A PALAVRA LIBERTINA

 

 

Vejamos o velho Antonio de Moraes Silva, tão distante dos aurélios insípidos de competência:

 

Libertinágem, s.f. (do Fr. libertinage) O vício de ser libertino, de ser mal morigerado; desregramento dos costumes; impudicícia, devassidão, incredulidade na religião; prática de atos contrários aos seus princípios;

Libertino, O filho do liberto; daquele, que sendo cativo se forrará. O liberto. Que é licencioso, dissoluto na vida, mal procedido. Que é incrédulo na religião, e ofende as suas práticas; que é imoral em costumes, dissoluto, devasso, depravado.

 

O libertino, vejam que maravilha, não é morigerado, aquele que tem bons costumes, o que inspira bons costumes e doutrina a moral, o obediente, o pio. O libertino escreve e lê a libertinagem: ele desdobra a libertinagem, o não querido por “fora dos panos” mas o desejado por “dentro dos panos”. O libertino pode se dar o direito [ele mata também sem se dar ao direito, longe dos direitos] de matar o outro para o seu prazer e esse direito não emana de uma permissão, de uma concessão, de um respeito a uma ordem constituída: o libertino constitui sua ordem e essa ordem se esgota na expectativa, no prazer e no gozo: sua vida é se libertar libertando o outro dos seus limites [os cordeiros têm horror-pânico ao liberto-lobo que lhe devora o bolo].

O libertino afasta, dilui, destrói os limites. Faz fluir os limites: o limite não é o texto, não é o corpo masculino, feminino (todos dois são performances de papéis sociais travestidos de gênero natural ou cultural) ou homossexual (outra performance): o limite para o corpo não é nenhuma das novidades velhas: Formicofilia, amalgatofilia, anastemafilia, autopederastia, ecouterismo, frottage, higrofilia, misofilia, acrotomofilia, zoofilia, dendrofilia, enema, tafefilia, necrofilia: também performances de discursos e de possibilidades de corpo, de desejo, de deslimite, de desrespeito: o limite é a melancia e o além da melancia; o tronco da bananeira, a banana, a cenoura e o além dos vegetais, além da brecha e do pontudo das pedras.

Restam todos os limites sonhados no desejo: e o texto é bem mais que um corpo: ou melhor, o texto é um corpo de papel e tinta ou bits ou qualquer coisa que possa multiplicá-lo: é um corpo de desejo negativo. Para o libertino a grafia (texto e pré-texto) é porno-grafia. [Nada mais querido e desejado que a pornografia e a obscenidade e nada mais negado e escondido [a sedução do lobo: ver e viver e desejar aquilo que vê, deseja e vive o lobo]: há sempre muitas coisas sobre o pornográfico: ele é algo esmagado sobre outras coisas: escondido. Dos textos do mundo nenhum é mais pornográfico que aqueles da literatura: transgressão viva dentro da linguagem que se põe a gozar, para nada, por safadeza, por pura maldade, por perversa-idade [“Quem ri quando goza/É poesia/Até quando é prosa” (Há lice? Who is)]: há uma ofensa maior que escrever? Kafka assim feria o pai.]

A porno-grafia é uma linguagem trans-a-gressiva: é um constante levar ao limite, um intermitente afastar os limites, é um des-velar, mas o ve-lar do des-velar se faz no limite e no se afastar do limite e não num simples en-cobrir. O ve-lado do porno-grafico é o mais des-velado dos en-cobertos: é o des-velado que não cessa de se des-velar e des-ve-lar seu próprio velamento: e seu prazer, e seu gozo ad-vém deste des-cobrir.

O libertino é obsessivo e obsceno. Até mesmo a normalidade é para ele uma trans(a)gressão. Sem a trans(a)gressão não há libertinagem, não há leitura, não há interpret-ação. Sem a pele, sem o buraco da fechadura, sem o esgar de prazer, sem a palavra rasgada em sua normalidade, não há o libertino. O libertino é aquele que vive com a con-tr-adição, com o i-lógico, o para-doxal, o des-medido: seu fluxo é criar textos para nada, para o gozo, para des-dizer, para contra-dizer: o seu é um dis-ser.

A Literatura está sempre longe da libertinagem. Como palavra da ordem, é palavra disciplinada. A literatura é pura libertinagem. O escritor escreve a Literatura enquanto o libertino deixa passar a literatura, simplesmente para seu gozo e de quem quiser ouvir.

O Madeirismo é uma libertinagem.