja “devorada” hermenêuticamente pela outra, realçando-a, trazendo-lhe a “força original”, a “força virtual” da sua existência, experiência e sentido.
A “reestruturação requerida para o texto escrito”, própria da História Oral de Meihy não faz parte da perspectiva da cápsula narrativa nem da pontuação (muito menos a ação dos historiadores orais), que é um processo intermitente de busca do outro e instauração de negatividades. A pontuação enquanto uma “textualização suave” é necessária não por questões estilísticas ou por se “destinar a um público leitor”: a pontuação é feita por exigência do rigor hermenêutico da reflexão sobre a fala-texto do outro: a pontuação obedece ao respeito ao dizer e ao ser do colaborador: sua vida (suas virtualidades específicas), sua fala, sua existência, sua temporalidade, sua ordem narrativa, é ficcional e ficcional será também aquilo que a dirá “integralmente”, não perdendo de vista que as “falas dos outros” não nos exime de nos pôr e de interpretar, ao contrário, exige essa interpretação e essa tomada de posição: as falas do outro por si mesmas não são suficientes (assim como não é suficiente uma entrevista apenas): mesmo não se misturando à nossa, exige a reflexão: sua dialogicidade pede complemento, pois tanto a dele quanto a nossa são, de determinado momento em diante, contrafaces de um mesmo e grande texto, de uma mesma e complexa realidade.
Num texto em busca do outro se deve ter o espaço das entrevistas integrais, mas não podemos deixar de fora a nossa própria voz, nossa reflexão sobre o outro, que em sua existência textual chama nossa interferência não somente como “autor” do texto, mas, principalmente, enquanto o outro do diálogo. Mas não podemos esquecer que um dos papéis do oralista é o de não aceitar o texto, mas criticá-lo e interpretá-lo até que ele se abra e projete suas múltiplas entradas e caminhos, suas sombras, manhas, hipertextualidades.
Como dizer o outro, dimensão da oralidade do dizer, através da escrita? Como pontuar a fala? Como redimensionar a fala através do texto? Como dizer uma vida, uma experiência com a escrita? Como fazer dizer aquilo que some ao se dizer senão com a escrita? Como fazer com que a escrita não mate, não seque, não disseque a oralidade?
A instauração textual e a pontuação textual (a tradução do oral para o escrito, da transcrição ao texto final) não são exigências “literárias” (littera, letra do alfabeto, ou no português do século XVI, letradura enquanto ‘conhecimento da escrita’), fornecendo ao leitor um texto expurgado das “excrescências orais”. É exatamente essas “excrescências orais”, juntamente com a estrutura oral, com seus fluxos internos, com sua força ilocucionária, com sua forma de existência, que ensinará à escrita as trilhas a seguir.
A instauração do texto é uma conquistada através da modificação textual, que é, na verdade, aquilo que entendemos como a construção do texto, se dando a partir das exigências de sentido, estrutura e função do falado, dos fluxos e escolhas narrativas do nosso interlocutor. Não é uma dimensão exclusiva da escrita, mas é a escrita se deixando moldar por um dizer, por um viver, por uma ordem de dizer o vivido que pede para se dizer mais, com mais solidez, com a permanência que somente a escrita pode garantir.
Aquilo que coordenará a escrita não será a mentalidade gerada pela cultura escrita (Haveloch, 1996a, 1996b; Olson, 1997; Ong, 1998), mas uma escrita consciente tanto das suas dimensões quanto dos campos de força geradas por sua atuação. Buscaremos a escrita da oralidade e não simplesmente uma oralidade escrita ou transcrita, mas uma oralidade transcriada. O texto “final” é a oralidade transcriada.
A pontuação enquanto “textualização suave” (pontual) além de fundir ou excluir possíveis perguntas atua no sentido do texto se curvar à narração e dela se realizar no texto. Nunca ordenamento ou reordenamento estrutural, mas realmente uma pontuação: em “pontos” específicos atuar para que o oral se realize em texto e o texto plenifique-se em “oralidade escrita”: essa relação, essa dimensão ético-moral que se apresenta como cuidado epistemológico não tem regras, não pode ser ensinado: cada oralista na relação vital com o colaborador fundará o texto num processo compartilhado tendo como horizonte o respeito à experiência viva do colaborador.
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