mudar o tempo

 

 

voltar no tempo: só a mercadoria e o mundo imaginário produzida por ela, e com ela no centro (sabendo ou não), é que não pode voltar no tempo (como se mudar o tempo fosse “ficar jovem novamente”, um desejo próprio da mercadoria): sua direção é sempre pra-frente, pro-consumo, pro-sem-volta-por-ter-sido-consumida: é o anjo benjaminiano invertido, olhando pro futuro sem nada no passado com tudo no imediato-do-presente sendo devorado num turbilhão: somos o espelho religioso da mercadoria enquanto ela é o nosso (querendo ou não): sem retorno – como tem, ou tinha, impresso em certas embalagens.

perspectiva despolitizada e despolitizadora: a ação é somente aquela que leva ao se por em consumo, ao circular em consumo, ao se entregar em con-sumos, a aquilo que divulga ter-sumo: devo estar pronto pra ser devorado: o que não-tem-sumo deve desaparecer do mercado, ser abandonado, ser esquecido: fica somente o que se engole em festança, em orgia, em manada, em cardume, em mídia: o que não partilha-com, o que não entra na corrente é combatido e exterminado, seja com balas, com abandono, com demissões, com apartaides: quem não está dentro está fora.

esse mundo-porco atinge e utiliza a imaginação-do-desejo (buscando egoisticamente o meu, o só meu, o meu umbigo, consu-mimos aquilo que as estruturas nos prepara longe dos nossos sentidos, longe da nossa atenção: daí porque a importância do pensamento e da negatividade-radical, de uma contínua ação terrorista tanto pessoalmente quanto no entre-nós: o horror nos prepara uma pajelança, uma festança, e nós sentamos pra festejar felizes da vida enquanto milhões estão nus, rindo e dançando, na fila do banho): a imaginação-do-desejo é essa imaginação desejante (a do desejo-de-consumo, a do desejo-de-ser-consumido, a do desejo solto sem desejo: ânsia-comichão, que não se sabe – vazio, oco, vá-cu-o: a pele, a química, o olhar, o agora desprotegido) que nos faz jorrar-pra-frente (imagem tradicional do tempo: imagem que se tornou realidade-natural, física, política: o tempo é substanciado, dado uma matéria, um corpo, um irreversível como nos objetos: esse tempo-corpo passou a ser o corpo), em direção ao con-sumo, ou pra ser con-sumido, o que dá-no-mesmo: aquilo que não é diferente por com-partilhar o-mesmo-do-cardume, da colméia, do formigueiro: sem a segurança ridícula do cardume não se sentem protegidos, não se sentem desejado, não se sentem no mundo.

mudar o tempo exige atingir o mundo e a si-mesmo com a imaginação-do-pensamento.

enquanto o primeiro mundo, o da imaginação-do-desejo, é entorpecimento (desejo traído e atraído praum além do desejo de sade [o desejo só acon-tece nos horizontes de sade ou não acontece: o desejo no horizonte da mercadoria não é desejo]: fora-do-corpo/dizendo-que-é-corpo: está na mercadoria: sempre fora: daí a angústia-do-desejo, a depressão-do-desejo, o terror-do-desejo, a histeria do desejo: o desejo sem causa, desejo sem corpo: no corpo da mercadoria: insatisfeito, conforme a onda, a bossa, a moda: o nunca se transmutar em gozo, em felicidade, em plenitude, em superação: o desejo é condenado a não gozar: se ele plenamente gozar acabam as condições da mercadoria [eterno desejo protelado] e do seu mundo: o gozo, forma suprema do desejo, anterior ao desejo, eixo cego do desejo [realização do cuidado-de-si e do cuidado-do-outro: o gozo só acon-tece depois do gozo do outro no corpo mole, entregue, livre e risonho do outro, dentro do sonho do gozo: o gozo é des-locamento], não é jamais atingido em superação e negatividade), semiconsciência e puramente classe-média-delirante (todas as classes hoje são em comportamento, em metas e mentalmente apenas classes-médias camufladas), o segundo [o da imaginação-do-pensamento] é resistência, é um não contra o universo da mercadoria (sua negatividade se faz por dentro, contra pontualidades numa guerrilha cotidiana) que nos convence que não podemos voltar atrás, não podemos mudar o tempo (que não é uma entidade-acontecida, mas planos virtuais criados e mantidos por nós mesmos), como se fossemos vítimas e não criadores do mundo, do tempo, das relações e de nós mesmos.

de repente, mesmo sabendo que somos todos os sexos, temos obrigatoriamente um-sexo (um desejo apenas, um tipo de corpo somente), um-desejo (o de com-partilhar com o cardume mesmo jurando que não é, que é de mim, do meu desejo: a imaginação-do-desejo não sabe de si, não sabe do outro [diz-saber, diz-querer sem poder ser]: sua função é o consumo), um-caminho (aquele imposto pelo desejo castrado em estilhaços de mídia: esses estilhaços se tornam o real, aquele que desejamos como o real do mundo e de nós mesmos): tudo isso é largo demais, é atraente demais: é o carnaval do mundo da mercadoria que anula o tempo [estamos sempre imóveis numa eterna adolescência desejante, esquecidos que somos tempo e que o tempo é nosso porque somos nós enquanto nós] carnavalizando a imaginação com o carnaval das mercadorias.

a imaginação-do-pensamento tem todos os sexos, todos os desejos, todos os corpos, todas as palavras: seu caminho é estreito: sua vida advém da sua vontade, da sua vontade contra o mundo e pra si mesmo (eu e aqueles que estão comigo): construo minha vida, meu tempo, meu corpo, meu desejo, meus caminhos: só assim posso encontrar o-outro [livre escolha de caminhos, de corpos, de desejos, de gozo, de realização: a imaginação-do-desejo encontra feito, recebe porque pode, porque todos desse cardume fazem-assim, pensam-assim, querem-assim: faz circular porque faz parte, porque não é, porque aceita não gozar os gozos-que-valem-a-pena]: não sou vitima, sou demiurgo: a imaginação-do-desejo, criada e mantida pela mercadoria-em-mídia, goza seu lucrar passageiro no entorpecimento dos cardumes: as metrópoles condensam esse desejo insatisfeito (essa a sua atmos-fera: as transversais que invadem e se tornam nós mesmos, nosso desejo, nossa nova programação) que sai toda noite, todo fim de semana, todo feriado [pelas brechas do trabalho: o tempo permitido: o tempo do sonho da reprodução]: suas tentativas são ordenadas, nos espaços conhecidos, nos territórios conquistados da manada (cada corpo tem um espaço, cada desejo uma maquinaria, cada tentativa um território). e jamais se completam, jamais gozam de verdade, jamais se encontram [no território estão todos plastificados pra não se contaminarem ou com dentes trincados pra se contaminarem: mercadorias dentro de embalagens: com programas certos e esperados: o máximo do sexo é um braço enterrado no anus, uma garrafa na vagina, as pequenas transgressões dos dois sexos]: por isso não cessam, não conseguem tocar o tempo, recolher o rabo de escorpião do tempo e se tornarem senhores deles mesmos: tudo no horizonte adolescente da mercadoria [o consumo pra quem pode é fácil: excitação rápida o consumo: difícil é manter a excitação (a imaginação-do-desejo precisa de sempre mais ou a excitação arrefece: sua função não é gozar mas se manter sempre em excitação): mas ela desaparece logo, assim que é consumida: daí á importância da imaginação nesse desejo: ela é reduzida a ser somente um preâmbulo ao próximo consumo: ela mantêm a vibração no vazio antes da próxima excitação].

propaganda e realidade agora são uma só dinâmica: convencer pro consumo é o real: cultura e mídia: redes consangüíneas pra produzir-circular-consumir mercadorias: tudo nos diz – consumir: a propaganda é a superfície do real (pode ser lida nas superfícies da cidade) e seu eixo de funcionamento: é preciso se entregar; parecer: confluir: se deixar seduzir faz parte: todos estão mortos-vivos: não há alternativas: tudo é mercadoria: é uma cultura da persuasão: tudo nos convence: tudo é feito pra nos convencer: nós, os elementos indistintos do cardume: nosso ponto de vista é o mesmo da cultura da persuasão: somos ela: mas ela não é nenhum de nós (fetichismo, histeria, masoquismo, necrofilia): tudo é sexualizado (mas não há nenhum sexo: rituais adolescentes: consumo de imagens e comichões): tudo traz felicidade: tudo dá prazer, nos torma mais inteligentes, mais bonitos, mais ricos, mais admirados: e nos transformamos naquilo que deseja a mercadoria: tudo é mercadoria: o mercado somos nós mas nós não somos o mercado (ou não devíamos ser: mas todos estão mortos-vivos: como resistir?, como não ceder à multidão fascista em transe?, como não gritar quando todos estão gritando de prazer? [sem gozo]) ele, o mercado, é gerado enquanto fluxo em mim mesmo: sou seu deus – até consumir: depois sou novamente seu deus – porque devo continuar a consumir [da mesma maneira que devo ter prazer, e mais prazer, e mais prazer sem nunca gozar: devo continuar a ser deus]: o mercado e seus rituais criam o real (não somos nós que criamos o mercado, mas uma força metafísica, um ser metafísico que nos abriga a participar no cardume: fetichismo, histeria, masoquismo, necrofilia), seus significados, seus projetos e eixos: não há exterior, não há alternativa [fetichismo, histeria, masoquismo, necrofilia]: tudo faz parte, tudo nos atrai pra fazer parte, tudo diz – você faz parte e não pode ser diferente: e nada pode nos realizar, tornar felizes ou melhores: con-sumido, o desejo cessa sem haver se transformado em gozo, em felicidade, em inteligência, em aventura: e novamente nos pomos a desejar, e desejar, e desejar.

praque o tempo se torne nosso [que eu possa olhar pra ele e enfrentar suas tempestades, seus vazios e incompletudes], é preciso que ele seja atingido com o desejo-do-pensamento e escolha com a vontade, que é liberdade sempre fora dos desejos e das formas do cardume: o cardume não sabe gozar, não quer gozar, não pode gozar, não é deixado gozar: o cardume só pode correr atrás do prazer, da esperança de prazer.

se não lhe ensinaram e se você não se ensinou a liberdade [algo que esquece facilmente quando se está envolvido pela imaginação-do-desejo] não saberá escolher: o desejo da mercadoria terá somente mais um perdido na noite suja, mais ainda insatisfeito e infeliz [mas sempre em espera-nça]: e tudo continuará como sempre.

retomar e mudar o tempo porque ele é projeto do corpo e do desejo, do carinho e da lentidão, das horas e dos minutos, mas principalmente porque ele é projeto da vontade em liberdade [da liberdade da vontade], que é o mesmo que o amor (que sempre parece ser a imaginação-do-desejo, mas é somente a imaginação-do-pensamento, é escolha e invasão poética: o amor é uma invenção da liberdade, bem diferente do desejo: o amor é gozo por escolha).