a literatura de olhos bem fechados

 

 

Para Luís Filipe Silvério Lima e Luana Chnaiderman de Almeida.

 

sempre com os olhos bem fechados. ninguém pode ver a literatura: seu mundo não é pra quem está sempre de olhos abertos. a literatura se forma no meio das sombras, no silêncio da noite, na estranha vigilância do sono, no meio dos sonhos sem fim, nas brechas oníricas da vivência. pra literatura não há coisa mais arriscada que o acordar, do que a eterna vigilância, do que o simples suor cotidiano, a compreensão e o carinho de apoio. dormindo se pode perder a vida, mas conquistar a palavra, a imagem e o exemplo. tudo inicia com um homem dormindo. as armas da vigilância constante e os olhos abertos não desarmam os cintos apertados da aparência e do mundo do trabalho. os sentidos precisam se desatar, o corpo precisa se soltar, os olhos precisam de rituais, os mesmos da palavra, aqueles que se tornam sempre e cada vez mais diferentes pra não conter a diferença e a negação.

não há quem possa acordar com a luz da palavra. a expectação cuidadosa, o cuidado do sol, a vivenda das mãos, destroem a senda das palavras em seu reinventar as dores dispersas do mundo: a carne de vampiro da literatura se dissolve com a luz do sol.

a perfeita vigilância coincide com as dores do trabalho e as ilusões da natureza: a literatura não tem olhos: no fundo das suas órbitas vazias se desenrolam e enrolam os fios da existência: está sempre com os olhos bem abertos. e esses olhos bem abertos estão cegos porque dormem profundamente, abismados entre o caos e o ser. quem neles acordar terá os ossos moídos e quebrantados.

a luta e o peso são do acordado, mas o dormindo é quem os encontra em todos os seus legítimos efeitos. voltando os olhos pra literatura, como nela tudo é noite de muito sono e olhos bem fechados, e tudo nela dorme, é nela que acorda a vida íntima do mundo. ali não se pode entender completamente a causa daquelas palavras, mas os sentidos nos atravessam e com os olhos bem fechados da literatura abrimos os nossos. e só abrimos os olhos porque a literatura mantém os seus bem fechados. e os nossos, quando se fecham, é porque os da literatura estão abertos em sua impenetrável noite que é a mesma que nos funda e se estende.

e como são diferentes as noites da literatura. visões de fomes, de sedes, de perigos, de descaminhos, de naufrágios, de ódios de esperas, de perseguições, de falsos testemunhos, de traições, de todas as outras afrontas que padecemos por amor, por trabalhos, por ilusões, por traições, por crenças, e tão grande e tão excessiva e tão inumerável a sede de padecer, e tão fervorosa, tão ardente, tão insaciável, que nada intimida ela, nada satisfaz, nada farta, e nos sussurra como se nos compreendesse, como se pudéssemos acompanhar ela. por isso tudo sempre nos parece pouco a Literatura, aquela que mantém os olhos bem abertos, sempre bem abertos, sempre atentos, sempre vendo o que todos somente vêem, enroscada com as vaidades e os tecidos das fazendas, com as cóleras do dia a dia.

esses olhos bem abertos, sempre bem abertos, são pura cobiça pedindo mais sem medida, enquanto a de olhos bem fechado nos entrega apenas sua mortificação sua pobreza, suas necessidades, seu desamparo, sua incompreensão, sua fragilidade, seu nada que se enraíza. a Literatura de olhos bem abertos exige ambição, honras, fidelidades oligárquicas, enquanto a de olhos bem fechados decifra e pede mais desprezos, mais injúrias, mais abatimentos, mas infelicidades, mais irrealização. a Literatura de olhos bem abertos pede mais vida, mais desejo, aceita o amor de deus, a existência da natureza, da pátria e da história; é zelosa, pede descanso, paz, palavras comuns, enredos da pele, sentimentos do coração, festas e comemorações; a literatura de olhos bem fechados nos entrega mais perigos, mais naufrágios, mais dores, mais martírios, mais mortes, nos multiplicando as angústias da vida, sem esperança, como se fosse feita de todos os nossos ossos moídos, de todas as nossas carnes fatiadas, de todas as nossas línguas estranguladas.

na de olhos bem abertos o espírito está sempre dormindo, satisfeita e protegida, dorme e acorda, nela nada vigia nossa dor, o riso e a competência são suas iscas, sua ilusão é a do espelho; a de olhos bem fechados em seu abismo de sono não desatenta de nós, nos embala pra explicar o incansável sofrimento, aquele que não é visto e suas redes se entranham longe de nós, voltando por baixo, por dentro, sempre perversas e inesperadas. e seu horror é tanto, e tanta a sua aversão, e tão extraordinária a força do seu espírito, quando se entrelaça conosco e nosso destino, que ela somos nós e nós não passamos de uma migalha dela mesma; a Literatura de olhos bem abertos ri com nosso riso, ri com a piada de todos, ri quando trabalha e quando dorme, ri quando comunga e quando se ajoelha, ri quando se reproduz e quando relaxa, ri quando e porque compra, ri porque se reproduz, e não se deixa abrir as veias violentamente pelo nosso puro resistir.

a literatura sempre dormindo, sempre de olhos bem fechados, cujo sono e cujos sonhos são a prova da sua vigilância, pra nós basta que durma e dormindo nos encontre ao encontrar o mundo, que é pesadelo de todos nós. e como se eu também sonhasse ela acorda comigo no grande sonho onde nos encontramos pra desvendar o crime.

não só dormindo, mas sonhando, não sonho leve, mas o sonho pesado da existência, figura da morte que haveremos de falar e vivemos a vida toda. esse sono que é a representação da morte sonhando a vida. palavras mudas são esses sonhos, palavras que gritam o horror, onde a imaginação se torna portas fechadas e a escuridão, reatando os fios perdidos e as teias da vida e da alma de cada um, encontra com os olhos bem fechados as razões mais íntimas das ações, dos propósitos, dos desejos e do mal.

a Literatura com os olhos sempre bem abertos se ofusca com a luminosidade excessiva, com as imagens, com as frases feitas, com a tradicção, com o riso e a alegria, com a festa e o ritual; ela diz, como se sonhasse, a fome e a fartura – não sabe dizer as venturas e desventuras como se estivesse acordada: desperta, ela só consegue apontar como se dormisse; a literatura de olhos bem fechados, sempre dormindo, abismada em sonhos, diz tão somente o desperto na sua matéria, na sua energia, no seu escondido, naquilo que nos faz sofrer sem sabermos porquê, sem cair nas armadilhas da aparência e sem desconsiderar ela como algo sem importância: nem tanto e nem tão pouco: de braços bem abertos ela reúne e multiplica transversais.

uma sonha na sua eterna noite como exercitamos todos os dias. pra conhecer nossas enfermidades ela aponta os sonhos do real. ela sonha coisas tristes e trágicas; a outra sonha felicidade e festas; uma sonha guerras e batalhas; a outra crê que não sonha, porque apenas vive e prega a vida sem viver nada além do aqui. uma é feliz na infelicidade dos sonhos quando dorme; a outra é feliz quando vigia a liberdade e a múltipla negação. uma é conseqüência do viver e seu sonhar abismado com olhos bem fechados é do mesmo modo como se vive; a outra sonha a vida sem viver, proclamando ela com palavras vazias, com esgotado prazer, com retórica e estilo. uma pergunta o que fazemos quando estamos acordados, quando não somos senhores de nós, quando estamos dominados, e reúne diante de nós todas as redes dos nossos males; a outra nos pergunta o que sonhamos quando dormimos, e nos receita o trabalho, a reprodução, a gramática e o estado. uma cuida do que somos e seremos, e por isso sonha o que houve de ser; a outra cuida desperta e sonha acordada, não sabe que o que foi e será é aberto pelo aqui com o sonho, e não sonha outra coisa senão o que tenha cuidado, porque sonha somente quando dorme. uma lembra tudo o que sonha porque cuida do sonho como se vivesse e pro que vive; a outra esquece tudo o que sonha porque sua memória é somente do cuidado daquilo que vê.

a literatura que tem os olhos bem fechados e se abisma no sonho do real cuida tensa como as cordas de um instrumento porque adormeceu ao som retesado dos seus pensamentos. sonho e segredo das palavras nas entranhas quando cuida na mesma matéria porque não dorme o seu cuidado. ela cuida dormindo enquanto a outra, a de olhos bem abertos, se descuida acordada e dorme descuidada. uma revela e desvela; a outra apaga porque vela.

os sonhos que se formam na imaginação do real não são outra coisa senão vestígios de nós mesmos no processo de nossa criação e do universo: esses são os sonhos da literatura de olhos bem fechados. a Literatura de olhos bem abertos são a dos homens acordados, os que aceitam o acordo e se desacordam de si como se fossem homens dormindo e seus sonhos e suas vidas se confundem nas desatenções do descuido. o que ali vemos são imagens do corpo reprovado, vestígios dos ossos queimados no crematório do viver.

 

Perdizes, São Paulo, 17/07/2004.