ZONA DE IMPACTO
ISSN 1982-9108 ab irato
Vol. 11, Ano XI, maio, 2008
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Alberto Lins Caldas
Departamento de História – UFRO
Centro de Hermenêutica do Presente
www. albertolinscaldas.unir.br
albertolinscaldas@yahoo.com.br
A História Oral é “instrumento” capaz de “sondar” profundamente, através de todo um processo transcriativo, estruturas e instâncias da experiência que normalmente estão restritos aos consultórios de Psicologia, aos segredos de família, às fofocas, às intimidades, ao mistério não-dito do viver, aos entrelaçamentos de forças e afetos que se apresentam, para nós, como um “narrador”. Ao mesmo tempo, a História Oral desmobiliza o sentido puramente econômico-social e amplo da História quando vai ao encontro do outro, em busca da experiência singular, do dizer único, do narrar vivencial, conseguindo articular uma “atmosfera” que antes não existia sequer para o “narrador”. Com isso amplia a idéia de sujeito e perturba seu limite com o tempo, com o contexto, podendo, assim, chegar aonde normalmente o conhecimento historiográfico, antropológico ou sociológico tradicional não vai, a não ser enquanto ficção, e mesmo o conhecimento psicológico com a História Oral se abre para um além da “doença”, do “distúrbio”, para um além dos limites da clínica, para um além do biologismo entranhado em seus métodos e conceitos.
Com o conceito de narradores plenos temos, quando unido à noção de cápsula narrativa e ao conjunto transcriativo, a busca por uma História Oral mais profunda e rearticulada com o conhecimento numa dimensão pós-moderna, líquida, discursiva, completamente fora dos tradicionais “problemas historiográficos”, se pondo dentro dos fluxos, dos rizomas discursivos e incluindo a “exterioridade” dentro dos seus devires.
Narradores plenos são aqueles que mantiveram intacta sua “faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, 1987: 198). O narrador pleno é o tipo de narrador que Benjamin reclamava estar desaparecendo porque as ações da experiência não eram mais consideradas. O narrador pleno, normalmente, é um pouco o “camponês sedentário” e também o “marinheiro comerciante”. Carrega consigo as duas experiências a do viajante e a do homem do lugar. Isso faz dele um narrador especial, pois intercambia esses dois tipos de narradores: “A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presente esses dois grupos [o camponês sedentário e o marinheiro comerciante]” (1987: 198). Mas é o narrador que já recebeu a imensa carga destrutiva do “mundo moderno”, não é mais um “marinheiro fenício” nem um “camponês medieval”: é um rato, queira ou não, industrial, uma ratazana metropolitana mesmo na mais densa floresta, onde normalmente é nada mais que um lixo da mais crua indústria.
É um conceito, ou uma rede conceitual, que não propõe “sociedades”, “grupos”, “colônias”, “redes”, “famílias”, “temas” ou “histórias”, mas narradores plenos, aqueles que vão bem além do simples “resgate do oprimido”, de uma “história dos excluídos”, de “fontes orais” de uma historiografia sempre capenga ou para a “formação de bancos de dados orais”, exercitando outra concepção de História Oral. É busca de nós mesmos e, particularmente, da sociabilidade, das redes virtuais e imaginárias que neles confluem e deles se abrem: os narradores plenos são hipertextos que exigem estrutura, forma e interpretação próprias que consigam perseguir sua polidimensionalidade. Entender, a partir de narrativas pessoais plenas, não somente uma vida particular ou um hipertexto, mas, com ele, poder tocar o próprio “tecido social” e suas fundações “ficcionais” em movimento, isto é, o real como feito da “mesma substância” da interioridade narrativa dos indivíduos. O conceito de narradores plenos (como noção em exercício) é a experiência com uma maneira de fazer e ser História Oral.
Não iremos contextualizar tradicionalmente o hipertexto final, relacionando aquela narrativa com a “História” (porque cita ou se insere em “grandes momentos da história”, ou porque viveu minúsculos acontecimentos e relações), mas considerando o contexto uma escolha narrativa (quem, quando, como, onde, para quê, se, por que?), parâmetro e guia não somente para um discurso que organiza sua vida, mas como expressão dessa vida e suas relações, matérias ficcionais do discurso.
O “narrador” (radicalizado enquanto conceito transforma-se em narrador pleno) coloca-se no centro da pesquisa não mais como simples depoente, colaborador, co-autor ou entrevistado. Essa perspectiva explora as relações entre memória, história, narrativas, textos, redefinindo as relações entre passado-presente, onde as narrativas (entrevistas múltiplas com o “narrador”) que definem o hipertexto final, são construções desse “narrador” em busca da singularidade, sendo apenas no dizer. O narrador pleno é o eixo dessa História Oral e sua singularidade uma de suas buscas essenciais num mundo de consumismo, coletivismo mercantil, mídias e modas. A singularidade e seu supremo valor ético-moral como uma das “resistências” à manada, a transformação de todos em cardume e a própria individualidade em apêndice de temas e questões universitárias.
Como nossa dimensão é o outro enquanto narrativa (o outro dis-posto e ex-posto em texto: o outro enquanto hipertexto: o outro solto no ar de imagens, vivências e palavras), seu “dis-curso” é estimulado em devires, onde os pretensos con-textos são invaginados (o contexto advém do texto e não o contrário: não cabe ao oralista explicar o outro, o tempo do outro, sua sociedade, mas con-versar em movimento, caminhando, com essa palavra, com esse ritmo, com essas articulações, com essas aberturas, com essa experiência que é index sui), tomando sua dimensão interna de dados do texto que são assentados enquanto elementos narrativos e não como dimensões de realidade que explicam ou põem o texto do “narrador”. Para realizar isso há Ciências demais. A História Oral tem compromisso ético-político, antes de tudo, com aquele sujeito, com aquela narrativa, com aquela vida: sua disposição é com aquele indivíduo em particular, com sua dimensão experiêncial: a interligação em “comunidades de destino” se dará por extrapolações epistemologicamente controladas, não por exercício próprio da História Oral: por isso essa perspectiva não é “social”, “coletiva”, não se dá na mesma direção das Ciências Humanas tradicionais nem daquelas que tomam o indivíduo para “curá-lo”, como as Psicologias. É desse indivíduo que ela trata, daquele sujeito específico, daquela fala que, mesmo quando diz se interligar com outras, somos nós, oralistas, que concretizaremos essa mediação com outras narrativas sem perder a unicidade daquela voz, daquele específico constructo: buscamos a específica grandeza de uma vida, sua específica complexidade sem cair no biografismo. A História Oral é a busca pela dignidade do indivíduo, por sua complexidade, valor e dinâmica, fora das multidões, dos agrupamentos, das classes, dos povos, dos movimentos sociais e incluindo tudo isso em sua dimensão narrativa e vivencial: tudo isso será projeção da sua fala, dimensão a ser enfrentada a partir do seu lócus. Por isso a História Oral não é História nem tem na oralidade sua matéria. A palavra “História” e o “Oral” do seu nome é somente a persistência de um engano por hora inextirpável, engano talvez frutífero, pois exige sempre o enfrentamento de muitas questões que envolvem teoricamente as redes de ação do oralista.
O narrador pleno é aquele que não somente esteja aberto às entrevistas, mas aquele que consegue dar uma dimensão a sua vida que ultrapassa o simples contar, seja em densidade seja até em quantidade de páginas, conquistando um tecido narrativo denso. Ele é encontrado a partir de grupos específicos que o indicam como contador de histórias. Em vez de delimitar e estudar um grupo (projetar e estudar toda uma “colônia” e toda uma “rede”), delimitar, fazendo pequenas conversas, um grupo para encontrar entre eles um narrador pleno. Essa História Oral não é social, histórica, psicológica, econômica, antropológica, social, grupal, mas é, antes de tudo, com e sobre a singularidade, sem extrapolações em busca de leis, de confirmações científicas.
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