ALÉM DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL

 

 

CARLOS SANTOS

DEPTO. DE ECONOMIA - UFRO

 

    Em outra ocasião[1] definimos que o espaço permite três básicos comportamentos humanos: intuição de possibilidades, intenção de possibilidades e realização de possibilidades. Espaço portanto é ação – de vez que espaço é tempo, isto é, tempo é uma das propriedades do espaço (conforme a fonte já mencionada). Ação, sendo agir, é movimento, então, tempo. Sendo espaço/ação, o agir implica em uma estruturação de elementos virtuais/reais visando uma base para alicerçar o objetivo em pauta, isto é, a meta a ser alcançada. Essa moldagem é feita consciente e inconscientemente pelo ator. Isto é, o trajeto do intuir até a realização de algo mobiliza todos os recursos que o ator dispõe e outros que seu esforço capta no decurso do processo. Porquanto, desde que um dado ator esteja convicto do que decidiu, a realização de sua meta é diretamente proporcional à sintonia do seu projeto com a intuição do seu próprio eu.

    Entra em tela, então, a condição primordial de inserção do indivíduo na trama do mundo: a auto-aceitação. O mundo é resultado da moldagem que a ação humana promove sobre os elementos naturais, formatando-os à imagem e semelhança humana. Assim, cada um precisa reformatar o mundo à sua imagem e semelhança para inserir-se nele. A tese é que essa inserção já está assegurada, dado que cada um porta uma informação singular que é uma fração da explicação total. Isto é, essa informação é peça fundamental no enredo do mundo, um dado que completa, junto com os outros dados informativos dos outros seres humanos, o complexo informacional do próprio mundo. Essa informação sendo base da inserção individual só pode ser percebida pela auto-aceitação.

    O que é a auto-aceitação? A princípio, a condição de vivenciar a realidade composta pelo nosso entorno que inclui a nós e o outro(a) sem entrave conflituoso algum. Ou seja, é o ato de, a partir da conformação consigo próprio, buscar-se a expressão do que exatamente se é sem desejar ser-se o que não se é. É, portanto, a condição de se enxergar claramente as possibilidades do mundo enquanto recursos para a plena satisfação do que se quer, dentro do que efetivamente se pode. Pois quando se busca ser-se o que não se é instala-se uma autêntica guerra civil de si para consigo mesmo não restando energia para mais nada[2]. Além disso, não se consegue ver nada mais senão o desespero do próprio conflito.

    Assim, surge a possibilidade de uma proxemia[3] adequada ao texto do mundo. Isto é, a moldagem de uma espacialidade/textualidade pessoal sintonizada com a trama espacial/textual do mundo porquanto peça fundamental dessa textura.

    Portanto, o eu é peça fundamental na engrenagem da construção do mundo. E as proxemias individuais, enquanto moléculas do tecido do mundo, são a base e a razão de ser da realidade social. Eu – textualidade pessoal/individual – que só pode ser pleno em toda sua textura através da completa auto-aceitação.

 

O discurso geográfico

 

    A temática espacial sempre interessou à geografia – é, na verdade, sua razão de ser. A validade do discurso geográfico está diretamente ligada ao fato de que à organização social, a sociedade, corresponde imprescindivelmente uma organização espacial. Isto é, não pode haver organização social sem a sua expressão espacial via formas espaciais, ou seja, através de uma dada organização espacial, ou seja, um conjunto de objetos interligados formando uma trama – uma tessitura.

Pode-se sintetizar o discurso geográfico através do seguinte esquema[4]:

 

Síntese Geográfica

 

ESPAÇOGEOGRÁFICO

PROCESSO FUNÇÃO

ESTRUTURA

FORMA

FIXOS = OBJETOS

FLUXOS = ARTICULAÇÕES

ESPAÇO SOCIAL

PODER

RECURSOS

 

    O espaço geográfico resulta da moldagem que o homem vem fazendo do planeta desde que surgiu. Essa modelagem tem esculpido o planeta à imagem e semelhança humana. Como produto, tem-se o mundo. O mundo enquanto um complexo artefato de projeções humanas tem sua dinâmica alimentada por processos sociais que alocam funções no tecido espacial estruturando-o de modo a exibir um conjunto de formas espaciais/textuais específicas. Esse complexo de formas/paisagens/textos pode ser resumido em fixos e fluxos. Os fixos são o emaranhado de objetos (edificações, campos agrícolas, vales, portos, cidades, montanhas, fábricas, bacias hidrográficas, metrópolis, oceanos, etc.) naturais e sociais. Os fluxos constituem as articulações que ligam os objetos entre si (malha rodoferroviária, malha fluvial, rotas aéreas, rede eletrônica, internet, ondas eletromagnéticas, idéias, pessoas, valores, bens, serviços, etc.) de modo a formar uma intricada teia/texto. Essa tessitura constitui o espaço social. Mas a vida desse complexo é função da energia que circula por todo ele: o poder. A lógica desse sistema, animado pelo poder, visa a produção de recursos.

    O esquema acima mostra o discurso geográfico sem sua dicotomia básica: físico versus humano, visando exatamente resolvê-la. Enquanto espaço organizado, a geografia do planeta tornado mundo não separa uma abordagem física de outra humana, pois trata-se de um contexto totalmente humanizado. As disciplinas ditas físicas (geologia, climatologia, geomorfologia, biologia e outras que tais) junto com as consideradas sociais (urbanismo, economia, sociologia, história, antropologia, filosofia e demais congêneres) e acrescidas das que servem de apoio (matemática, química, física e outras) apenas fornecem subsídios para a explicação da organização espacial, ou seja, do mundo. O mundo portanto é um contexto espacial organizado de acordo com uma lógica geral hegemônica (modo de produção dominante) de permeio com outras lógicas menores (outros modos de produção periféricos)[5]. Assim o mundo é uma configuração social e sua correspondente formatação espacial; isto é, tem-se uma espacialidade-textual humana. Trata-se, então, de uma estrutura que deveria garantir sustentabilidade aos bilhões de indivíduos humanos que povoam a superfície do planeta, porquanto é um sistema intricado e complexo de recursos, sendo estes entendidos enquanto utilidades produzidas a partir de materiais naturais para a manutenção e bem estar humanos. Mas essa sustentabilidade é relativa de vez que há um acesso diferenciado aos recursos produzidos. Diferenciação que é inerente ao processo exossomático (instrumentalização da natureza e do outro(a) visando próteses ou vantagem/espoliação) pelo qual a espécie humana moldou o ambiente terrestre. A exossomia (ato de moldar/explorar) implica em dominação, posse, resquícios atávicos guardados no hipotálamo humano[6]. É, sem dúvida, a base da noção de propriedade que permeia, a princípio, o pensamento ocidental, e, portanto, raiz da diferenciação social; logo, fonte de conflitos. Ou seja, a exossomia plasmou um comportamento relacional humano carecterizado pela moldagem/exploração que implica em dissimetrias: dominador versus dominado.

    Embora fonte da própria condição humana, a exossomia (fonte da dissimetria homem/natureza, como já referido) expressa um poder que é dominação. A dominação é característica da civilização ocidental enquanto herança da cultura judaica (o homem enquanto senhor da terra) e da tradição grega (o poder do logos humano). Mas a dissimetria não é uma determinação insolúvel da herança antropológica. A massa crítica de conhecimentos produzida pelas civilizações aponta para um comportamento de adaptação e não mais de dominação.

    Portanto, a construção de espacialidades, individuais e/ou coletivas, deve ser um processo de adaptação ao meio e ao outro(a). Na proporção em que o outro(a) e o meio ambiente deve ser a medida da minha/nossa humanidade.

 

    E assim chega-se ao nexo com a discussão inicial, a questão de uma nova proxemia – ou do eu e seu espaço. A tese então se configura. Há um mundo formatado em função de um processo de exossomia que, embora eivado de egocentrismos/individualismos[7], carece da contribuição de todos, enquanto singularidades individuais, para garantir seu caráter de totalidade social. Como vencer a síndrome do individualismo e afirmar a individualidade?

 

O eu: uma espacialidade molecular

 

    A proxemia proposta por Hall (1989) era uma espécie de atmosfera que envolvia os indivíduos, e variável segundo a cultura do portador. A espacialidade celular que se coloca aqui é um veículo que atua segundo um projeto de inserção pessoal na trama do mundo. As ações individuais geram micro organizações espaciais, verdadeiras moléculas de espacialidades que alicerçam o mundo. É só, claro, uma questão de escala. Há o indivíduo, a família, a empresa, as instituições, o Estado, a nação, etc. A questão é de poder. Isto é, de condições para mobilizar recursos visando realizar projetos. No caso, é a moldagem individual de alguém buscando realizar-se plenamente. O argumento é que a seletividade promovida pela lógica capitalista é perversa porque descarta. Se a totalidade inclui a todos, a priori, porque cada um é uma manifestação particular dela própria, o mercado na forma atual está privatizado. Isto é, o mercado deve ser o catalizador de uma ecologia social, onde a lógica prevalecente é a da ampla e irrestrita circulação e não a da restrita acumulação. A circulação energética permite toda a riqueza de biodiversidade da ecologia natural. A totalidade social enquanto universo de pluralidades singulares requer, em suma, um mercado amplo, irrestrito e público. Todos estão incluidos a priori. O que tem que ser viabilizado são os meios para cada singularidade expressar sua informação. Ou seja, para a própria totalidade dizer/mostrar uma faceta de sua complexidade via cada individualidade. Esse caminho é exatamente a formatação de espacialidades moleculares, através das quais as individualidades se realizam.

    Por outro lado, é necessário a mobilização pessoal buscando realizar o sentido de seu próprio eu. Realização que se torna necessária, pois cada eu complementa/integra a totalidade. Assim, é imperativo a cada eu, a partir da auto-aceitação, buscar os meios de expressão/realização de sua singularidade.

    Assim o poder enquanto energia que dinamiza a formatação coletiva do espaço é inerente também à formatação molecular. Pois seu alicerce é o processo de exossomia inerente à condição humana. Ele é o motor do eu quando sintonizado consigo mesmo ao visar sua plena expressão. Ou seja, a ação do eu em ser ele próprio implica na formatação concomitante de uma estrutura espacial, que na verdade já existia virtualmente, potencialmente, na trama do próprio mundo. É o seu lugar ao sol que, assim, é simplesmente descoberto.

    A ótica aqui, para concluir, é a de se enxergar o papel que a organização espacial, ou seja, a espacialidade/recurso, joga na viabilização da realização humana pelo processo de estruturação/revelação do eu; no sentido em que sua estruturação enquanto tal implica necessariamente em uma formatação/moldagem espacial com caráter de adaptabilidade e não de dominação. Portanto significa a cultura de uma relação simétrica eu/mundo.

 

[1] Carlos Santos, Ensaio sem Referências Aparentes/ Em Busca de uma Ecoexossomia, Primeira Versão/Porto Velho/ 2002.

[2] Jiddu Krishnamurti (1895-1986).

[3] Edward Hall, A Dimensão Oculta, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1989.

[4] Adaptação a partir de Milton Santos, Espaço & Método, São Paulo, Nobel, 1986.

[5] Robert Henry Srour, Modos de Produção: elementos da problemártica, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1978.

[6] Karl R. Popper e John C. Eccles, O eu e seu cérebro, São Paulo, Papirus, 1991.

[7] Carlos Santos, obra citada.