DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - UFRO
“O signo da História é de agora em diante menos o real do que o inteligível”
Michel de Certeau
Na apresentação deste artigo analiso um conjunto de textos produzido pelos professores que atuam nas séries iniciais da Educação Básica, com o propósito de demonstrar a existências de vários discursos existentes no espaço escolar sobre as concepções subjacentes ao conceito de história.
Com base nesses textos identifiquei os conceitos mais regulares reveladores das concepções de mundo e de educação dos docentes e que, por conseguinte, se transformam em elementos formadores da concepção de mundo dos alunos.
Por uma questão metodológica os conceitos regulares, expressos nos discursos escritos dos professores foram agrupados nas seguintes categorias: fato histórico, cultura, sujeito, história e tempo histórico.
Além dessas regularidades analisarei os conceitos irregulares que também aparecem nos textos e, por sua vez, estão carregados de sentidos discursivos, pois acredito que os sentidos são expressos não apenas pelo o que é dito, mas também pelo não dito.
As irregularidades discursivas foram agrupadas em quatro categorias: valores, religiosidade, convivência e sonho. Estas categorias se revelam nos seguintes conceitos:
Os valores: expressos através dos conceitos de honestidades, amor, companheirismo, fidelidade e dignidade.
A religiosidade: refletida na idéia de salvação subjacente no contato cultural ocorrido entre os brancos e os índios.
A convivência: que expressa o desejo da existência pacífica entre os povos, o respeito a próximo e a si mesmo.
Os sonho: categoria que está relacionada à liberdade e a conquista de uma vida melhor.
Inicialmente a análise do discurso docente aponta para a existência de duas categorias de entendimento, anteriormente citadas. O primeiro grupo corresponde ao ensino da disciplina de História e, que por sua vez está relacionada com o caráter de objetividade científica da educação. Este grupo é o que considero de construção do discurso.
O segundo grupo caracteriza-se pela subjetividade da ação educativa. É o elemento que garante a singularidade e revela a criatividade e inventidade do professor enquanto sujeito no e do espaço escolar. Este grupo é o que considero de construção do contra-discurso.
Assim, esta análise é compreendida de três aspectos fundamentais: as regularidades discursivas, as irregularidades discursivas e as condições de produção dos textos elaborados pelos professores.
Antes das análises correspondentes às regularidades e irregularidades contidas no discurso docente, apresento o cenário sobre as condições de produção em quem esses textos foram realizados pelos seus autores e a definição de alguns conceitos básicos para a compreensão desta análise enquanto processo metodológico.
2. 1- Conceitos básicos da Análise do Discurso
A Análise do Discurso Francesa, doravante designada por AD, como demonstrei no primeiro capítulo, se constitui com a preocupação de ampliar a compreensão do discurso para além da estrutura lingüística. Para tanto, propôs a transdisciplinaridade entre a lingüística, o marxismo e a psicanálise como forma de produção do conhecimento.
Para a análise metodológica do discurso a AD apresenta os conceitos básicos, como: condição de produção, paráfrases, corpus, polifonia, texto, discurso, heterogeneidade, contra-discurso, gênero, dialogismo, enunciado, enunciação e outros. Neste capítulo aproprio-me de alguns deles. Vejamos suas respectivas definições.
2.1.1- Condição de produção
Para a análise do discurso a condição de produção é um conceito imprescindível, pois ter conhecimento do momento, como, quando, por que e para quem o discurso foi produzido é condição sine qua non para a compreensão dos sentidos que estão subjacentes a qualquer forma discursiva.
De acordo com Maingueneau:
«condições de produção é uma designação igualmente utilizada como uma variante de contexto. (...) A AD esforça-se por considerar o discurso como uma atividade inseparável desse contexto»[1].
Com base neste pressuposto apresento a contextualização do momento em que os professores produziram os textos, os quais compõem neste artigo o principal corpus da minha análise.
2.1.2- Corpus
Inicialmente a AD considerava apenas como corpus de análise os discursos políticos, escritos ou transcritos, pois estes possuem uma relação direta com o poder. No entanto, com os avanços dos estudos teóricos realizados pela escola este conceito ganhou amplitude e hoje se considera como corpus qualquer conjunto de material lingüístico ou estético que seja representativo de significados.
Para compreensão do conceito de corpus aproprio-me da fala de Michel Pêcheux:
«diremos que corpus é constituído por uma série de superfícies lingüísticas (discurso concretos) ou de objetos discursivos (o que pressupõe um modo de intervenção diferente da prática lingüística na definição do corpus)»[2].
A idéia de corpus remete então a dois pressupostos: a materialidade do discurso (texto, planfletos, paródias, documentos, propaganda etc) e a ação lingüística. O corpus resulta da criação humana e a sua própria elaboração está carregada de sentido.
2.1.3- Texto e discurso
No senso comum texto e discurso aparecem como palavras sinônimas, mas para o analista do discurso são conceitos com caracterizações próprias. Para essa diferenciação embasei-me nas contribuições de Eni Orlandi, que defende o seguinte:
«(...) posso dizer que texto e discurso se equivalem, entretanto em níveis conceptuais diferentes: discurso é o conceito teórico e metodológico e texto é conceito analítico. Por isso, é possível tratar um texto sob outros aspectos que não o discursivo e aí texto e discurso se distinguem»[3].
De acordo com essa diferenciação, para efeito desta análise específica, passo a considerar o discurso enquanto busca de sentidos e textos como a estrutura lingüística ou estética de uma produção. O foco principal da analise que realizo dos textos produzidos pelos professores é a análise discursiva, ou a busca de sentidos.
2.1.4- Discurso e contra-discurso
As regularidades discursivas encontradas nos textos produzidos pelos professores foram as seguintes: história, tempo histórico, fato histórico, cultura e sujeito. Esses conceitos estão relacionados à objetividade do discurso histórico.
Outro aspecto de analise do discurso por mim considerado são as irregularidades discursivas encontradas nesses textos e que estão expressas através dos seguintes conceitos: respeito, liberdade, salvação, convivência, honestidade, amor e amizade. Esses conceitos por sua vez estão relacionados à subjetividade do professor.
A seguir apresento as análises dessas duas categorias e as contraponho a dois tipos de discurso: o discurso institucional e o contra-discurso. Considero em primeiro lugar, como discurso institucional o discurso proferido pelo professor, o qual apresenta uma correspondência direta com o gênero discursivo pedagógico.
O discurso institucional é definido por Marilena Chauí como discurso competente. Para Chauí:
«O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância.»[4]
Essa é uma idéia foucaultiana do discurso. Ao estudar os procedimentos do discurso, Foucault nos ensina que:
«nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala»[5].
O contra-discurso, por sua vez, é aquele apresentado pelo professor, mas que foge ao padrão do discurso institucionalizado, pois traz em seu bojo uma concepção diferenciada exigida pelo discurso institucional.
O contra-discurso representa a subjetividade, a inventidade e a criatividade do professor. Ele está relacionado a uma visão de mundo que vai além daquilo que pode ser dito no espaço escolar.
Ao proferir seu discurso institucional ou o contra-discurso o professor sempre fala de um lugar – a escola. Cada lugar, principalmente uma instituição, é composto por um código lingüístico. Foucault considerava esse processo como «formação discursiva». De acordo com Pêcheux, esse conceito pode ser entendido como:
«(...) uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma harenga, um sermão, um panfleto, um exposição, um programa etc), a partir de uma posição dada numa conjuntura.»[6]
A escola, enquanto lugar institucionalizado possui um código que define o que pode ser dito, como, a quem e em que momento. Porém nenhuma formação discursiva, nenhum discurso produz apenas um sentido. A identificação de que no espaço escolar o discurso não é hegemônico nos remete a idéia da escola como espaço dialético repleto de: conflitos, interesses diferenciados, conchavos, acordos, avanços, retrocessos, permanências e rupturas discursivas.
Essa dinamicidade de diferentes vozes e sentidos, esse palimpsesto, integrador de várias redes discursivas caracteriza o espaço escolar. A busca da compreensão desse amálgama é que procuro retratar nas análises que serão apresentadas a seguir, através das categorias objetivas e subjetivas ou discursivas e contra-discursivas expressas através do discurso docente.
Por fim, em vários momentos desta dissertação utilizo as expressões análise do discurso (minúscula) e Análise do Discurso (maiúscula). Para além da morfologia esses termos passam também por uma diferenciação, que considero importante. Quando, aparecer à expressão Análise do Discurso, ou simplesmente AD me refiro à Escola Francesa. Quando o enunciado for indicado com letras minúsculas a referencia diz respeito à ação ou ao resultado do trabalho do analista do discurso.
Após essas definições conceituais próprias da AD, remoto a análise que propus realizar no início deste capitulo. Vejamos como esses conceitos auxiliam na compreensão do discurso sobre a história emanado pelos professores.
2. 2- As condições de produção do discurso docente.
O que será analisado neste item de forma específica é o conjunto de textos[7] produzidos pelos professores, que compreende o principal corpus deste segundo capítulo.
O discurso docente de forma abrangente será analisado em outro momento sob a denominação de discurso pedagógico, o qual diz respeito não apenas ao ensino da história, mas a forma de conhecimento predominante no espaço escolar de forma generalizada.
O conjunto de textos que analiso foi produzido durante a realização da ação de capacitação profissional desenvolvida pela equipe de Formação Continuada do Projeto «Ensinar a ensinar», do qual participam os professores de 1ª a ª séries do Ensino Fundamental da rede pública municipal de ensino de Porto Velho.
Os textos foram elaborados durante a realização da oficina pedagógica de «Estudo e Conhecimento do Meio» (Historia e Geografia), a qual contou com a participação dos professores das escolas atendidas pelo Projeto, em Jaci-Paraná e Porto Velho em maio/2000. O tema da oficina pedagógica era «Brasil 500 anos».
A referida temática foi contemplada no ano 2000 devido à solicitação feita pelos próprios professores da necessidade de se pensar em metodologias adequadas para o desenvolvimento do tema junto com aos alunos. Tendo em vista a massificação do assunto nos meios de comunicação de massa, principalmente na televisão.
Durante a realização da oficina pedagógica foi solicitado aos professores que em grupos produzissem textos referentes á temática «Brasil 500 anos». Assim, esses textos foram produzidos numa situação singular de formação continuada de professores, onde o participante da oficina sem deixar de ser professor passa a ser aprendiz.
Os conteúdos e estruturas dos textos elaborados pelos professores foram apresentados de forma diversificada. Existem textos que correspondem às idéias da história oficial, apresentada pela maioria dos livros didáticos, mas também é possível perceber formações textuais que rompem com a lógica imposta pelo discurso pedagógico.
Esses textos foram analisados através das regularidades e irregularidades discursivas. Considero como regulares os conceitos que apareceram entre vinte (20) e quarenta (40) vezes e, irregularidades os conceitos que foram citados entre duas (02) a cinco (05) vezes.
Inicio a análise dos discursos dos professores com os conceitos regulares verificando como estão a favor do discurso institucionalizado ou do contra discurso. Na segunda parte deste capítulo apresento as irregularidades discursivas, as quais considero como formas de resistências à imposição do discurso pedagógico.
2. 3 - As regularidades discursivas do discurso docente
2. 3. 1 - Do conceito de fato histórico
As concepções de fato, tempo, sujeito histórico e cultura irão aparecer nesta dissertação em tópicos separados apenas para efeito de análise. Tanto na produção histórica quanto no ensino de história, essas noções são apresentadas de forma simultânea e interligadas.
Para a realização desta análise discursiva como o seu corpus é constituído por textos esse termo foi retomado inúmeras vezes. Assim, por uma questão estratégica os textos passam a ser denominados pelo caractere maiúsculo (T) junto com um numeral correspondente ao seu enunciado, como: T1, T2, T3 e sucessivamente.
Vejamos através dos textos produzidos pelos professores sobre a temática «Brasil 500 anos» como a idéia de fato histórico se materializa através da elaboração escrita:
«Com a chegada dos portugueses ao Brasil, vieram os jesuítas para catequizar. A primeira missa realizada teve uma grande participação dos índios» (T3).
«O que comemorar nesses 500 anos? As leis, por exemplo, não são para todos. Alguns cumprem, outros desrespeitam só por que tem mais, não mudou quase nada; a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas a escravidão continua; D. Pedro gritou Independência ou morte: será que temos liberdade? Será que somos independentes» (T5)
«Falando exatamente da libertação dos escravos negros, em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei que libertou-os. Quando se fala desse acontecimento exalta-se a princesa e chega-se a chamá-la de a Redentora, esquecemos, no entanto, que a idéia de realizar esta façanha não foi exclusivamente dela, já que naquela época existiam várias pessoas que lutavam por igualdade entre as raças eram os escravocratas» (T12).
«Dentro deste contexto os heróis históricos foram indivíduos de pele branca. E após a Proclamação da República, o país recebeu nova injeção de europeus (alemães, italianos, japoneses,...)» (T15).
A primeira constatação que podemos fazer é a de que não existe nas produções dos professores uma única concepção referente a fato histórico. Nos enunciados dos textos 3 e 15 esta noção é vista de forma unilateral com base na visão do dominador, que na produção discursiva da história oficial eliminou os conflitos étnicos, culturais e sociais resultantes do processo de colonização do Brasil.
Nesses textos os acontecimentos históricos são analisados tendo por referência um conjunto de causas e conseqüências ocorridas através do tempo, traduzido em início, meio e fim.
Os seus personagens históricos: jesuítas e europeus, são construídos com base em relações harmônicas, sem a constatação de conflitos, de diferenças sociais, de preconceitos e discriminações. Como dizia De Certeau, os marginalizados, os esquecidos e os excluídos, o louco, a criança, a mulher não fazem parte da história. Eles ocupam o não-lugar da história.
Nos demais enunciados, T5 e T12 a visão unilateral da história é quebrada pelas inquietações sobre o verdadeiro significado de independência e de liberdade. No T12 a idéia hegemônica da Princesa Izabel como Redentora dos escravos é questionada através da participação dos escravocratas no processo de libertação dos escravos.
Além desses textos, outros apresentam idéias consideradas como contra discursivas, através dos seguintes enunciados:
«Em pleno século XX ainda existem discriminações raciais no Brasil e no mundo, na qual muitos deles perderam suas origens pelo descaso da sociedade e a discriminação faz com que o negro não consiga espaço cultural e profissional. Levando o mesmo a se tornar um marginal, sem religião, sem passado, e na maioria das vezes sem futuro» (T6).
«Hoje apesar de ter transcorrido 112 anos da libertação o elemento negro continua em desvantagem com o elemento branco, podemos citar o exemplo do Estado do Maranhão, com o pior desempenho de índice de desenvolvimento humano, a renda média familiar dos brancos é R$ 230,00 mensais, já um negro recebe apenas R$ 93,00.» (T10)
O conjunto dos textos 5, 6, 10 e 12 organizam o contra discurso no espaço escolar referente à compreensão de fato histórico. É interessante perceber que esses enunciados partem na sua maioria do tempo presente.
«Em pleno século XX ainda existem discriminações raciais no Brasil e no mundo» (T6).
«Hoje apesar de ter transcorrido 112 anos da libertação o elemento negro continua em desvantagem com o elemento branco» (T10).
Através do tempo presente é possível rever a história oficial com outro olhar. As condições sociais de existências impostas aos negros na atualidade brasileira não corroboraram com a idéia de libertação pregada como um fato histórico e heróico dos brancos em relação aos negros no tempo passado.
A quebra do discurso hegemônico da história oficial é representativa da mudança de mentalidade que começa a se manifestar no espaço da sala de aula. Isso significa que a história não é mais exclusivamente ensinada, para os alunos de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental, com base apenas na tríade: causa (início), acontecimento (meio) e conseqüência (fim).
O resultado da história enquanto processo representativo de uma única verdade começa a ser questionado pelos professores. Esse indício caracteriza uma nova forma de conceber a história.
De acordo com De Certeau:
«todo fato histórico resulta de uma práxis, porque ele já é o signo de um ato e, portanto, a afirmação de um sentido. Este resulta dos procedimentos que permitiram articular um modo de compreensão num discurso de fatos»7.
Assim, o discurso do gênero didático sobre a história é um dos signos representativos de um ato, que busca a afirmação de um sentido, uma vontade de verdade. Quantos outros sentidos compreendem um fato histórico? Este é um questionamento que deve permear uma nova concepção de ensino de história.
Além dos sentidos que são construídos pela formação discursiva do gênero didático, a concepção de história envolve dimensões outras, como:
1) o vivido, as relações humanas estabelecidas entre homens e mulheres no cotidiano da rua, do bar, das casas, das igrejas, nos clubes, nas associações, nos locais de trabalho etc;
2) o representado, a história enquanto produção escrita (historiografia): que obedece a determinados pressupostos teóricos e finalidades predeterminadas. A história, enquanto conhecimento científico, possui uma gama de definições conceituais. Para cada teoria ou tendência teórica o termo varia de forma significativa.
3) o interpretado, ou seja, as diversas formas de compreensão de um mesmo fato histórico que está relacionada à lógica do representado.
Compreender essas diferentes dimensões do mesmo fato histórico é de fundamental importância para a compreensão da estrutura que o discurso histórico se caracteriza e se revela.
É possível perceber que alguns textos, produzidos pelos professores, a idéia de fato histórico começam a ganhar outras significações que se relacionam com as dimensões citadas. Vejamos os enunciados dos T 15 e 12:
«(...) D. Pedro gritou Independência ou morte: será que temos liberdade? Será que somos independentes». (T5)
«(...) que a idéia de realizar esta façanha não foi exclusivamente dela, já que naquela época existiam várias pessoas que lutavam por igualdade entre as raças eram os escravocratas». (T12)
Para a história oficial a independência do Brasil é um fato histórico consumado. Essa lógica embasa também o fato da Princesa Izabel ter libertado os escravos. A participação dos escravocratas, a resistência e organização dos negros, as exigências econômicas e sociais não são consideradas nos textos produzidos pelos professores ou quando aparecem as análises são feitas de forma superficial.
Em seguida veremos que essa lógica não esta presente apenas no discurso do professor, esse não representa a essência do discurso escolar, mas sim o resultado da formação discursiva advinda do discurso pedagógico.
2. 3. 2 - Do conceito de tempo histórico
Na concepção de tempo histórico encontra-se subjacente à própria concepção de história. Nos livros didáticos do Ensino Fundamental a história é compreendida como a ciência do passado. Essa é uma idéia equivocada e reducionista. A história é antes de tudo uma investigação. O objeto da história é o homem no tempo.
De acordo com Marc Bloch:
«A história não é a ciência do passado. Melhor os homens no seu tempo e espaços históricos. Mais do que o singular, favorável a abstração, convém a uma ciência da diversidade, o plural, que é o modo gramatical da relatividade»8.
Segundo o conhecimento histórico escolar o tempo histórico é concebido de forma linear: passado, presente e futuro. Ele é algo pronto e imutável. Nesse sentido cabe ao professor a transmissão da história com base na lógica científica de medição cronológica dos seguintes períodos: dia, mês, ano, era, século e milênio.
Nos textos dos professores as regularidades que atestam essa idéia são apresentadas através dos seguintes enunciados:
«Passados 500 anos hoje nós vamos falar do que o negro está passando por sua cor não mudar (...)
O negro só é bem tratado se puxar o saco do patrão». (T2)
«Hoje depois de 500 anos muitas coisas mudaram, não existe mais aquele lugar cheio de árvores e sim prédios, (...).São 500 anos de alegria e desenvolvimento, (...)». (T4)
«Há 500 anos atrás os índios viviam em total tranqüilidade até a chegada dos portugueses, que começaram a modificar toda a sua cultura, os índios começaram a ser explorados pelos portugueses(...)» (T7).
Nos livros didáticos de história do Ensino Fundamental a noção de tempo privilegiada limita-se ao estudo do tempo cronológico: calendários e datas comemorativas, com início, meio e fim.
Antes da implantação da LBD 9394/96, a área de “Estudos Sociais”, ministrada nas séries iniciais do ensino fundamental (antigo 1º grau), o rol de conteúdos, na sua maioria, era constituído de “Datas Comemorativas”.
O tempo é uma noção construída pelo homem de diferentes formas em diferentes tempos históricos. Tanto que, numa mesma tribo (sociedade) existem diferentes leituras do tempo.
As pessoas percebem o tempo de maneira diferente uma das outras. Para um seringueiro, dos confins da Amazônia, o tempo da natureza é mais significativo do que o tempo da fábrica, o qual é percebido de forma mais atenta pelo operário do que por outra pessoa que não é obrigada a conduzir a sua vida cotidiana através das batidas infindas do relógio.
De acordo com o PCN de história:
«o tempo histórico pode ser dimensionado diferentemente, considerado em toda sua complexidade, cuja dimensão o aluno aprende paulatinamente. O tempo pode ser apreendido a partir de vivências pessoais, pela intuição, como no caso do tempo biológico (crescimento, envelhecimento) e do tempo psicológico interno dos indivíduos (idéia de sucessão, de mudança). E precisa ser compreendido, também, como um objeto de cultura, um objeto social construído pelos povos, como no caso do tempo cronológico e astronômico (sucessão de dias e noites, de meses e séculos)»9 .
A diversidade de tempo (sempre plural) e sua dinâmica materializada nas permanências, rupturas, modificações, transformações e continuidades são concepções que abarcam o espaço da produção científica. Para que essas noções adentrem o espaço escolar se faz necessário à constituição de uma concepção de ensino que contemple os pressupostos da pluralidade histórica e cultural.
Para o conhecimento escolar a história obedece ao tempo passado. Para de Certeau a história é sempre plural enquanto espaço, tempo e sujeitos que estão e atuam na história.
Na idéia de tempo desenvolvida no espaço escolar está subjacente a idéia de progresso, ou de um tempo que parte do caos, da barbárie (do tempo do índio) e chega até a civilização (tempo do branco).
O T4 corrobora essa idéia:
«Hoje depois de 500 anos muitas coisas mudaram, não existe mais aquele lugar cheio de árvores e sim prédios, (...).São 500 anos de alegria e desenvolvimento, (...)». (T4)
O lugar cheio de árvores se contrapõe a lugar de prédios. Se os conceitos de desenvolvimento, que é material e, de alegria, que é sentimental, aparecem interligados fica explícita a idéia que as árvores que existiam há 500 anos atrás corresponderiam ao tempo da tristeza, das trevas e da ignorância, que deveria ser superado pelo desenvolvimento da civilização e da alegria.
Segundo Marilena Chauí:
«Outra noção que também visa escamotear a história sob a aparência de assumi-la é a noção de desenvolvimento. Nesta, pressupõe-se um ponto fixo, idêntico e perfeito, que é o ponto terminal de alguma realidade e ao qual ela deverá chegar normativamente».10
No T7, apesar da explicitação da idéia crítica de que os portugueses exploraram os índios, anteriormente, é mantida a concepção de que os índios eram ociosos. Observe o seguinte enunciado:
«Há 500 anos atrás os índios viviam em total tranqüilidade até a chegada dos portugueses, que começaram a modificar toda a sua cultura, os índios começaram a ser explorados pelos portugueses (...)» (T7).
A expressão: «os índios viviam em total tranqüilidade», mantém a idéia de que o índio não trabalhava e, que de certa forma justifica o fato dele ser explorado pelo português. Não são ditas das intempéries da natureza que os grupos indígenas enfrentavam para manutenção da espécie, ou das disputas territoriais, as quais agregadas aos fatores naturais faziam dos índios um povo nômade.
No T2 a condição de submissão ao patrão é apresentada inicialmente como conseqüência da cor, ou de um fator biológico. É a formatação da idéia de embranquecer a cor da negra presente ainda no século XXI.
«Passados 500 anos hoje nós vamos falar do que o negro está passando por sua cor não mudar (...)
O negro só é bem tratado se puxar o saco do patrão». (T2)
Não é a cor da pele da pessoa que deve justificar a sua subordinação, mas o sistema social criado pelo próprio homem para a exploração do trabalho alheio. Enunciados como este: «vamos falar do que o negro está passando por sua cor não mudar» contribuem para a manutenção da discriminação étnica e social existentes na sociedade.
As pessoas, independente da etnia, religião, opção sexual, idade ou classe social, querem ser percebidas como seres humanos na sua plenitude. Qualquer forma de discriminação busca esconder uma relação de opressão. E os discursos são criados justamente como formas de aceitação dessa realidade.
O índio e o negro são vistos como sujeitos atemporais da história. A participação deles aparece apenas no período da colonização e de forma discriminada. Os índios são substituídos pelos negros porque os primeiros não se adaptaram ao trabalho e os segundos foram substituídos pelos europeus por falta de mão de obra especializada para a indústria brasileira.
Depois do período da história colonial, os índios e os negros são apagados da história do Brasil. Eles fazem parte de um tempo que precisa ser esquecido. Dos textos produzidos pelos professores, uma minoria apresenta uma idéia diferenciada dessa concepção de tempo. Eis os seguintes enunciados:
«Toda cultura tem traços de permanências e transformações. Na cultura negra é perceptível traços característicos e marcantes no que diz respeito a dança, música e a culinária» (T1).
«Existem muita lacunas ao longo desses quinhentos anos que marcaram a chegada dos colonizadores ao Brasil» (T12)
Os conceitos de permanências e transformações apresentados no T1 fogem à tríade: antecedentes, causas e conseqüências dos fatos históricos. A idéia de tempo cronológico empobrece a complexidade do tempo histórico, que na atualidade é visto como constituído de permanências, transformações, continuidades e rupturas históricas.
De acordo com Foucault:
«Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda a prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência»11.
O tempo histórico concebido de forma linear retira dos sujeitos a capacidade de transformação da realidade presente. É a mesma lógica que constitui o tempo religioso, a esperança de que dias melhores virão, senão nessa vida, que seja na eternidade.
Segundo Marilena Chauí:
«Talvez uma das formas mais extraordinárias pela qual a ideologia neutraliza o perigo da história esteja em uma imagem que costumamos considerar como sendo a própria história ou a «essência» da história: a noção de progresso. Contrariamente ao que poderíamos pensar, essa noção tem em sua base o pressuposto de um desdobramento temporal de algo que já existiria desde o início como germe ou larva, de tal modo que a história não é transformação e criação, mas explicitação de algo idêntico que vai apenas crescendo com o correr do tempo»12.
Os conceitos de continuidade, desenvolvimento e de progresso ligados ao discurso institucionalizado do tempo criam a idéia de transformação social como um processo que ocorrerá mais cedo ou mais tarde, portanto, não há necessidade de lutas, conflitos, guerras, motins e revoluções.
A continuidade histórica transfere toda a possibilidade de mudança para um tempo devir. Retira do indivíduo a capacidade de ser sujeito da história, a qual deixa de ser concebida como resultante das relações sociais estabelecidas pelos homens em determinado tempo e lugar e passa a ser compreendida como destino ou vontade dos deuses.
O enunciado do T12 traz em si uma indicação da forma como a história enquanto fonte discursiva é produzida. Vejamos:
«Existem muita lacunas ao longo desses quinhentos anos que marcaram a chegada dos colonizadores ao Brasil» (T12).
As lacunas são estratégias utilizadas para a construção do discurso histórico e também do discurso pedagógico. E ao contrário do que se imagina são as lacunas que garantem a eficácia do discurso institucional.
De acordo com Marilena Chauí:
«O discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, como uma frase na qual houvesse lacunas. A coerência desse discurso (...) não é uma coerência nem um poder obtidos malgrado as lacunas, malgrado os espaços em branco, malgrado o que fica oculto; ao contrário, é graças às lacunas entre as suas partes, que esse discurso se apresenta como coerente. Em suma, é porque não diz tudo que o discurso ideológico é coerente e poderoso.»13
O discurso da história não pode dizer tudo. Porque a nenhum discurso é permitido falar de tudo, com todos, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Nesse momento não posso dizer tudo que acredito, devo seguir as regras da academia. O discurso que tudo revela procede contra a própria interdição e provoca a sua autodestruição.
O T12 prossegue da seguinte forma:
«Quem foram estes brancos? O que vieram fazer aqui? Alguns desses questionamentos são fáceis de serem respondidos: sabemos que vieram da Europa, mais precisamente de um país chamado Portugal e que após chegar aqui iniciaram um processo intensivo de exploração dos nossos recursos naturais tais como pau-brasil e pedras preciosas. Outros até hoje não estão muito bem explicados, será que foi por acaso ou intencionalmente?» (T12).
Os questionamentos elaborados no início e término do enunciado não podem ser respondidos, ou até podem, porém para cada lacuna preenchida, outras tantas serão mantidas e abertas. É a materialização do processo de interdição tão bem apresentado por Foucault. Segundo este autor:
«Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa»14.
Como existe uma lei social, que não é dita de forma evidente, por isso tem o poder de calar os sujeitos da linguagem, que impõe limites aos discursos, as lacunas ou os espaços em brancos são característicos das práticas discursivas, principalmente as consideradas científicas.
Para a análise do discurso não basta procurar o preenchimento dos discursos, expresso em suas lacunas, afinal essa não deve ser a preocupação do analista do discurso. As existências de lacunas são portadoras de sentidos, a busca do sentido deve guiar a análise discursiva.
De acordo com Chauí:
«Assim, a tentativa de preencher os brancos do discurso ideológico e suas lacunas não nos levaria a «corrigir» os enganos ou as fraudes desse discurso e transformá-lo num discurso verdadeiro. É fundamental admitirmos que se tentarmos o preenchimento do branco ou da lacuna, não vamos transformar a ideologia «ruim» numa ideologia «boa»: vamos simplesmente, destruir o discurso ideológico, porque tiraremos dele a condição sine qua non de sua existência e força»15
Não é a atitude de preencher lacunas ou de contrapor um discurso com outro, que se vai desvendar as ideologias subjacentes aos discursos ou a sua eficácia. A exemplos desses textos:
«Sabe-se através da História, que não veio para cá a «fina flor de Lisboa», e sim degredados (ladrões, assassinos, prostitutas e etc). Talvez esteja escondido lá no passado a origem de um dos piores problemas que tanto atrapalha a vida dos brasileiros atualmente: a corrupção» (T12)
«O branco, limpo, culto, inteligente, mostrou sua verdadeira identidade: opressor, bandido, vilão, burro, ignorante e ladrão.
Com ele levou nossa gente, nosso ouro, nossa flora, nossa fauna, deixou miséria, ódio, lágrimas e muita dor.
Esse é o branco herói que acabou com a cultura, mitos e religião e com força e imposição criou a escravidão.» (T14)
O mesmo sujeito histórico, os portugueses são concebidos através de visões opostas: bandido e herói. São dois extremos. A imagem de herói foi construída pelos próprios portugueses através dos seus documentos históricos, principalmente a «Carta de Achamento do Brasil». A imagem de herói é o auto-retrato dos portugueses.
A imagem dos portugueses enquanto ladrões é uma entre tantas outras imagens construídas pela contemporaneidade, que no final dos 500 anos desse fato histórico, volta os olhos para o passado, e o julga com os olhos do presente.
É preciso compreender a quem interessa que esses discursos sejam apresentados de maneiras opostas? Quais os jogos de linguagem que os sustentam? Em que condições de produção suas idéias foram elaboradas? Em que tempo histórico eles mantêm sua validade?
Em suma, a constatação de que no espaço escolar o tempo histórico é concebido de forma diversificada, nos remete a quebra da hegemonia desse conceito. Como exemplo os seguintes enunciados:
«Hoje depois de 500 anos muitas coisas mudaram, não existe mais aquele lugar cheio de árvores e sim prédios, (...).São 500 anos de alegria e desenvolvimento, (...)». (T4)
«Toda cultura tem traços de permanências e transformações. Na cultura negra é perceptível traços característicos e marcantes no que diz respeito a dança, música e a culinária» (T1).
Os conceitos de permanências e transformações fogem á lógica do tempo cronológico, seqüenciado. O passado não é algo que foi superado e o futuro não é garantia de dias melhores.
O passado ocupa o espaço no presente. A exploração, por exemplo, dos povos indígenas e dos negros, ainda se caracterizam como constantes na sociedade atual. A mudança dessa realidade não será possível enquanto a sua negação for mantida pela história.
Se o tempo histórico é concebido de forma evolutiva aceita-se que os vários problemas sociais vivenciados no início da história «sejam coisa do passado», já foi superado há 500 anos atrás.
2. 3. 3 - Do conceito de sujeito
Toda e qualquer pessoa ocupa um lugar na sociedade e esse lugar não implica apenas na definição do espaço físico, mas sim social. Quando falamos, o fazemos de um determinado lugar, ocupamos um determinado espaço.
O professor como sujeito social ao assumir seu espaço na sala de aula determina aos demais indivíduos que ocupem o lugar de aprendiz. Ao expressar suas idéias sobre história, fato histórico e tempo histórico não é apenas o professor quem fala, mas a instituição escola é quem fala através dele.
Esse pressuposto de assujeitamento do sujeito transforma-o num ser teleguiado pela ideologia. Não podemos negar que a ideologia perpassa as relações sociais, mas acredito na inventividade e criatividade do sujeito, do contrário nega-se o próprio objeto da história.
A história é um lugar. A história enquanto disciplina escolar materializa esse lugar através do livro didático, o qual registra a história feita pelos monarcas, presidentes, políticos, reis, imperadores, religiosos, militares e descobridores. Assim, eles são os sujeitos da história, todos vestidos com suas capas de heróis que lutaram e morreram em nome da pátria.
O homem ordinário, o homem comum, o professor, o índio, o negro, os trabalhadores, os desempregados, as crianças de rua, os sem-terra, os bóias-frias e a empregada doméstica ocupam o não-lugar da história. São os seus marginalizados.
O rei, a rainha, o marechal, o presidente, o senhor de engenho, o faraó, o colonizador, o civilizado, o religioso, o filósofo são os personagens da história. Eles fizeram a história. A relação da história é unívoca, entre os heróis e seus feitos históricos.
Na concepção de história tradicional, que perpassa o livro didático, o sujeito da história é sempre o outro. O homem comum, o ordinário não faz parte da história. Esse discurso institucionalizado e perpassado em alguns dos textos reproduzidos pelos professores, da seguinte forma:
«A Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas a escravidão continua;
D. Pedro gritou Independência ou morte: Será que temos liberdade? Será que somos independentes?» (T5)
«Falando-se exatamente da libertação dos escravos, em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei que libertou-os. Quando fala-se desse acontecimento exalta-se a princesa e chega-se a chamá-la de a Redentora, esquecemos que esta façanha não foi exclusivamente dela, já naquela época existiam várias pessoas que lutavam por igualdade entre as raças eram os escravocratas. (T10).
«Como todos nos sabemos, os brancos (portugueses) tiveram uma participação muito importante para o desenvolvimento do nosso país.
Primeiro pela História. Coloca-los como heróis descobridores dessa terra tão imensa e bela, pelos seus costume e língua que herdamos e pelos conhecimentos já que eram pessoas mais esclarecidas e organizadas» (T11)
«Dentro deste contexto os heróis históricos foram indivíduos de pele branca. E após a proclamação da república, o país recebeu nova injeção e europeus (alemães, italianos, japoneses,...) recebendo novas culturas, mudando o panorama econômico e cultural das específicas regiões. (T12)
Os personagens da história, na concepção dos professores são: D. Pedro, que proclamou a independência (T5). A Princesa Izabel, que libertou os escravos (T5 e 10), os brancos portugueses, que descobriram o país (T11) e os imigrantes europeus, que trouxeram novas culturas (T13).
Por que negros e índios não aparecem como personagens heróicos da história do Brasil? Porque entre tantos outros fatores a história enquanto documento é o discurso do vencedor. Assim, o discurso institucional cria a idéia de que os marginalizados não tem história, não fazem parte da história.
Apesar desse discurso ser fundante no espaço escolar ele não é o único. No que considero como contra-discurso é possível constatar que em outros textos a figura do herói é questionada e se valoriza a participação de outros grupos sociais na formação histórica do Brasil.
O contra-discurso se revela através dos seguintes enunciados:
«(...) a princesa Izabel assinou a Lei Áurea, mas a escravidão continua; D. Pedro gritou Independência ou Morte: «Será que temos liberdade? Será que somos independentes?»
Quem sustenta esse país? Quem paga impostos? E o que é feito como nosso dinheiro? Quem trabalha de verdade? E quem sofre as conseqüências de tudo isso? (T5)
«Estatisticamente os negros vivem menos, ganham pouco e sua educação é restrita. Mesmo tendo sido um povo que participou do progresso do Brasil, como a mão de obra, cultura e com a comida típica e até na parte religiosa» (T6).
«Os brancos chegaram a catequizar os índios em benefício do seu trabalho escravo e com o tempo os índios foram esquecendo seus costumes e seus rituais» (T7).
«Sabe-se através da História, que não veio para cá a «fina flor de Lisboa», e sim degredados (ladrões, assassinos, prostitutas e etc). Talvez esteja escondido lá no passado a origem de um dos piores problemas que tanto atrapalha a vida dos brasileiros atualmente: a corrupção» (T12)
«O branco, limpo, culto, inteligente, mostrou sua verdadeira identidade: opressor, bandido, vilão, burro, ignorante e ladrão.
Com ele levou nossa gente, nosso ouro, nossa flora, nossa fauna, deixou miséria, ódio, lágrimas e muita dor.
Esse é o branco herói que acabou com a cultura, mitos e religião e com força e imposição criou a escravidão.» (T14)
Com exceção do T6, que resgata a contribuição do negro para cultura brasileira, os demais rompem com o discurso institucionalizado que prega a idéia do branco civilizado, culto e temente a Deus como o herói e personagem central da história.
Em nenhum livro didático de história das séries iniciais do Ensino Fundamental, que analisei, foi questionada a valorização dos portugueses no processo de formação da cultura brasileira. A exemplo do que é retratado neste texto:
«Os brancos chegaram a catequizar os índios em benefício do seu trabalho escravo» (T7).
A catequização dos índios é retratada como um ato de bondade. A fé cristã deveria ser levada a todos os povos e gentios do Novo Mundo. No entanto, o enunciado acima rompe com esta idéia, a catequização é concebida como estratégia utilizada pelos portugueses para de tal forma escravizar os índios em proveito do seu trabalho.
A religião historicamente sempre foi, e nos dias atuais ainda continua sendo empregada para justificar a escravidão do homem em detrimento do próprio homem, ou para retirar das suas mãos o leme da sua história.
O espaço escolar se transforma na arena dos discursos conflitantes. Discursos e contra-discursos confrontam-se. É o que representa os seguintes enunciados:
«Como todos nos sabemos, os brancos (portugueses) tiveram uma participação muito importante para o desenvolvimento do nosso país.
Primeiro pela História. Coloca-los como heróis descobridores dessa terra tão imensa e bela, pelos seus costume e língua que herdamos e pelos conhecimentos já que eram pessoas mais esclarecidas e organizadas» (T11).
«Sabe-se através da História, que não veio para cá a «fina flor de Lisboa», e sim degredados (ladrões, assassinos, prostitutas e etc). Talvez esteja escondido lá no passado a origem de um dos piores problemas que tanto atrapalha a vida dos brasileiros atualmente: a corrupção» (T12)
Os portugueses são vistos como heróis no primeiro texto e como degredados no segundo. São dois extremos, que apesar de se confrontarem enquanto práticas discursivas não abrem possibilidade do desenvolvimento de um pensamento crítico, pois caem no erro da generalização e análise unilateral da participação dos portugueses no processo de colonização do território brasileiro.
De acordo com Gilberto Freyre:
«A colonização por indivíduos – soldados de fortuna, aventureiros, degredados, cristão-novos fugidos da perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira – quase não deixou traço na plástica econômica do Brasil. Ficou tão no raso, tão à superfície e durou tão pouco que política e economicamente esse povoamento irregular e à-toa não chegou a definir-se em sistema colonizador»[8].
Assim, não podemos comprovar a hipótese de que a existência da corrupção no Brasil, como afirma o T12 seja justificada pela presença de degredados no início da colonização. Essa questão exige um estudo sociológico, histórico, cultural e econômico para que as sua essência possa ser compreendida.
Os textos produzidos pelos professores se apropriam de uma única base para corroboração de suas idéias, que é a própria história.
«Primeiro pela História» (T11).
«Sabe-se através da História» (T12).
Que história embasa essas idéias? A história enquanto conhecimento escolar ou a historia enquanto conhecimento científico? Quem realmente fala? Os autores dos textos ou a história? Essa questão remete a concepção de sujeito assujeitado à ideologia. A história é a porta-voz da verdade.
Ao repensar o significado da libertação dos escravos e a independência do país, o T5 constrói uma concepção crítica desses fatos e da história vivida no cotidiano das pessoas. Esta idéia encontra-se subjacente aos seguintes questionamentos:
«Quem sustenta esse país? Quem paga impostos? E o que é feito com nosso dinheiro? Quem trabalha de verdade? E quem sofre as conseqüências de tudo isso?» (T5).
Por um lado ao não dar as respostas prontas e acabadas este enunciado abre diversas possibilidades de análises para o receptor. O terceiro questionamento responde aos demais. Por outro, o texto quebra a idéia de sujeito assujeitado e mostra que a criatividade e inventividade também se manifestam nos jogos de linguagem.
O terceiro questionamento responde os anteriores de forma explícita e de forma implícita a questão maior que envolve todo o enunciado o sujeito da história.
«E o que é feito com nosso dinheiro?» (T5)
Se o dinheiro é nosso, somos nós que pagamos os impostos e somos nós que sustentamos esse país. Assim, o sujeito da história não é o rei ou a rainha, mas sim o trabalhador, o homem comum, o homem ordinário, que através do seu cotidiano é capaz de inventar táticas e bricolagens em contraposição a ordem do sistema.
De acordo com de Certeau:
«Mil maneiras de jogar/desfazer/ o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representação estabelecidas. Tem que «fazer com». Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço opressor»13.
Os professores que produziram o T5 se utilizam desses estratagemas de forma peculiar. Vejam como eles, a princípio, se apropriam do lugar da história:
«(...) a princesa Izabel assinou a Lei Áurea» (T5).
«D. Pedro gritou Independência ou Morte» (T5).
Em um segundo momento, os professores questionam a validade dos fatos históricos e, por conseguinte, o lugar ocupado por aqueles que são considerados seus feitores:
« mas a escravidão continua».Será que temos liberdade? Será que somos independentes?» (T5)
E, por fim, com destreza e arte realizam a ocupação desse lugar, através da desconstrução e construção de outra prática discursiva:
Quem sustenta esse país? Quem paga impostos? E o que é feito como nosso dinheiro? Quem trabalha de verdade? E quem sofre as conseqüências de tudo isso? (T5)
Essa ocupação representa a alteração das regras impostas pelo discurso institucionalizado que no desejo de verdade impõe seus personagens, fatos históricos e a interpretação desses fatos de forma universal, natural e que por todos devem ser seguidas. Porém, as pessoas comuns no seu cotidiano são capazes de criar estratégias e bricolagens que supera o que foi pensado pelo desejo de verdade da instituição, expressa através do discurso dos tecnocratas do sistema
2. 3. 4 – Do conceito de cultura
Outro conceito regular apresentado nos textos dos professores é o de cultura. Esse conceito carrega consigo uma carga de complexidade tanto quanto o conceito de história e de sujeito.
Essa característica pode ser percebida nas produções de professores, que por um lado corroboram as idéias contidas nos livros didáticos sobre a cultura, apresentada como algo que é estabelecido de forma harmônica entre os povos. Por outro lado, retratam as diversas formas de violações sofridas pelos negros e pelos índios no processo de colonização do Brasil.
Vejamos, através dos enunciados, como essas idéias perpassam o discurso docente:
«Com a chegada dos portugueses ao Brasil, vieram os jesuítas para catequizar. A primeira missa realizada teve uma grande participação dos índios» (T3).
Esse enunciado nos remete a idéia da harmonia entre as culturas. Brancos, índios e negros são vistos como verdadeiros irmãos em busca de um bem comum – a construção da nação brasileira. Nos textos produzidos pelos professores é corroborada a idéia de harmonia entre as raças.
Não existe a possibilidade de total harmonia entre as etnias, culturas ou povos numa sociedade onde a sua estrutura é a divisão social. A teoria de Marx ensina que: «a história da humanidade é a história da luta de classes».
A convivência entre as etnias ou as culturas foi uma estratégia desenvolvida pelos portugueses para a conquista e manutenção do território brasileiro. Vejamos o que diz Freyre:
«A mobilidade foi um dos segredos da vitória portuguesa; sem ela não se explicaria ter um Portugal quase sem gente, um pessoalzinho ralo, insignificante em número – sobejo quanta epidemia, fome e sobretudo guerra que afligiu a Península na Idade Média – conseguido salpicar virilmente do seu resto de sangue e de cultura em populações tão diversas e a tão grandes distâncias uma das outras: na Ásia, na África e na América, em numerosas ilhas e arquipelos» [9]
Esse processo é especificado pelo autor em outra passagem:
«Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação – contra o que não dispunham, aliais, escrúpulos de raça – apenas preconceitos religiosos – foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos»[10].
Assim, propagada harmonia entre as culturas não se deu pelo reconhecimento dos direitos iguais entre os povos, mas por interesse de manutenção do poder. Tanto que na atualidade se vivencia formas de discriminações culturais.
Voltemos para o T3. Os índios pela lógica do contato cultural não participaram da primeira missa. Com certeza se houve aproximação foi por curiosidade que o cenário suscitava, de homens que se vestiam, falam e praticavam rituais diferentes. A história do livro didático não conta que os colares de terços distribuídos aos índios eles os colocavam no pescoço dos macacos ou de outros bichos.
Vejamos outro enunciado:
«E as lideranças indígenas denunciam o descumprimento das discriminações das terras, falta de vigilância permanente das áreas, para evitar essas invasões, ineficiência dos órgãos ambientalistas para fazer cumprir a lei federal.
Acreditamos que a lei é justa e deve ser respeitada» (T9).
Esse texto é contraditório em relação aos enunciados que apresenta. No primeiro parágrafo denuncia o processo de invasão das terras indígenas. No entanto, conclui com a afirmativa de que a lei é justa e deve ser respeitada.
Em toda e em qualquer sociedade o código de leis é elaborado para a manutenção do «status quo» da classe que detêm o poder. Porém, o discurso que chega ao senso comum é de que a legislação garante o direito de todos. «Todos são iguais perante a lei»[11]. Se assim fosse não haveria necessidade desse discurso ser registrado oficialmente.
A posse da terra garantida em lei para os índios, não é de fato, pois os legisladores são representantes dos interesses dos latifundiários, empresários, mineradores, que em vista do lucro imediato utilizam-se da legislação para se beneficiarem.
Como uma lei pode atender a interesses tão díspares: de um lado a valorização e manutenção da cultura indígena de outro, a necessidade de explorar do sistema capitalista. Nesse conflito social o índio continua a ser sacrificado.
O T10 apresenta a mesma temática da garantia dos direitos humanos:
«Vivemos num país onde a forma de governo é a democracia, que quer dizer governo do povo. Depois de todas essas desvantagens enfrentadas pelo negro, somos levados a pensar duas coisas: que o Brasil só é democrático no papel ou negro não é povo» (T10).
O personagem agora retratado é o negro, porém a lógica discursiva é a mesma. As minorias estão à margem da sociedade, o discurso da democracia existe para que elas acreditem que sua condição de vida é causada pela sua incapacidade e não pelas imposições das estruturas políticas, econômicas e sociais.
De acordo com Gilberto Freire a exploração indígena e negra pelo branco foi muito mais além do que a exploração da força de trabalho. O autor considera que a formação brasileira foi um processo singular de:
«Antagonismo de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho (...) Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo» [12]
Assim a sociedade e a cultura brasileira tem se desenvolvido com base nesses antagonismos, não de forma excludentes ou de negação um do outro, mas como forma de equilíbrio. A busca da compreensão da nossa sociedade passa necessariamente pela compreensão destes antagonismos e os mecanismos de sua manutenção.
Os T11 e T13 trazem a idéia de que os portugueses e demais europeus que chegaram ao Brasil possuíam uma cultura mais esclarecida do que a cultura dos e índios e dos os negros. Vejamos como a supremacia da cultura européia é retratada na concepção dos professores, através dos seguintes enunciados:
«Como todos sabemos, os brancos (portugueses) tiveram uma participação muito importante para o desenvolvimento do nosso país.
Primeiro pela História. Colocá-los como heróis descobridores dessa terra tão imensa e bela, pelos seus costumes e língua que herdamos e pelos conhecimentos já que eram pessoas mais esclarecidas e organizadas» (T11).
«E após a proclamação da república, o país recebeu nova injeção de europeus (alemães, italianos, japoneses,...) recebendo novas culturas, mudando o panorama econômico e cultural das específicas regiões» (T13).
Não existe cultura mais esclarecida, superior ou inferior do que a outra. O conceito de cultura implica na concepção de mundo de uma determinada sociedade. A forma como essa dada sociedade cria respostas ou soluções para os problemas que lhe são próprios de sobrevivência, manutenção e conservação da espécie é que forma o seu conjunto de bens culturais, tanto materiais como imateriais.
Os enunciados anteriores são caracterizados por uma homogeneização de idéias: a superioridade cultural dos portugueses e do imigrante. O T20 rompe com essa estrutura, pois ele é repleto de possibilidades de análise discursiva. Vejamos:
«Quando a civilização penetrou na vida dos verdadeiros donos da terra eram chamados de preguiçosos, trogloditas e sem cultura.
Agora peço para vocês analisarem essa pergunta. Será que realmente eles são tudo isso? O homem civilizado que outrora rotulava os índios com todos esses adjetivos agora após 500 anos eles são chamados de exploradores, viciados, ralés e vis.» (T20)
Do enunciado acima podemos verificar quatro visões resultantes do contato cultural entre índios e os colonizadores:
1) Europeu X índio em 1500. Quando da chegada dos portugueses ao Brasil, os índios por andarem nus, viverem da caça e da pesca e por expressarem uma cultura diferente foram considerados, de acordo com o pensamento expresso no primeiro parágrafo do texto, como seres inferiores
«Quando a civilização penetrou na vida dos verdadeiros donos da terra eram chamados de preguiçosos, trogloditas e sem cultura».
2) Sociedade X índio atualmente. Outra leitura que pode ser feita e a de que após 500 anos de história o tratamento em relação ao índio mudou apenas em termos de adjetivação. Hoje os índios são vistos como exploradores da mata, pois vende a sua madeira. São viciados, grosseiros e, portanto ainda sem cultura.
«(...) agora após 500 anos eles são chamados de exploradores, viciados, aelés e vis.»
3) Brasileiros X europeu. Esse mesmo enunciado suscita outra leitura:
«agora após 500 anos eles são chamados de exploradores, viciados, ralés e vis.»
Após 500 anos a sociedade passa a considerar os descobridores como exploradores dos índios, viciados, ralés e vis, pois essas pessoas foram trazidos para o Brasil na primeira fase do processo de colonização do país.
Europeu X europeu. No encontro entre as culturas ocorre o processo de alteridade. Cada indivíduo, cada grupo social só é capaz de ver o outro através do seu próprio olhar.
Assim, os índios foram adjetivados pelos portugueses por atitudes próprias do comportamento deles.Para a sociedade do século XVI o trabalho era visto como algo do qual deveria se ocupar apenas a ralé. De acordo com Gilberto Freyre:
«(...) Por sua vez invasor pouco numeroso foi desde logo contemporizando com o elemento nativo; servindo-se do homem para as necessidades de trabalho e principalmente de guerra, de conquista dos sertões e desbravamento do mato virgem: e da mulher para as de geração e de formação de família».[13]
A força de trabalho do índio e do negro foi de importância vital para a constituição da nação brasileira, não apenas no período da colonização, mas ao longo de toda a historia, como retrata Roberto Freyre. Por que será que existe a preocupação da história oficial em registra, principalmente o índio como preguiçoso?
Na concepção religiosa o trabalho era o castigo de Deus para com os homens. O encontro com o outro serviu como reflexo do próprio comportamento do europeu. Os adjetivos: preguiçosos, trogloditas, incultos, exploradores, viciados, ralés e vis não são mais do que a auto-afirmação dos europeus, ao olharem para os indígenas e verem seu próprio ser. Como Narciso à beira do lago.
No processo de colonização do Brasil o choque entre culturas tão diferentes, resultou em massacres, mortes, explorações, humilhações, repressões e imposições vivenciadas por todos os grupos étnicos, mas com predominância da cultura européia sobre as demais.
A história segue a lógica da dinamicidade. No emaranhado jogo de interesses ocorrem conchavos, acordos, rompimentos, tréguas, avanços e retrocessos. Porém, o processo de escritura garante apenas o registro da história dos “vencedores” dessa luta, os quais criam seus heróis, ideologias e discursos a fim de manter sua hegemonia como algo natural e inquestionável.
A cultura, diferente do registro histórico, é sempre plural. As pessoas nas operações do cotidiano: andar, falar, ler, escrever, plantar, namorar, estudar, trabalhar constroem a história, que não é reconhecida como ciência, pois se assim fosse estaria negando a si própria.
2.4- As irregularidades do discurso docente.
Por mais hegemônica que se apresente uma concepção histórica advinda do discurso pedagógico, no contexto escolar, advinda do discurso pedagógico não é unânime ou aceita harmoniosamente por todos os professores.
Entre os professores, que produzir os textos constitutivos do corpo desta análise, existem aqueles que conseguem pensar a História, para além dos ditames do discurso oficial, de maneira mais crítica e dinâmica.
O contra discurso revelado nas produções textuais é um aspecto a ser considerado, pois representa a quebra de um discurso que deseja ser hegemônico e, que, portanto, prega uma verdade única e universal.
Nos textos produzidos pelo grupo de professores aparecem questões voltadas, por exemplo, a defesa da pluralidade cultural. Os registros expressam a crueldade do processo de civilização imposto aos índios e negros. Aspectos, que como veremos nas próximas análises não são ditos pelo discurso oficial. Numa visão crítica, os professores conseguem perceber e questionar as desigualdades sociais de forma contextualizada.
Nesta última apresento os textos produzidos pelos professores que classifiquei de contra-discurso. Diferentemente do discurso oficial que está voltado para os conceitos básicos da história, como foi apresentado nos itens anteriores, o contra-discurso revela a subjetividade do professor, expressa através dos seguintes conceitos: respeito, liberdade, salvação, amor e amizade.
O discurso contrário do professor frente ao discurso oficial tem sido caracterizado como discurso alienante ou discurso subversivo. No entanto, considero este discurso como discurso criativo e revelador da inventividade do saber docente. Aonde uns vem alienação vejo a invenção e a resistência do sujeito.
O contra-discurso docente não marca a postura de alienação frente ao discurso instituído (a história), mas demonstra uma forma de resistência vivenciada através das práticas e arte do cotidiano contra o discurso oficializante da história verdadeira mantida nos manuais escolares.
Analiso a seguir os conceitos relacionados à subjetividade do fazer docente expresso pelos professores através da produção textual. Esses conceitos aparem de forma correlacionada. Assim, agrupo essa análise em quatro grupos: respeito e convivência, amor e amizade, honestidade e liberdade.
2.4.1- Respeito e Convivência
No conjunto das irregularidades discursivas a questão do respeito é a que aparece com maior ênfase no discurso dos professores. Os enunciados abaixo demonstram a sua expressividade.
«Há 500 anos atrás, havia um povo natural e transparente, que vivia o dia a dia sem se preocupar com o amanhã, roupas não conheciam, andavam nus como vieram ao mundo, tudo era natural para eles. Havia respeito, honestidade, responsabilidade e fidelidade, coisas, acho que herdamos deles. Criticá-los pelo seu modo de vida, porquê se eles eram muito mais sabidos do que nós» (T7)
«(...) Observa-se que as pessoas não se respeitam por se acharem melhores que os outros, haja vista que no país em que vivemos não existe raça pura, por isso se formos estudar minuciosamente a nossa história iremos perceber que os seres humanos não são distintos dos outros pela cor da pele. (T17)
«Quando as pessoas aprenderem o que é realmente o valor de uma vida e aprenderem a viver respeitando o seu próximo, talvez as coisas possam a vir a melhorar, senão debalde» (T17)
«Outros se esquecem que o negro contribuiu para a fortuna do país dando seu trabalho e o seu sangue. Então porque não valoriza-lo, porque ele não tem espaço na sociedade?» (T17)
«A Lei Federal prevê 10% de terra de cada Estado para as reservas indígenas (...) Acreditamos que a lei é justa e deveria ser respeitada» (T9).
O T17 tem com idéia central a preocupação com o respeito que vem relacionado à figura do índio, ou seja, do passado histórico, mas também traz a tona à questão do respeito com as pessoas no tempo presente independente da etnia a qual pertençam.
O T9 chama a atenção para a necessidade do respeito à lei que defini as terras indígenas, o que subentende o respeito ao próprio índio e sua cultura. Pois compreende e mantém com espaço e com a natureza uma relação diferente dos ditames capitalistas.
O respeito ao índio, negro e ao ser humano, à cultura e à religião dos diferentes grupos étnicos e sociais nos remete a outro aspecto também expresso na subjetividade docente que é o conceito de convivência. A convivência pacífica entre os povos é na atualidade uma necessidade mundial
O enunciado do T7 expressa esse desejo da seguinte forma:
«Com a nossa imponência transformamos os índios em meros copiadores, sua história era tão rica, sua inocência era tão bonita. Ah! Como eu queria que nos pudéssemos conviver com eles, com certeza iríamos aprender o que não nos ensinaram até hoje, a respeitar o próximo como a nós mesmo. É uma pena, porque tudo não é como há 500 anos atrás» (T7)
Os conceitos de respeito e a convivência estão intimamente relacionados, como demonstra o enunciado acima. Para conviver é preciso que haja o respeito das diferentes concepções que mundo que marcam a cultura dos mais variados grupos sociais.
No sistema educacional, como forma de despertar nas futuras gerações essa necessidade da convivência pacífica, o saber conviver passou a ser um dos pilares da educação.
O novo paradigma educacional estabelece que além dos conteúdos relacionados aos conceitos científicos é preciso desenvolver no aluno a competência para saber conviver, saber ser, saber fazer e saber ser.
A humanidade chegou a um patamar tanto em termos populacional, quanto em termos de avanços tecnológicos nunca dantes imaginados. O domínio da tecnologia e do conhecimento passa a ser o novo divisor social.
Para reverter esse quadro foi estabelecido um pacto coletivo social ou se aprende a conviver com o diferente, com o outro ou a humanidade estará fadada a sua própria destruição.
2.4.2- Amor, amizade e honestidade
Esses conceitos são subjetivos, a compreensão deles em essência requer um estudo aprofundado na área de Psicologia. Nesta análise o propósito é exclusivamente apresenta-los como comprovação da existência do contra-discurso no espaço escolar.
Vejamos como essa subjetividade contra-discursiva é expressa através dos seguintes enunciados:
«Vamos armar os índios (...)
Vamos ser bons amigos (...)
Venha crescer comigo» (T8).
(...)«São 500 anos de alegria e desenvolvimento e honestidade. Será que agora todos querem ser parentes de Cabral» (T4)
«Há 500 anos atrás, havia um povo natural e transparente, que vivia o dia a dia sem se preocupar com o amanhã, roupas não conhecia, andavam naus como vieram ao mundo, tudo era natural para ele. Havia respeito, honestidade, responsabilidade e fidelidades, coisa, acho que herdamos deles» (T7).
O amor e a amizade aparecem com exclusividade no T8, o qual na integra é composto em forma de estrofes. O que é expressivo da criatividade do professor, que se apropria do discurso histórico produzido em forma de prosa e o transformar em versos, ou como diria Foucault, a composição das formações discursivas.
Os T4 e T7 trazem o conceito de honestidade. Acabei agrupando esses três conceitos: amor, amizade e honestiade, pois analiso que se a pessoa mantém uma relação de amizade com uma outra ele é capaz de amá-la e um dos pilares desta relação é a honestidade.
Esses conceitos remetem as questões apresentadas no item anterior sobre a convivência e o respeito entre os povos. Aliás, a amizade é uma manifestação de amor, que é capaz de unir as pessoas em prol e um bem comum.
Karl Marx conclamou na era da revolução industrial: “Operários do mundo uni-vos”. Hoje a máxima representativa do momento histórico atual é: “Pessoas do mundo uni-vos”. Assim, como a primeira era na sua época uma utopia, a segunda máxima também é, no entanto são os sonhos, as utopias que antecedem os devires.
2.4.3- Salvação
O conceito de salvação está intimamente ligado ao aspecto da religiosidade, ou mais específico a messianismo religioso, ou seja, esperança ou crença no ser Supremo que livre o condenado da sua condição de submissão.
Por muito tempo as ciências humanas, principalmente as influenciadas pelo axioma marxista defenderam a religião como o “ópio do povo”, portanto fator de alienação e assujeitamento social e individual.
Nos textos produzidos pelos professores ao conceito salvação encontra-se subjacentes a outras concepções que retratam muito mais do que a simples alienação. Eis os seguintes enunciados:
«Saindo da influência branca
Buscando a salvação
Formando verdadeiro cidadão
Para construir nossa nação» (T15)
«Penso com toda a minha força de índia que sou, que não fomos a salvação para os índios, nem grandes heróis desta civilização que por mais que todos me digam o contrário ele foi o maior clã que já existiu em nosso país» (...) (T20)
No T15 o conceito de salvação está relacionado a uma idéia coletiva de um grupo social – os indígenas, que buscam a salvação por meio da cidadania, ou seja, a conquista da cidadania e isto implica na consciência de classe e na luta por direito a nacionalidade e garantia da posse da terra.
No referido texto a salvação do índio não é vista como no sentido messiânico de alguém que fora do grupo virá para resgatá-lo da mão do opressor.
Nos textos dos livros didáticos umas das imagens que o discurso pedagógico da história procurou formar é a idéia do branco como o salvador do índio. Os índios eram considerados sem religião e sem cultural. A presença do branco passou a ser vista como garantia do caminho das luzes para aqueles que viviam nas trevas da ignorância.
O T20 rompe com essa concepção quando afirma: «não fomos a salvação para os índios». No contato entre culturas a que é considerada superior não está preocupada com outro processo senão a inculcação e manutenção de sua própria cultura.
Diferente do T15 que se relaciona com a identidade social, o T20 além de retratar subjetividade do discurso docente é revelador também da consciência do indivíduo de pertencer a um determinado grupo. Este enunciado é carregado de sentimentos e sentidos. Vejamos:
«Penso com toda a minha força de índia que sou que não fomos a salvação para os índios»
O discurso no revela o processo de aculturação definido não pelo branco dominador, mas pelo índio, o dominado. O outro lado da história vem à tona e quebra com a hegemonia do discurso pedagógico que continua a considerar o branco como o herói da história brasileira.
Enfim, o conceito de salvação que por muitos estudiosos era ligado à forma dealienação se apresenta no texto como fator de resistência e inventividade do sujeito como defende Michel de Certeau.
O indivíduo não é um ser passivo frente religião, a televisão ou a eleição ou qualquer outro processo que o cerque. Pelo contrário, o sujeito é capaz de se apropriar desses discursos e de seus instrumentos para manter sua resistência contra as suas formas de dominação.
Os textos dos professores são um bom exemplo para corroborar essa idéia. O conceito de salvação nasce seio do discurso religioso, pregado pelos crentes, os eleitos por Deus, que deveriam levar a Boa Nova a todos os gentios.
Ao invés da aceitação pura e simples dessa verdade o homem comum passou a compreender que:
«Agora a gente sabe, mas não pode dizer alto. Ali sempre, os fortes ganham e as palavras enganam»[14].
Assim, o homem comum, o índio, se apropria do discurso da salvação e o “reemprega” no seu cotidiano para negar o desejo da verdade cristã. Nisto De Certeau vê arte e não alienação.
2.4.4 – Liberdade
A liberdade cantada em prosa e verso tem guiado a história da humanidade e de cada indivíduo em particular. O sentimento de liberdade tem orientado o trabalho de muitos professores na esperança de uma educação e de um país mais digno para todos.
No grupo de professores este conceito foi agrupado como irregularidade discursiva, não por ter sido expresso em quantidade menor, mas pelo fato de se adequar melhor as questões subjetivas do ser.
Vejamos como esse conceito é expresso nos enunciados construídos pelos professores:
«Hoje depois de 500 anos muitas coisas mudaram, não existe mais aquele lugar cheio de árvores e lagos e sim prédios, casas e gente por todos os lados, procurando talvez algo que lhe satisfaça, assim mesmo deixando o que é mais preciso, o amor o companheirismo, liberdade, consciência e outras coisas que nos faz relatar, não caberá nessa folha, mas deixa pra lá é hora de comemorar. São 500 anos de alegria e desenvolvimento, honestidade, será que agora todos querem ser parentes de Cabral» (T4)
«Então não mudou quase nada, nos somos totalmente dependentes de outros países, somos escravos que estamos em luta pela nossa liberdade. Realmente ainda falta muito para comemorar os 500 anos» (T5)
«Vivíamos livres, sem roupas e éramos felizes. E hoje, são presos, vestidos e são infelizes» (T16)
«Vivíamos tranqüilos em nosso lugar. Éramos donos de tudo, as águas, as montanhas, as matas, as riquezas e a nossa cultura era rica, do nosso jeito de viver e sentir a liberdade de termos uma terra que era só nossa» (T18)
«Quando teremos nossa liberdade de volta?» (T19)
Com exceção do T5 nos demais textos o conceito de liberdade está relacionado aos índios. No imaginário coletivo dos professores está presente a idéia que o prazer em gozar da liberdade foi condição vivida pelos índios antes da chegada dos portugueses.
É significativa essa relação a partir do momento em que o índio ainda é o grupo social que mais sofre as conseqüências da dominação cultural européia. Se o negro pode com muitas lutas, perdas e vitórias conquistar o direito à cidadania, o índio pelo contrário continua sendo considerado tutela do Estado.
O T5 apresenta o conceito de liberdade ligado à condição de dependência do Brasil em relação aos outros países. Como o sujeito pode sentir-ser livre vivendo num país que está submetido economicamente a ordem da conjuntura externa. A liberdade não pode ser vivida no individual e ser extinta no plano social e histórico.
O T19 apresenta uma condição sine qua non para a liberdade: «Éramos donos de tudo». Se o um país não dispõe do quem tem em prol dos seus cidadãos, se o trabalhador não é dono dos meios de dos instrumentos de produção, se o professor não é dono da teoria que embasa o seu fazer docente, se falta algo ao sujeito ele estará na condição de submissão e está é a antítese da liberdade.
O enunciado do T19: «Quando teremos nossa liberdade de volta?» Esse discurso representa mais do que uma indignação indígena. Através da sua inventividade e criatividade os professores expressam a própria indignação frente ao discurso histórico que prega a liberdade dos negros, dos índios e do povo brasileiro.
A liberdade plena é um estágio difícil de ser alcançado, pois o indivíduo está assujeitado pela cultura e pela linguagem da sua comunidade. Mesmo que opte por ser um eremita esta atitude será resultante da concepção de mundo que lhe foi incultida. No entanto, o homem pode romper as malhas do sistema e alcançar a liberdade em forma de pensamento. Ser capaz de pensar, por si só, abre a possibilidade de se conviver com as grades visíveis e invisíveis, pois o indivíduo descobre que elas não passam de construções do próprio homem.
A guisa de conclusão, a existência de duas vertentes discursivas sobre história apresentadas nos textos dos professores, ao meu ver, nos remete a questão da formação de sentidos de um determinado discurso.
O discurso da história, ou qualquer outro discurso é elaborado com vista a um entendimento unívoco do seu enunciado. No entanto, a interação verbal e social, a cultura e as diferentes formas de comunicação transformam o desejo de unicidade na realidade da multiplicidade.
A formação de uma concepção crítica da história implica pensá-la através da diversidade e não no campo da unicidade.O entendimento da história ocorre de múltiplas formas. O enunciado de um discurso histórico pode ser único, mas as enunciações são tantas, quantos forem os sujeitos e leitores da história.
Notas
[1] Maingeuau, Os termos-chaves da análise do discurso; 24/5, 1997.
[2] Pêcheux, Análise Automática do Discurso, 1997; 182.
[3] Orlandi, Sobre a estrutura do discurso, 1981; 09.
[4] Chauí, Cultura e democracia, 7; 2000.
[5] Foucault, A ordem do discurso, 37; 2000.
[6] Pêcheux, Por uma análise automática do discurso; 166,1997.
[7] Esses textos encontram em anexo. Eles estão reproduzidos de acordo com a caligrafia e estrutura elaborada pelos professores. Optei por manter a originalidade dos textos por entender que outras análises poderão ser realizadas, como a lingüística ou outros aspectos da análise do discurso não contemplado nessa dissertação.
7 De Certau, A invenção do cotidiano, 41
8 Bloch, 28; 1976.
9 PCN de história, 36; 1997.
10 Chauí, obra citada, 29; 2000.
11 Foucault, Arqueologia do saber; 15, 2000.
12 Chauí, obra citada, 29; 2000
13 Chauí, obra citada, 21/2; 2000.
14 Foucault , A ordem do discurso, 9; 2000.
15 Chauí, obra citada, 22; 2000.
[8] Freyre, Casa grande e senzala, 19; 1987.
13 De Certeau. A invenção do cotidiano, 79; 1994.
[9] Freyre, 8; 1987.
[10] Freyre, obra citada, 13; 1987.
[11] Art. 5º - Constituição República Federativa do Brasil, 1988.
[12] Freire, Casa Grande e Senzala, 52; 1987.
[13] Freyre, obra citada, 90, 1987.
[14] In: De Certau, A invenção do cotidiano, 76; 2001.
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