observações

 

 

*- tempo é memória, é conectar seqüências anteriores (conceito dependente do conceito de tempo), que já não existem, fazendo elas jorrarem novamente no imediato numa outra forma (parecendo sempre ser a mesma) para os sentidos através da linguagem. tempo é manutenção, retenção e reatualização imaginária, narrativa, dando espessura ao in-espesso, ao nada que é o imediato, enquanto jorra.

 

*- linguagem é tempo. não há linguagem sem que o qualquer isso se abra numa espessura onírica criando o dentro e o fora; o antes, o agora e o depois; o alto e o baixo; o eu e o você; nós e eles; aqui e ali, instaurando a comunicação.

 

*- aquilo que se move se move no tempo. todo antes do imediato e todo depois são articulações imaginárias: o exercício da significação é, antes de tudo e para ser, oculta. o que faz o imediato, a sensação e a intelecção do real, é o jorro denso de tempo se expondo e sumindo. sem a manutenção imaginária, quando a fina pele sobre o caos se rompe, o real se dissolve.

 

*- não há o “homem” (delírio universalista da tribo que, para nós, é a ocidentalidade), portanto todos os qualificativos, tudo aquilo que distingue ele dos “animais”, dos “anjos” ou dos “deuses”, são condições tribais de compreensão, classificação e codificação (devendo ser enfrentados nessa dimensão e com os limites impostos por essa desuniversalização, desnaturalização e desocidentalização radicais). e todas as características de animais, anjos e deuses (de naturezas e “culturas”) se tornam complementos binários e contrastivos com aquilo que irá ser definido como “homem”, “humano” e “humanidade”.

 

*- é impossível falar sobre o ser sem criar um sistema cheio de brechas, de contradições de limites, de ambigüidades. sem um ordenador (deus, natureza, espírito, matéria) uma estrutura contraditória é exatamente o que pode tentar dizer o existente sem cair nas armadilhas epistemológicas (salvaguardas de diversas formas de crenças) de não perceber e enfrentar essas projeções. e contradições que não podem ser resolvidas, superadas, soldadas por alguma liga teórica que parece uniforme e bem acabada: as contradições, as contradicções, as ambigüidades, os vazios, as interações impossíveis, a impossibilidades de pontes – fazem parte constitutiva, não são defeitos que poderão ser concertadas com o tempo ou por uma inteligência, por um pensamento, por uma reflexão ou por uma atuação “mais complexas”, “mais avançadas”.

 

*- há sempre um gozo místico em “não resolver a questão do ser”, num se enroscar nas mais diversas contradicções, como se não devesse ser assim.

 

*- não há “os entes” separados da presença tribal. o estudo por “grandes fatias” do real é uma projeção das classificações, de determinado momento do conhecimento (essas “fatias” foram, há muito pouco tempo, criadas e consolidadas, principalmente entre os séculos xv e xviii, fazendo parte do “mundo do capital” e suas condições de existência). aquilo que é (o to on de aristóteles), o existente, não é autônomo, nem ordenado (não é cosmo), nem cognoscível em si por um em-si. sua ordem advém (da tribo), é um dos fantasmas, um dos teatros da tribo.

 

*- o estudo do ser (ontologia) é, na verdade (perdido da vista o ordenador metafísico personalista ou despersonalizado mas agindo com individualidade e individuação), um estudo que só pode ser exercido depois (não há o ente-enquanto-tal): é preciso primeiro uma varredura epistemológica, uma inversão crítica que perceba o deus invaginado e as projeções das ordens sociais. o que parece ser o “estudo da origem”, daquilo “que está no centro”, é tão somente o estudo de grande parte das nossas crenças transpostas tanto para o além quanto para o fundamento. sai do centro para as bordas.

 

*- não há o comum, o genérico, o universal a todos os entes: o existir, o ser. para ser, para estar, para significar, para existir o ente, a exterioridade, só passam a ser depois das relações serem estabelecidas, depois que a tribo se põe, depois que a significação se torna conhecimento, depois que origens são acatadas, depois que ordenamentos e valores são respeitados. não há nada abstrato no ente: abstrata é a relação criada para ele ser, ou a inter-relação que pro-cria os elementos em interação. a tribo em sua atividade sem suporte cria a entidade, que torna o ente um ser para nós. e o que é depois passa a ser antes; o que é dentro, passa a ser fora; o que depende de-nós passa a aparecer e exigir ser em-si.

 

*- o ente, a entidade, o ser só existem no tempo, em práxis-poiésis, naquela dimensão imaginária existente somente enquanto projeções vivas das ações da tribo: a exterioridade só se torna autonomia depois e enquanto presença: seu horizonte de acontecimento, de ser, se restringe às redes da tribo.

 

*- cada ente, cada movimento, cada posição, cada exposição, cada interação advém do específico horizonte de acontecimentos da tribo: a própria superação depende de como a tribo organiza e reproduz, permite e impede, aceita e rejeita, como funciona suas redes produtoras de existência e sentido.

 

*- o passado é aquela tenção em jorro sendo produzida no imediato, forçando, para se desdobrar, se apresentando como futuro. todo passado é futuro imediato. o imediato é esse futuro imediato.

 

*- quando leibniz pergunta “por que algo existe de preferência ao nada?” ele não percebe o deus da sua tribo já invaginado no conhecimento. o existente e o nada são categorias, conceitos, noções que parecem haver escapado para o mundo, para o em-si, para o anterior e se tornado independente. daí a pergunta parecer relevante, quando não passa de uma ilusão não percebida.

 

*- normalmente as questões da origem, do processo, da evolução traem o deus invaginado.

 

*- não vivemos cercados por impressões as mais diversas (térmicas, luminosas, materiais, sonoras) num sentido setencentista de origem dos sentidos e do próprio conhecimento. todas essas “impressões externas” que tocam nossos sentidos foram criadas ao mesmo tempo que os sentidos por determinada “comunidade” (tribo), determinadas relações que podem ser transpostas para uma “origem geral”. não havendo “elementos” antes da tribo, não havendo objeto enquanto objeto ou fenômeno enquanto fenômeno, cabe à tribo receber essa “origem” (singular e coletiva), essa “exterioridade” e resolver ela enquanto práxis em suas ambigüidades e contradições.

 

*- algo não chama minha atenção por sua exterioridade a não ser complexamente depois que eu, meus sentidos, minhas possibilidades interativas, esse algo e minha própria atenção estejam devidamente configurados e estabelecidos socialmente, “libertos” em sua exterioridade, sua interioridade e suas possibilidades relacionais.

 

*- é preciso superar o deus invaginado que possibilita a ordem antes e depois da presença. como toda physis é, necessariamente, uma metafísica de exterioridade, e o próprio deus invaginado é uma metafísica camuflada para a ciência e a filosofia, a superação se dá ao exercitar como fundamento, suporte e limite o caos. conceito que não pode ser falado, descrito: sua forma de existência se dá somente como dissolução do deus invaginado, como aquilo que pulsa e é constantemente formatado, passando a ser. todas as questões migram para dentro da práxis e seus limites tribais, para dentro da sua virtualidade.

 

*- o algo existir não é a nossa primeira concepção, não é o mais evidente, não é aquilo que se põe como princípio. saber que pensa algo, que está entre os entes, não é evidência primeira, mas conseqüência de toda uma reflexão de esquecimento que se põe, cinicamente, depois dos entes, dentro da natureza, expondo como princípio ou um deus ou a própria natureza. essa forma de reflexão não somente mantém o deus invaginado como cria um deus de suporte (deus, natureza, matéria, energia), escapando tanto à construção social do real enquanto produção, manutenção e crença, quanto com a ação dos indivíduos na manutenção dos cenários sobre o caos, na sua função com a pele sobre o caos (sem alguém não há o ser). sem a tribo e sua presença enquanto indivíduos o algo é impensável, é caos (e esse é é profundamente bem aplicado: ele advém do ser, não daquilo que acoberta, pois o caos é conceito e não algo misterioso vindo de antes: é noção metafísica que substitui a metafísica personalista e inconsciente para servir a produção alienada geral da tribo, pois faz aparecer o ser como verdade, objetividade, reflexão, realidade).

 

*- as questões lingüísticas sobre o ser, normalmente, servem para ocultar, para por contradições e mistérios sobre o que não tem. só o ser (língua da tribo) pode dizer o ser (tribo da língua) em seu limite tribal. sua autonomeação não é impossibilidade de dizer, mas condição do ser dito e, principalmente quando age o deus invaginado, não dizer, camuflar, criando vazios sobre vazios, mistério sobre mistério, enigmas, impossibilidades.

 

*- no horizonte, no limite, nas fronteiras da tribo, inerte sob a pele do ser, cenários e máscaras do ser, é o caos.

 

*- o ser é sempre tribal: toda universalidade é delírio interno. toda questão é uma questão é uma questão.

 

*- o caos aparece sempre como algo dito e presenciado, fazendo parte do ser, mas dando a entender que é um além, uma origem, um intocável que pertence aos deuses, de onde eles retiram as coisas (nessas questões a imaginação sempre se oculta enquanto imaginação: cria fazendo de conta que é pura exterioridade): hesíodo, na teogonia, "sim, bem primeiro nasceu caos, depois também/terra de amplos seios, de todos sede irresvalável sempre,/dos imortais que têm a cabeça do olimpo nevado,/e tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,/e eros: o mais belo entre deuses imortais,/solta-membros, dos deuses todos e dos homens todos/ele doma no peito o espírito e a prudente vontade." em ovídio, nas metamorfoses: "antes de haver o mar e as terras, e o céu que cobre tudo, a natureza inteira tinha a mesma aparência, chamada caos; massa bruta e informe, que não passava de um peso inerte, conjunto confuso de sementes das coisas. (...) a terra, o mar e o ar se confundiam, a terra era instável e os mares inavegáveis, o ar carecia de luz: coisa alguma ostentava a sua própria forma, umas coisas se opunham às outras, eis que, em um só corpo, o frio lutava com o calor, a umidade com a secura, o que era macio com o que era rígido, o que não tinha peso com o pesado." ou no texto bíblico: “no princípio deus criou o céu e a terra. a terra, porém, estava vazia e nua, e as trevas cobriam a face do abismo; e o espírito de deus era levado por cima das águas." o caos se entreabre como insonhável abismo, vazio primordial, precedente, primitivo, pré-existente, coexistente, profunda e inexaurível “fonte de energia”, de onde sai os seres através da ação demiúrgica (a tribo sempre projeta para fora de si aquelas forças não visíveis de sua própria atuação comunitária, principalmente aquele eros alienado que produz, reproduz e faz circular formatando a tribo e está ligado ao que não deve aparecer, pois faz parte das crenças motrizes). o caos é o que preside a separação, o que se fende, o que se dividi, o que se procria por cissiparidade, originando todos os entes. mas ele pertence ao não ser. o caos é o simétrico negativo do ser: a negatividade, a força destrutiva, o invisível violento, lugar da queda e do desaparecimento. é o reino negativo equivalente ao mundo do ser. celeiro dos demiurgos. cada metáfora para o caos é, ao mesmo tempo, uma metáfora das energias não percebidas (alienadas) da práxis e dos próprios indivíduos.

 

*- não há nada antes da pergunta, nada antes e nada depois.

 

*- aquilo que nasce é apenas algo para nós. é incluído numa rede significativa que faz ele existir e se enquadrar: significando ele existe: nascendo dentro da rede polidimensional do sentido sua existência é reconhecida. teoricamente, “para ele”, a partir de “sua perspectiva” ele seria o não ser, o informatado, a não perspectiva, o a ser formatado, o caos “nele” e em todo além “dele”. existir não é evidente.

 

*- a questão do fundamento não é um círculo vicioso nem uma sala de espelhos. possui um limite bem definido tanto na grade teórica quanto no limite tribal. o infinito só é infinito porque determinada imaginação sempre acrescenta mais um além, mais um outro número, um outro horizonte para confirmar os espectros da práxis.

 

*- a extrapolação não confirma o real, mas o torna teórico, mais subjetivo do que é, saindo da órbita da práxis para o da imaginação irresponsável ou ideológica: sua função é multiplicar os véus sobre a invaginação e o limite constitutivo e inescapável da sua perspectiva. projetar o conteúdo do conhecimento como realidade, como verdade, como exterioridade, como natureza são vícios de um pensamento tribal que se quer universal, que proclama haver encontrado o conhecimento que diz o ser por ser o ser: parece sair do labirinto, da sala de espelhos quando mais profundamente nele se perde: daí o gozo místico que todo conhecimento ocidental sempre sentiu e fez sentir como verdade objetiva.

 

*- desuniversalizado, aceitando seus vários limites e horizontes insuperáveis, suas contradicções constitutivas, o pensamento poderia abrir campos ainda insuspeitos que são apenas tensões, dimensões não percebidas completamente, vivências que escapam sem poderem fazer parte da experiência: superaria a cortina de fumaça autoritária e imperialista própria da ocidentalidade cristã e capitalista para enfrentar os ossos e a carne da nossa forma de existir.

 

*- não somos nada: a partir daí podemos nos tornar qualquer coisa.