OLHARES SOBRE A AMAZÔNIA NA LITERATURA DE VIAGEM

 

 

LAURA BORGES NOGUEIRA

 

“Com a finalidade de manter autoridade sobre o Outro em uma situação colonial, o discurso colonialista se esforça em delinear o Outro como radicalmente diferente de si; contudo, ao mesmo tempo, mantém identidade suficiente com o Outro para poder valorizar o controle sobre este.” (Ashcroft et alli, The Empire Writes Back - Theory And Practice In Post-Colonial Literatures, 1989:103)

 

            A função do olhar vai muito além de apenas decodificar imagens. O ato de olhar implica em julgar e em estabelecer alteridade cultural. Portanto, como aborda o tema deste artigo, nos perguntamos quais são os olhares sobre a Amazônia. Em tempos de colonização, houve a luta pela demarcação de seus limites no território brasileiro. O Inferno Verde, era como se conhecia a floresta. Mais recentemente, muito se fala sobre ela devido ao seu desenvolvimento urbano e econômico. Entretanto, a preocupação com o meio-ambiente nas últimas décadas é que vem trazendo um maior enfoque à floresta e seus habitantes.

            Todos essas períodos pelos quais a Amazônia tem passado têm resultado em diferentes olhares. Este trabalho visa investigar que tipo de discurso tem se disseminado mais especificamente na literatura de viagem escrita sobre a Amazônia, buscando revelar o olhar do colonizador. Pretende-se mostrar como esse discurso tem sido disseminado a leitores do chamado "Primeiro Mundo" e que percepções eles podem ter sobre os brasileiros através de obras escritas por autores britânicos e americanos. Como referência teórica temos autores que são seguidores de Michel Foucault, cuja teoria lança luz sobre a relação entre poder e conhecimento. Tais autores examinaram o discurso colonialista na literatura de viagem e em obras do canône da literatura inglesa. Estas são as obras e seus autores: Imperial Eyes - Travel Writing and Transculturation da crítica canadense Mary Pratt, Orientalismo e Culture and Imperialism de Edward Said, The Rhetoric of Empire de David Spurr, entre outros. Tomamos três obras com o objetivo de exemplificar nossa pesquisa. Elas são: Rainforest Cities – urbanization, development, and globalization of the Brazilian Amazon de John O. Browder e Brian J. Godfrey, Amazon Journal – Dispatches from a Vanishing Frontier de Geoffrey O’Connor, e The Decade of Destruction de Adrian Cowell.

            Para compreender como o discurso colonialista tem influenciado a literatura de viagem, falemos um pouco sobre como os escritos de viagem se tornaram importantes para os empreendimentos colonialistas. No período da colonização, podia-se saber quais eram as impressões e experiências de um viajante em uma terra estrangeira através dos seus escritos. Esses viajantes geralmente faziam parte de expedições científicas com vários objetivos, como o de exploração da terra, expansão de suas metrópoles e busca de conhecimentos novos e riqueza. Seus escritos incluíam relatos de sobrevivência, descrições cívicas, narrativas de navegação, monstros e maravilhas, tratamentos médicos, polêmicas acadêmicas, mitos antigos etc. Como exemplo de expedição científica temos a de La Condamine, que se dirigiu para a América do Sul em 1735. De acordo com Mary Pratt (1992) essa expedição

 

is an early instance of a new orientation toward exploring and documenting continental interiors, in contrast with the maritime paradigm that had held centre stage for three hundred years. This shift had significant consequences for travel writing, demanding and giving rise to new forms of European knowledge and self-knowledge, new models for European contact beyond its borders, new ways of encoding Europe’s imperial ambitions.23

 

             [é um exemplo inicial de uma nova orientação em direção à exploração e documentação do interior dos continentes, em contraste com o paradigma marítimo que havia sido de maior importância por trezentos anos. Essa mudança teve conseqüências significativas na literatura de viagem, exigindo e dando origem a novas formas de conhecimento da Europa sobre o mundo e sobre si mesma, novos modelos de contato europeu além de suas fronteiras, novos modos de codificar as ambições imperialistas européias.]*

 

            Em 1735, no mesmo ano da partida da expedição La Condamine, a publicação do naturalista Carl Lineu O sistema da Natureza, um sistema descritivo designado a classificar todas as plantas da terra, epitomou as aspirações continentais e transnacionais da ciência européia. O sistema de Linné fez com que o empreendimento de formação de conhecimento eurocêntrico alcançasse escala e interesse sem precedentes. E os grandes mediadores entre o mundo científico e o público europeu foram as narrativas de viagem e o jornalismo. Eles criaram e ajudaram a manter o valor de muitas formas de escrita, publicação e leitura sobre esse novo tipo de conhecimento.

            A sistematização da natureza criou a tarefa de localizar cada espécie do planeta e colocá-la em seu devido lugar no sistema com seu novo nome europeu, secular e escrito. O ato de nomear instaurou a realidade da ordem e criou um novo tipo de 'consciência planetária' européia. E isso representou não apenas um discurso de um mundo europeu sobre mundos não europeus, mas também um discurso de um mundo supostamente superior sobre mundos supostamente inferiores. Esse discurso, no período entre 1500 – 1800 era usado para justificar a interferência da metrópole em suas colônias como também a escravização, e deu à Europa uma visão de uma autoridade global.

            Essa consciência imperialista tem produzido o que chamamos de 'Discurso Colonialista'. Atualmente, é claro, esse discurso é mais sutil do que no período da colonização. Mas ainda transmite, de acordo com Edward Said (1990), "noção coletiva que identifica a “nós” europeus em contraste com todos “aqueles” não-europeus: a idéia da identidade européia como sendo superior em comparação com todos os povos e culturas não-europeus.” (19)

 

            Said chama essa noção de 'Orientalismo', um discurso do Ocidente para subjugar o mundo 'oriental':

 

É uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), como também de toda uma série de "interesses" que, através de meios como a descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica e a descrição paisagística e sociológica, o orientalismo não apenas cria como mantém; ele é, em vez de expressar, uma certa vontade ou intenção de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até incorporar, aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo). 24

 

            A região amazônica tem sido um alvo constante do discurso colonialista, talvez por causa de suas riquezas naturais e beleza e porque ela é uma das últimas grandes florestas do mundo. Consequentemente, seus habitantes (no caso do presente trabalho, mais especificamente os que estão no Brasil) também são alvo desse discurso, e apenas podem falar através do imaginário europeu, ou do que podemos chamar atualmente de "Primeiro Mundo". Valores desses países supostamente superiores são usados para julgar e criticar os habitantes da Amazônia porque, como mostra a epígrafe com a citação de Karl Marx em Said (1990), eles "não podem representar a si mesmos; devem ser representados".

            Em Amazon Journal, de Geoffrey O'Connor, publicada em 1997, uma das obras que analisaremos aqui, notamos a presença do discurso colonialista ao observar freqüentes estereótipos sobre os brasileiros, dando-nos muitas vezes uma imagem denegrida deles. Veja o exemplo abaixo:

 

Each time the screen door slams, it announces the entrance of yet another quirky character in this strange little stage play, more misfits from Brazil's interior seeking fortune and salvation in this expansive green hell.20

 

            [Toda vez que a porta de tela bate, ela anuncia a entrada de uma outra personagem ainda mais esquisita nesta pequena e estranha peça teatral; mais desajustados do interior do Brasil procurando por riquezas e salvação neste imenso inferno verde.]

 

            Esse é um exemplo típico de classificação. O autor, como muitos que vêm à Amazônia, estava procurando compreender a causa da destruição da floresta amazônica. Para justificar, então, a razão da existência dos garimpos, ele conclui que apenas pessoas desajustadas os procuram para viver. Entre tais pessoas encontram-se prostitutas, pistoleiros, mulherengos, homossexuais etc. De acordo com Spurr (1993), a classificação se dá no discurso colonialista quando se opõe razão à loucura e verdade à falsidade. Tal discurso organiza o universo em disciplinas que refutam o excêntrico, o anormal, e o monstruoso.(62) Essa dicotomia entre o normal e o anormal é claramente vista na citação de Amazon Journal abaixo:

 

We have both heard the stories about the criminal elements that make up the miner’s population. Perhaps my culture distance allows me to take it a little more lightly. Perhaps this is one of the pluses of what I call the “gringo factor” – the naivete that got me here in the first place. 3

 

            [Nós ouvimos as histórias sobre os criminosos que formam a população dos garimpeiros. Talvez minha distância cultural me permita aceitar isso mais facilmente. Talvez esta seja uma das vantagens do que eu chamo de o “fator gringo” — acima de tudo, a ingenuidade que me trouxe aqui.]

 

            A crítica Mary Pratt fala sobre a estratégia de o autor assegurar sua inocência, chamando-a de "anticonquista", pois, ao fazer isso, o autor, sendo o principal protagonista de sua própria narrativa, também sustenta a hegemonia, a autenticidade, a supremacia e a legitimidade européia. (07) O mesmo ocorre na citação abaixo em Amazon Journal:

 

Vivi, following in the tradition of the conquistadores and frontier pioneers, is someone who is intent on civilizing the Indians by bringing them progress. I, on the other hand, am trying to understand these native peoples by bringing them sympathy. (…) I cannot understand how he is able to look at the cultural degradation taking place before him not as an outcome of his actions but as the responsibility of the Indians themselves. I believe that, like Columbus, his way of observing the Indians allows him to proceed with his conquest of their forest. In his mind his actions are justified: he is doing them good, helping the Indians in his own way. 51,52,53

 

             [Vivi, seguindo a tradição dos conquistadores e dos pioneiros da fronteira, é alguém que está decidido a civilizar os índios por trazer-lhes o progresso. Eu, por outro lado, estou tentando entender estes povos nativos por trazer-lhes solidariedade.(…) Eu não posso entender como ele é capaz de ver a degradação cultural que ocorre diante dele não como uma conseqüência de suas ações mas com responsabilidade dos próprios índios. Eu creio que, como Colombo, a forma de ele observar os índios lhe permite prosseguir em sua conquista da floresta. Em sua mente suas ações são justificadas: ele está fazendo o bem aos índios por ajudá-los de seu próprio jeito.]

 

            Parece-nos que o autor, ao comparar-se com Vivi, procura sustentar sua boa imagem perante o leitor. Ele defende e dá sua solidariedade às vítimas da destruição da floresta, os índios. Ele sabe quem os índios realmente são e como eles devem ser tratados. O autor passa a representar a figura idealizada do colonizador, como uma mãe que quer proteger seus filhos, e Vivi, a cópia imperfeita dessa idealização. Spurr afirma que o mundo Ocidental procura sua própria identidade e sua imagem idealizada nas tentativas fracassadas do Terceiro Mundo em imitá-lo. (36) A intervenção colonial responderia, assim, ao chamado da natureza, da humanidade, e do colonizado, que clama por proteção contra sua própria ignorância e violência.

            Por último, vemos a naturalização do brasileiro na citação abaixo:

 

This is the manner in which things get done in Brazil, the way in which life unfolds; to question it is to go against the rhythm of the culture. The gringo option, an in-your-face confrontation, would be absolute suicide. I've learned that in the past. Brazilians simply shut down when faced with hostile Americans who believe that angry rages in tropical cultures can get them what they want. 138

 

            [É desse jeito que as coisas são feitas no Brasil, o jeito que a vida se desenrola; questionar isso é ir contra o ritmo da cultura. A opção do gringo, um confronto cara a cara, seria completo suicídio. Eu já aprendi isso no passado. Os brasileiros simplesmente se fecham quando estão frente a um americano hostil que acredita que acessos de fúria em culturas tropicais podem ajudá-lo a conseguir o que ele quer.]

 

            A naturalização se caracteriza pela identificação dos povos do Terceiro Mundo com as forças da natureza, que governariam seus comportamentos. Para o autor, portanto, as culturas tropicais são caracterizadas por pessoas que não se confrontam cara a cara com alguém em questões de pontos de vistas diferentes. Spurr menciona que esse discurso cria a crença nas essências de um povo ou de outro, o que caracterizaria novamente a homogeneização, podendo levar a classificação.

 

            Na obra The Decade of Destruction (1990), o autor, Adrian Cowell, através do questionamento, quer fazer-nos pensar na ignorância daqueles que não compreendem o mal que estão causando à floresta:

 

This book tries to open windows at different periods and form different angles on events and people that are otherwise difficult to understand. How can a man burn down a forest when he knows the land’s so poor that he will have to abandon it? How can speculators buy land, when they know it will produce nothing?14

 

            [Este livro tenta abrir janelas em diferentes períodos e tenta formar diferentes ângulos sobre eventos e pessoas que de outro modo são difíceis de ser entendidos. Como pode um homem queimar a floresta quando ele sabe que a terra é tão pobre que terá que abandoná-la? Como podem os especuladores comprar terra, quando eles sabem que ela não produzirá nada?]

 

            Para o autor, essas pessoas são difíceis de ser entendidas. Toda vez que o autor faz essa dicotomia entre os ignorantes e os não-ignorantes, ou seja, entre o colonizado e o colonizador (o que supostamente não possui o conhecimento e o que o possui) , “o resultado é geralmente a polarização da distinção — o Oriental se torna mais Oriental, e o Ocidental mais Ocidental — e a limitação do encontro humano entre culturas, tradições, e sociedades diferentes.” (Said, 1990:56).

            Para que o problema se solucionasse, seria necessário, como disse o próprio Cowell, “change the world and the economic and political system that challenged the forest” [ (…) mudar o mundo e o sistema político e econômico que desafiava a floresta](133). Novamente, a intervenção colonial, ao apropriar-se da terra, responderia ao chamado do colonizado, para "protegê-lo" de sua própria ignorância.  

            Nos trechos que seguem, Cowell demonstra um outro tipo de discurso colonial - o da degradação. A degradação ou desvalorização pretende destacar que, qualidades tais como a desonestidade, a superstição e a falta de disciplina são geralmente refletidas em sociedades caracterizadas pela corrupção, xenofobia, tribalismo e incapacidade de seus governos.(Spurr, 76)

 

But if the forest had refined my senses, it had also reduced the questioning of my brain. (…) The mind of a civilizado was moving towards the functional brain of a hunting forest animal. 34,35

 

            [Mas se a floresta havia refinado meus sentidos, ela também havia reduzido o questionamento do meu cérebro. (...) A mente de um civilizado estava movendo-se em direção ao cérebro funcional de um animal de caça da floresta.]

 

            O autor parece querer fazer-nos entender que aquele que vive na floresta de alguma forma é modificado por uma força exercida por ela. Tais pessoas perdem o senso crítico e, portanto, não são capazes de raciocinar de acordo com os valores de um civilizado.

            Cowell também chama os garimpeiros de ignorantes, apesar de dizer que eles são abertos e generosos (161). Ao citar os assassinatos ocorridos no Pará e a facilidade em se contratar um pistoleiro (138), Cowell coloca em xeque toda a justiça brasileira. Sustenta, portanto, a idéia de que em todo o Brasil não há justiça, pois ele chega a essa conclusão através de um fato específico, ocorrido em um lugar específico, e o generaliza. E essa é uma estratégia do discurso colonialista, generalizar para poder classificar o outro como diferente e inferior.

            Em Orientalismo, Said mostra como o Oriente é encarado pelo Ocidente:

 

            Pois o Oriente (“lá longe” em direção ao Leste) é corrigido, e até penalizado, pelo fato de estar fora das fronteiras da sociedade européia, o “nosso” mundo.76

 

            O Ocidente é o agente e o Oriente é o reagente passivo. O Ocidente é espectador, juiz e júri de cada faceta do comportamento oriental.118

           

            O livro Rainforest Cities, publicado em 1997, faz uma análise compreensiva do processo de urbanização regional na Amazônia brasileira, enfocando principalmente as transformações ocorridas a partir do final da década de 70. Os autores defendem que o crescimento das cidades na Amazônia não pode ser explicado por apenas uma única teoria corrente de urbanização. Por conseguinte, eles propõem uma teoria pluralista de "urbanização desarticulada" para explicar os padrões de colonização variados e voláteis da região.

            Comparando Rainforest Cities com as obras anteriormente mencionadas neste artigo, notamos que seus autores tiveram um cuidado maior com respeito a não se criarem estereótipos sobre a região amazônica e seus habitantes, o que quase não acontece nas obras anteriores. Podemos dizer que os autores tiveram um postura anti-colonialista.

            Por exemplo, ao defenderem uma teoria pluralista de urbanização na Amazônia, os autores atentam para o perigo de se ter um conceito preestabelecido sobre a região, muitas vezes influenciado por prévias leituras. Referindo-se a isso, eles citam a influência da obra Amazon Town, escrita por Charles Wagley em 1953, agora considerada clássica etnografia de uma tradicional comunidade ribeirinha na Amazônia. Essa comunidade tradicional tem provido a imagem estereotipada de uma pequena vila na Amazônia ­— isolada por séculos em "letargia e atraso" numa margem remota do baixo rio Amazonas. No entanto, os autores de Rainforest Cities refutam tal estereótipo de comunidades coesivas, onde a ecologia regional e tradições culturais se manteriam por longo tempo:

 

(…) the idyllic picture of a cohesive community like Gurupá, on the main Amazon River, contrasts sharply with the "Wild West" boomtowns of the contemporary inland settlement frontiers, where a fragmented society, often polarized by class and region of origin, struggles through its formative years.10

 

            ([…) a visão da figura idílica de uma comunidade coesiva como a de Gurupá, no rio Amazonas, se contrasta profundamente com as cidades contemporâneas em rápido crescimento do "Oeste Selvagem" da Amazônia (…), onde uma sociedade fragmentada, freqüentemente polarizada por classe e região de origem, se debate nos seus anos de formação.]

 

            Não havendo comunidades coesivas, e sim uma sociedade fragmentada, a Amazônia é um espaço não homogêneo, cujo crescimento de suas cidades não pode ser explicado por apenas uma teoria de urbanização:

 

Because no single master principle fully explains Amazonian's urban diversity, we propose a pluralistic theory of "disarticulated urbanization".83

 

            [Pelo fato de nenhum princípio importante por si só explicar completamente a diversidade urbana na Amazônia, nós propomos uma teoria pluralista de "urbanização desarticulada".]

 

The Amazon is a heterogeneous social space. Different social groups came to the region at different times for different reasons and engaged each other in different ways.96

 

            [A Amazônia é um espaço social heterogêneo. Diferentes grupos sociais vieram para a região em épocas diferentes, por diferentes razões e se ocuparam de diferentes formas.]

 

            Essa postura dos autores é anti-colonialista, já que no discurso colonialista há uma tendência para a homogeneização, com o intuito de classificar, sistematizar e julgar o outro com interesses e valores colonizadores. A crítica Mary Pratt fala dessa tendência argumentando que, na literatura de viagem, o colonizador pretende justificar sua intervenção nas colônias minimizando a presença do colonizado, descrevendo apenas a paisagem da terra e suas riquezas naturais (59). Os habitantes da terra ficam, então, a mercê da descrição do colonizador, que, quando os menciona, os classifica como indolentes, preguiçosos, e de costumes estranhos.

            Ao analisar as teorias já existentes sobre a urbanização de Porto Velho, por exemplo, os autores Browder e Godfrey refutam veementemente estereótipos, baseando-se em pesquisas e questionários feitos pelos próprios autores in loco:

 

As elsewhere in Brazil and Latin America, the peri-urban settlements of Porto Velho often are depicted as housing marginal populations, peopled in this case largely by drug dealers, prostitutes, gold miners, and vagrants. Yet a 1993 survey of randomly selected households in five different peri-urban neighborhoods of Porto Velho refutes such stereotypes. Instead, what emerged was a snapshot of the socioeconomic heterogeneity of Porto Velho's urban fringe. 150

 

            [Como em todo Brasil e América Latina, os assentamentos na periferia de Porto Velho são freqüentemente retratados como abrigando populações marginais, compostas neste caso em maior parte por traficantes de drogas, prostitutas, garimpeiros e vagabundos. Entretanto, uma pesquisa feita em 1993 de famílias selecionadas a esmo em cinco diferentes periferias de Porto Velho refuta tais estereótipos. Em vez disso, o que se revelou foi um retrato da heterogeneidade sócio-econômica da margem urbana de Porto Velho.]

 

            Observando a citação acima, notamos que os autores não mencionam em vão o fato de haver estereótipos sobre as periferias do Brasil e de toda América Latina. Esses estereótipos estão presentes em muitas obras estrangeiras, que, de acordo com Said (1994: xii), foram imensamente importantes na formação de atitudes, referências e experiências imperialistas. Havendo uma associação da Amazônia com o meio-ambiente, principalmente após a morte do líder seringueiro Chico Mendes, muitos estrangeiros vêm para a Amazônia com uma bagagem de leitura sobre a região. Por isso, embora observem pessoalmente o que acontece, vêem o que querem ver e escrevem o que para eles é a verdade e o que querem divulgar para o Primeiro Mundo. Assim, estamos sujeitos a avaliações críticas de acordo com valores que não são os nossos. Para Spurr, o discurso colonialista é uma forma de criar a realidade e de responder a ela e é infinitamente adaptável em sua função de preservar as estruturas básicas do poder (11).

            Discursos, portanto, podem ser entendidos como uma série de segmentos descontínuos que se combinam de várias formas a serviço do poder; e o poder pode ser entendido não apenas como o privilégio da lei, da proibição e da soberania, mas como um campo móvel e múltiplo de relações de força, onde efeitos de dominação são produzidos. É nesse sentido que a busca pelo conhecimento e sua aclamada obtenção servem como arma para a dominação. O colonizador, através da manipulação de conhecimento e de uma suposta verdade, mantém o controle sobre outros povos. A partir daí, surgem as justificativas para essa dominação: o colonizado é mencionado como preguiçoso, violento, desajustado, incapaz de governar a si próprio, necessitando assim de alguém "superior" para trazer-lhe o progresso e uma vida melhor.

            Entretanto, como vimos através da obra Rainforest Cities, há autores conscientes sobre os perigos de se usar esse discurso estereotipado. Portanto, reconhecemos que nem tudo o que se escreve sobre a Amazônia reflete uma visão imperialista e colonialista. Contudo, isso ainda parece não ser uma constante, o que nos faz permanecer sempre em alerta sobre o que se diz sobre o Brasil.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BROWDER, John O.; GODFREY, Brian J. Rainforest Cities: urbanization, development, and globalization of the Brazilian Amazon.Columbia University Press, 1997.

COWELL, Adrian. The Decade Of Destruction - A Crusade To Save The Amazon Rain Forest. Henry Holt and Company, 1990.

O'CONNOR, Geoffrey. Amazon Journal: dispatches from a vanishing frontier. New York: Dutton, 1997.

PRATT, Mary A. Imperial Eyes – Travel Writing And Transculturation . Routledge, 1992.

SPURR, David. The Rhetoric Of EmpireColonial Discourse In Journalism, Travel Writing, And Imperial Administration . Duke University Press, 1993.

SAID, Edward W. Culture and Imperialism. New York: Vintage Books, 1993.

__________. Orientalismo – O Oriente Como Invenção Do Ocidente. Companhia das Letras, São Paulo, 1990.

 

* As traduções das citações em inglês foram feitas pela pesquisadora.