HISTÓRIA ORAL COM HOMENS
DA COMUNIDADE SANTA MARCELINA - RO
CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE - UFRO
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
A Moderna História Oral atualmente coloca-se enquanto zona de fronteira pelos pressupostos de pesquisas realizadas em Ciências Humanas e Sociais, constituindo seu espaço enquanto técnica interdisciplinar que se identifica (pela formulação de projetos, uso de instrumentos eletrônicos, atividades em campo e principalmente pelas vertentes institucionais).
Falar em História Oral enquanto técnica ou metodologia requer um desnudamento de postura metodológica, de consciência sobre História e sobre mundo, que dêem coerência aos procedimentos utilizados para a confecção de documentos/ textos. O processo de construção desse modo de ser e de multiplicar o mundo parte de uma visão de História, de tempo e de realidade que só se realizam no tempo presente. A identidade desta História Oral constitui-se pela escolha do seu objeto de pesquisa (o tempo presente) e pela forma colaborativa de confeccionar seu tecido textual.
Partindo de algumas premissas na prática da História Oral percebemos procedimentos metodológicos onde a História Oral ainda não exigia para si um rigor que desse coerência à relação estabelecida entre Entrevistador e Entrevistados e as novas possibilidades de pesquisa advindas dessa relação onde o que pode ser extremamente ético e educado numa entrevista com as elites políticas pode ser extremamente desrespeitoso com uma Comunidade, por exemplo, de seringueiros (Caldas (I), 2001: 45).
Não precisamos mais legitimar essa técnica ou metodologia historicizando essa História Oral nas origens da moderna História Oral nem em procedimentos que surgiram a partir das críticas à História das elites e da própria História Oficial ao constituir uma perspectiva contra História inovando suas abordagens, que dão preferência a uma "história vista de baixo" (Francois, 1998: 67) onde ao dar garantia de voz aos excluídos e aos vencidos pelos discursos silenciadores do poder, a História Oral continua aceitando as mesmas regras e limites da História, pois, acreditando no distanciamento do presente impõe formatações prévias aos discursos de pessoas que poderiam apresentar-se e constituir para si e para o "mundo" no momento da entrevista identidades mais fluídas através da narração/recriação de suas experiências de vida.
Ao fazer justiça com os excluídos, com os vencidos ou ao elaborar projetos de pesquisas delimitando o território de investigação precisamos questionar sobre essa vontade de saber e de fazer fluir certos discursos. Um historiador nunca foi a voz imparcial presente no tradicional discurso da História. Primeiro, porque a História não tem discurso, tem fôrmas para a elaboração de discursos regrados e compromissados com uma temporalidade, encobrindo por vezes atuações políticas e sociais específicas de um mundo que acredita ser real.
Segundo, porque os discursos que aceitam as proposições da História esquecem que o passado só existe enquanto abstração de uma espessura do e no presente. É no presente que Historiadores se enraivecem, desejam, imaginam, buscam e (re) criam o cenário instituído como passado. Mesmo sendo uma contra História acabam por aceitar a imposição da temporalidade oficial, distante até do retrospectivo olhar Benjaminiano onde o passado se destroça diante do historiador.
Utilizar-se da História Oral como compreensão ou contraposição de fatos instituídos no passado implica levar consigo os possíveis vencidos, estagnando-os enquanto categoria de vencidos por limitar a existência dos entrevistados ao discurso histórico sobre o fato, acontecimento ou categoria de exclusão. Não podemos simplesmente ignorar e deixar de reconhecer as desigualdades sociais e mascarar suas injustiças mas também precisamos perceber que o recorte temático parte de uma consciência de classe, de valores pessoais e do reflexo da visão de mundo enquanto interferência do pesquisador reduzindo as possibilidades de significação de cada entrevistado, onde na verdade, aquilo que se faz com o nome de História Oral é tão-somente um preconceito de classe (classe média que, ao se sentir culpada, quer redimir-se conversando com os miseráveis), que não escuta os desgraçados, que usa pedaços do que eles dizem, mistura depois com suas perguntas direcionadoras e está feito o suporte para suas brilhantes palavras: e tudo fica em paz. (Caldas (II), 1999: 84).
Se por um lado ela é filha de desencontros e vazios acadêmicos... considero nesta apresentação a História Oral como um procedimento armado, estruturado por regras que a qualificam como atividade profissional, acadêmica, de iniciados e sobretudo fundamentada em valores teóricos (Meihy, 1996: 49).
A ética em História Oral tem colocado-se enquanto condição de existência para alguns pesquisadores que a partir dos primeiros contatos avaliam o sucesso do trabalho pela satisfação com que os entrevistados dispõe do seu tempo para conversarem sobre suas vidas (Portelli, 1997: 23). Onde a aproximação se coloca como definidora para a realização do trabalho.
Os procedimentos de aproximação com o outro, de construção textual e de colaboração nos propiciam experiências onde ouvir e (vi)ver a vida desses discursos, e traduzir esse tom vital em textos. Podemos observar como o texto de História Oral representa uma possibilidade de fusão entre os sujeitos que se superaram ao entrar num acordo sobre sua elaboração final. Nesse sentido, tanto o entrevistador quanto à pessoa entrevistada tornam-se responsáveis pelo resultado da entrevista. O texto passa a existir como um ser no mundo. (Silva, 1996: 115) Para garantirmos essa dialogicidade, utilizamos como metodologia de campo procedimentos em História Oral, que tem como teóricos principais: Viezzer, (1984); Burgos, (1987) e bem mais próximo de nós a obra de Meihy (1990, 1991, 1993, 1996a, 1996b) e Caldas (II) (1999) que retoma em uma nova perspectiva os conceitos operacionais elaborados por Meihy (1996), como: pré-entrevista, entrevista, transcrição,e transcriação, o conceito de colaborador e constitui noções e procedimentos específicos denominados de Cápsula Narrativa e Nascimento Voluntário, que garantem aos colaboradores a escolha do que contar, como contar e por onde começar sua narrativa.
Para Caldas (II) (1999) todos os momentos que envolvem a feitura do texto constituem um processo de transcriação. Essa História Oral não se preocupa, exclusivamente, em fazer falar os excluídos, marginalizados e vencidos, mas principalmente como essas pessoas falam, como organizam seus discursos, como percebem suas trajetórias individuais.
Daí a importância de pensarmos numa abordagem e em procedimentos de entrevista que não direcionassem o discurso do colaborador: palavras como história, história de vida, infância, doença, são impróprias por condicionarem a temporalidade e darem uma forma externa, vinda do pesquisador e não do colaborador.
Os conceitos de Nascimento Voluntário e Cápsula Narrativa foram utilizados inicialmente como proposta para repensar alguns anseios gerados em torno das tendências em História Oral: História dos Vencidos, História Vista de Baixo e mais especificamente realizando radicalmente a História Oral de Vida desenvolvida por (Meihy, 1991). Nosso objetivo foi garantir que o discurso dos entrevistados fossem ouvidos sem a sombra dos discursos redentores, que ao dar voz aos vencidos acabam por estigmatizá-los no próprio diálogo enquanto categorias sociais sugestionadas pela vontade do pesquisador em dar unidade ao seu conjunto de entrevistas. Enquanto pesquisadores limitamos nossa vontade até que os discursos e a singularidade dos colaboradores fossem garantidos independente do tema do projeto.
Esses procedimentos têm modificado a relação do oralista/colaboradores e oralista/textos no sentido de existir uma conscientização dos lugares discursivos e um possível equilíbrio de poderes que migram dos interesses do projeto ao respeito pela oportunidade que o outro tem ao se apresentar como colaborador e sujeito construtor da própria identidade. Dividimos o trabalho em dois momentos, sendo o primeiro reconhecido como um ajustamento dos poderes e da liberdade dos envolvidos, nesse caso, o acordo intersubjetivo em torno do texto final pode representar uma possibilidade de consenso. Afinal, o pesquisador deve reconhecer que embora o colaborador concorde com a entrevista, a responsabilidade pelo processo de transformação das palavras faladas em palavras escritas está em suas mãos. Porém não é correto supor que o pesquisador seja o principal responsável pelo processo (Silva, 1996: 114).
Cabe lembrar que a História Oral tem dois tempos independentes e eventualmente complementares. O primeiro é o tempo da constituição de um documento, o outro, o da análise do produto (Meihy, 1996b: 50), assim convém dar ao outro no primeiro momento o estatuto de autor no sentido de publicar integralmente o texto resultante, onde o outro aparece além da ficcionalidade do pesquisador, onde a possibilidade de diálogo se abre aos leitores e a leitura do pesquisador será apenas uma entre tantas outras aberturas de diálogo com o texto.
Essa postura que o pesquisador assume diante do outro e do texto está incluída nos procedimentos éticos defendidos por (Meihy, 1996a: 36-37), onde para (Caldas(II), 1999: 83) ela é também uma postura política. O que é feito com o texto de um autor não pode ser transposto para o texto de uma fala. A mudança não é somente entre oralidade e escrita, mas, fundamentalmente, de classe. Enquanto o autor é uma voz com fundamento, feitichizada em sua autoridade, poder de quem fala e de quem pode falar já em forma de texto, tendo sempre um lugar onde ser encontrado, a fala textualizada não tem suporte a não ser em si mesma, não remete a nada além de si, ela não tem um lugar a não ser quando textualizada, fragmentada, citada ao bel-prazer de uma lógica que a comente, sem significar, sem fluir, principalmente porque seu suporte passa a ser o comentário e não ela mesma.
Nossos procedimentos gerais foram: Pré-entrevista: sendo o primeiro momento de contato, onde explicamos os passos do trabalho a ser desenvolvido e marcamos a data e local da primeira entrevista.
Na Entrevista o conceito colaborador foi aplicado como papel assumido pelo outro enquanto centro de atenções e do diálogo através de sua fala e da observação-vivência unidas ao gravador. No momento da entrevista o colaborador teve autonomia para iniciar sua narrativa sem ter que se submeter a questionários ou qualquer direcionamento do pesquisador. Essa autonomia está presente na estrutura narrativa dos colaboradores e na ordenação da monografia, onde os textos dos colaboradores são dispostos integralmente independente da interpretação do oralista.
Nesse momento foram testados os procedimentos de Nascimento Voluntário e Cápsula Narrativa. O resultado tem sido o de aparecer, aproximadamente, o eixo narrativo do próprio entrevistado; a sua temporalidade pessoal; certo princípio, meio e fim que dirigirá nosso trabalho geral de transcriação e específico de textualização, sem precisarmos mais refazer os eixos à nossa revelia. Temos, então, uma origem voluntária (Caldas (II), 1998a: 39-40) o início da fala, sem a interferência do oralista, sem a condicionante do nome, do nascimento, da filiação: tudo isso virá como decorrência; teremos uma cápsula narrativa onde poderemos, depois, inserir o restante da fala, escapando ao início de todo interrogatório, tradicionalmente de toda instrução policial ou jurídica: Onde nasceu? Qual o seu nome? Qual a sua idade? O ano do seu nascimento? Qual o nome dos seus pais?
A cápsula narrativa tem estrutura única e certa temporalidade específica; o depois da cápsula, onde em sentido estrito e relativamente tradicional começa a entrevista, será, no processo posterior de textualização, incluído ou não na cápsula narrativa, devendo, quando for necessário, fazer parte da sua temporalidade, estrutura e narratividade (Caldas (II), 1999: 101).
Transcrição: esse não é somente um “momento técnico”. É aqui onde não somente o que é dito deve ser “transcrito”, mas, principalmente, como o interlocutor gostaria que fosse entendido o que disse, a “passagem fiel de tudo que foi dito para a grafia” (Meihy, 1991: 65) não significa somente o que o gravador está reproduzindo, ser fiel a tudo que foi dito é presentificar os gestos, o choro contido, os silêncios, enfim o que o outro quis que fosse entendido no diálogo.
Textualização: é um procedimento que vem deixando de ser necessário por não exigir do oralista uma interferência radical no texto devido à garantia da estrutura narrativa através dos procedimentos aplicados nos momentos da pré-entrevista e nas etapas da entrevista. O momento da textualização segundo Meihy (1991: 30) começa com a anulação, da voz do oralista, incluindo as perguntas ou incorporando-as ao discurso do colaborador. Segundo Caldas (II) (1999: 105) ... a anulação da voz do entrevistador é inclusão na dialogicidade do texto quando isso for exigido por essa mesma dialogicidade, tema ou narratividade.
A textualização entendida pelos autores como perspectiva de estruturar o discurso do outro, o oralista depois de interferir no momento da entrevista é ainda o ordenador texto. A textualização depois de uma entrevista com os procedimentos de Nascimento Voluntário e Cápsula Narrativa não aparece como momento radical por que é respeitado o eixo narrativo ordenado pelo narrador enquanto um corpus textual. Havendo sim, um processo de inclusão de falas no texto referente ao segundo momento da entrevista onde retomamos assuntos já citados pelo narrador ou estabelecemos o diálogo com o outro sobre temas não mencionados.
Constituído esse momento de dialogicidade garantimos ao colaborador um momento discursivo e ao oralista uma estrutura textual; que foi respeitada até a constituição do texto final. Nesse momento se expressam mundos, corpos, vozes, desejos, medos, sonhos e percepções de um modo singular de entender a experiência de vida em sua própria temporalidade.
Conferência: foi o momento em que voltei aos colaboradores com o texto final, lemos juntos e dei a cada colaborador autonomia sobre seu discurso, modificando, corrigindo erros e acrescentando dados importantes para sua narrativa. Geralmente tem acontecido dos moradores se emocionarem durante a conferência ao se reconhecerem no texto e de pedirem que o mesmo texto fosse lido para as irmãs. Houve apenas um pedido de modificação solicitada pelo seu Romualdo muito tempo depois da conferência.
TEXTOS
Filho de João Luciano de oliveira e Isabel Calixto de Oliveira, solteiro, nascido no Ceará em 11/05/39, solteiro, Ex-garimpeiro e aposentado. Estudou até 3º ano primário. Seu Aldenor é aparentemente um homem muito brincalhão dentro da Comunidade, conversa com poucos companheiros de pavilhão e seu circulo de brincadeiras é restrito à algumas funcionárias da Comunidade.
Eu cheguei aqui em mil novecentos e setenta e nove no dia vinte e cinco de setembro. Adoeci em Ji-Paraná. Passei quase três anos me tratando de um problema que os médicos pensavam que era alergia e a cada vinte e quatro horas eu tomava uma injeção. Depois de dois anos nessa luta os médicos me internaram num hospital lá em Jiparaná. Em oito dias o médico fez tudo quanto foi de exame em mim e não descobriu o que era, ai perguntou se eu podia procurar uma junta médica em Goiânia ou em Limeiras e quando eu voltasse era pra dizer a ele o que eu tinha. Como ele não me cobrou os oito dias que eu passei no hospital eu dei a ele um diamante que eu tinha quando eu mexia com garimpo.
(1) Nunca trabalhei pra ninguém. Trabalhava em garimpo e no tempo que esse garimpo aqui do madeira tava muito bom eu vim. Trabalhei uns quinze dias e não aguentei: aquele vapor no corpo me impolava e eu faltava ficar doido. Peguei um dinheiro, fui na Bolívia e me consultei com o Dr. Ramiro ai ele descobriu o que era. Fez muitos arrodeios dizendo que a doença era fácil de tratar, que não que eu tava sentido. Ai ele perguntou se eu conhecia a Hanseníase... Eu disse que não. E ele foi falando que é uma doença de pele, ai eu perguntei se é lepra, ele disse que é uma doença simples e lepra é uma palavra muito pesada. Me deu um remédio e disse que durante o tratamento eu não posso tá pegando muito sol nem muita chuva e tenho que comer bem porque é uma coisa simples... Simples é? Eu já ouvi falar que ninguém sara disso.
Ai eu vim embora. Tomei o remédio que ele passou e me senti melhor na hora, cheguei no Abunã eu digo: eu vou é pro garimpo, eu tenho que garimpar porque aqui não tem ninguém pra me dar dinheiro. Eu ainda passei um mês no garimpo daí em diante danou uma febre, mas uma febre sem jeito! Eu não podia mais trabalhar, ai eu resumi tudo que tinha feito, apurei o dinheiro e vim me embora pra Porto Velho.
Chegou em Porto Velho não procurei o Oswaldo Cruz, eu me hospedei numa pensão. Passei um mês todinho tomando soro, gastei todo o dinheiro e fiquei zerado. Ai não tinha outro jeito, procurei um médico nesse Oswaldo Cruz e encontrei o Dr. Jadir... na época era o melhor médico que existia aqui em Porto Velho. Ele me perguntou se eu queria vir pro vinte, pro hospital das freiras que lá eu me trato e fico seguro. Eu pensei: Meus parentes estão todos fora e conhecimento aqui eu não tenho. Ai ele me colocou aqui.
Cheguei aqui no dia vinte e cinco de setembro às cinco e meia da tarde. Nesse tempo quem tava aqui era a irmã Rosa, a irmã Josefa, a irmã Dolores e a irmã que o carro matou não lembro o nome dela. Essa vez que eu fiquei em tratamento eu piorei, piorei tanto que me botaram no hospital São José. Passei o mês todinho tomando soro e só depois de um mês aplicaram sangue. Todo santo dia que Deus dava a irmã mandava alguém me ver... um das seis da manhã às seis da tarde e outro à noite. Depois a irmã me trouxe pra cá e eu me tratei. Senti que estava ficando bom e comecei a ajudar aqui trabalhando e tudo.
Na eleição de oitenta e dois eu fui votar, cheguei cedo na cessão vi aquela fila medonha e corri pra cabeça da fila, ''eu vou entrar lá que eu saio primeiro e vou embora mais cedo''. Quando o juiz chegou não tinha fiscal ai ele me chamou e disse pra eu ficar trabalhando de fiscal. _Eu não posso! Eu sou doente e estou internado no hospital assim, assim, assim_. Ele olhou pra mim e disse que eu tava sonegando o serviço. _Eu tô falando o que eu tô sentindo, o que eu sou e aonde eu estou_.
Ele ficou nervoso disse que eu não apresentava doença nenhuma, se eu sonegasse o serviço eu ia votar por derradeiro, meu título ia ficar preso e eu ia ser processado. "Vai faltar o serviço público por danação?!!"
Não... infelizmente não tem um médico que trata de mim aqui agora_. Eu fiquei... e quando foi meio dia ele perguntou se eu não ia almoçar eu já não lhe falei que eu não tenho onde almoçar, que eu moro numa Comunidade? Ai ele mandou buscar o almoço pra mim e veio carne de porco, uma mistura tão medonha que quando eu vi aquela carne pensei: "se eu não piorar dessa vez chego perto." Comi aquela comida e às cinco e meia da tarde eu já tava que não aguentava mais de dor.
Olha, eu não tô mais aguentando!
Eu tentando falar e ele me mandando ajudar na vigília das urnas, ele não acreditava porque tava me vendo bonzinho ali. Ai eu me desesperei Não senhor!... não vou fazer porque eu não tô em condições... estou me sentindo mal! Você tá achando que eu tô bom mas eu não tô!
Nisso chega o Dr. Macário, conversei com ele e só me liberaram depois que ele aprovou. Ai vieram me deixar, quando cheguei acolá na entrada dos periquitos eu me enganei, pensando que era a entrada daqui e disse já dava pra eu ir de pés, são mais ou menos quinhentos metros da estrada até a Comunidade. Eu entrei um pouco e percebi que não era a estrada ai vim de pés. Cheguei aqui onze horas da noite as freiras estavam me esperando na beira da estrada.
No outro dia eu fui trabalhar não aguentei e me internei. Eu passei um ano deitado em cima duma cama quiném uma tábua, quem mexia comigo pra dar banho, pra botar comida eram os outros. Paralisou tudo de uma vez em mim. E as freiras em cima e era remédio e mais remédio. Veio o Macário, o Dr. Ricardo e outro médico; eram três médicos por semana e eu morto, só mexia a língua. Até que foi indo e o Macário me disse: "olha eu vou te deixar estorar todinho ai depois vou te passar um remédio e tu não vai ter arriação nunca mais". De fato que aconteceu isso mesmo.
Quase morri... Fui operado porque deu abcesso dos dois lados, (2) deu muito pús e muito sangue depois eu levantei e não senti mais nada. Fiquei trabalhando até o dia que levei uma furada de prego nesse pé, ai esculhambou tudo de novo. Fui pra Rio Branco passei quatro meses e pouco me tratando lá no Acre ai voltei e tornei a ficar aqui internado ai operaram esse pé. A perna direita já foi operada quatro vezes, só por causa dessa furada do prego depois eu fiquei bom. Agora por por azar quebra essa perna aqui no femo. Da bacia pra baixo é só platina, nessa quase que eu vou também.
Eu sofri muito aqui, mas como o tratamento é bom demais e elas cuidam muito bem da gente... dependendo da pessoa não pisar na bola. Porque muitos que bebem e os que fazem bagunça elas mandam embora mesmo. Eu nunca pisei na bola com elas, trabalhei com elas aqui muito tempo e elas gostam de mim. Elas não me mandam fazer nada, eu faço quando eu quero, minha vida é muito complicada sobre essas coisas... antes disso eu fui mordido de cobra e o meu corpo foi envenenado de todo jeito; fui mordido por um cachorro doente e agora tenho passado meio apurado com essa perna.
Essa perna foi quebrada através de uma brincadeira: eu tenho muita cossêga e a pessoa não pode chegar perto de mim e fazer cossêga. Nesse dia eu já tava com a perna torcida, doía os nervos da perna e eu não podia nem calçar o aparelho por causa do ferimento. Fui pro restaurante ai o cara chegou, me cutucou e fez uma cossêga. Lucivaldo não faça isso pelo amor de Deus, eu tô com a perna que não aguento!
Quando ele entortou acho que eu fui fazer força, dobrei a perna e machuquei a bacia. Fui operado no dia seis de Outubro. Fora isso não tenho o que me queixar. Aqui é muito bom; como eu disse nunca pisei na bola, nunca andei bebendo cachaça e nunca gostei de bagunça. Porque quem bagunça aqui elas manda embora mesmo. Não tem boca não, são muito boas mas tem essa parte ai. Se não fizer assim a coisa vira bagunça e eu não tenho nada que reclamar.
Só tem uma coisa que eu tenho muita... é vontade de ir embora. Por que faz muitos anos que eu não vejo meus parentes, tá com trinta e poucos anos que eu vim e eles ficaram no Ceará. Eu não sei nem se estão vivos, ainda deve ter algum irmão vivo, só os pais é que fica meio impossível. Eu sou o filho mais velho e vou fazer sessenta anos no mês de maio. Minha vida foi muito complicada. Depois que eu sai de casa eu viajei o mundo inteiro: eu conheço Peru, a Venezuela, uma parte da Colômbia, conheço a Bolívia, Paraguai. Eu mexi com garimpo e andava por todos esses lugares. Nunca me dei mal em canto nenhum, todo canto que eu chego as pessoas são boas comigo. Eu sou muito brincalhão, gosto muito de brincadeira agora quando as pessoas não gostam eu respeito. Tanto faz ser menino, como velho ou novo, quem quer que seja eu respeito.
Porque a minha mãe sempre dizia: "o respeito cabe em todo lugar" eu acredito que seja. É chato você tá conversando com alguém ai chega lá na frente a pessoa vem dizer: "cê tava conversando com aquela pessoa? Aquela pessoa é uma pessoa errada que nunca dá importância pra nada." Eu não gosto desse tipo de coisa. Eu gosto de aonde eu passar uma vez eu poder voltar duas ou três vezes; porque tem algumas pessoas que passam por um lugar e não pode mais voltar naquele lugar... eu tô muito bem desse jeito.
A única coisa que eu tenho comigo é fumar; elas tem pelejado pra eu deixar de fumar mas eu não deixo. Sou católico mas não sou de ir na igreja. Elas implicam comigo porque eu quase não vou a igreja ai eu digo: eu vou sim, eu não sou é de tá todo dia lá na porta. Rezo, tenho minhas orações e acredito que Deus existe, porque se não existisse nós também não existia na terra.
Aqui a única vontade que eu tenho é de ir embora e não sei se vou, se eu for embora é de uma vez. Eu tenho que ver se eu encontro a minha família... Qualquer um deles. Eu acho meio difícil encontrar pessoas que sejam melhor que as irmãs. Tem uma que já sentou comigo pra escrever pra minha família e eu não quis.
Eu tenho o endereço completo, eu morava numa propriedade e isso não acaba nunca. Eu acredito que ainda tenha um irmão vivo, um sobrinho pelo menos. Quando saí de lá em sessenta e oito eu tinha dois irmãos que não me conheciam um era pequenininho e outro não tinha nem nascido, só quem me conhece são meus irmão mais velhos: uma irmã e um irmão. Talvez não conheçam mais por que quando eles me viram eu era bem mais novo, agora eu tô bem velho e pra eles conhecer é difícil. Dá muito trabalho pra eu chegar junto deles, conversar e dizer quem eu sou. É preciso buscar as lembranças lá de baixo até chegar aqui em cima pra eles saberem que sou eu.
As vezes eu fico triste porque a gente engole coisas de certos companheiros apulso, como essa perna; se eu pudesse adivinhar ou sonhasse um dia que foi maldade ...não sei o que ia acontecer com essa pessoa mas pro inferno eu tenho certeza que ia. Até aquele dia tava tudo muito bem, depois disso foi o maior desgosto da minha vida. Vejo que o cara não fala mais comigo, eu fico pelejando com esse pé, aguentando tudo sozinho e aperriado pensando que isso foi de propósito.
Se acontece uma coisa entre eu e você e era uma brincadeira, você não vai ficar intrigado por isso, você me ajuda no que puder. Ele não me ajudou. Eu gastei mais de três mil reais com essa perna e todo mundo me dizia pra eu falar isso com ele... mas não sei não... Dizem que tudo que te fazem de ruim entrega pra Deus, porque Deus sabe o que faz, se é ruím entrega pra ele se é bom entrega pra ele. Isso não tá certo não. Eu acho mais certo a vingança! Sei que eu tô errado... mas se eu puder me vingar, não despenso ninguém! Respeito todo mundo mas se a pessoa me fizer um mal e eu não apagar o mal que ele fez... ele se lasca comigo, porque eu tenho a natureza ruim demais.
Tanto faz ser homem como mulher eu respeito, mas eu não gosto de coisa errada em cima de mim, isso me dói muito. Eu não posso sair pra canto nenhum por causa dessa perna, quando eu saio fico com medo e sou humilhado por certas pessoas, não por todos, mas muitas pessoas humilham agente e eu não gosto disso. tem lugares que tem muita gente boa mas um bocado de gente é péssima: pela parte das freiras não, elas são boas, mas tem uma parte dessa gente que parece que não. Não sei não, só Deus vai saber. Porque nem agente sabe da gente direito.
O dia de hoje quando é a tarde agente sabe se passou bem, mas o dia de amanhã ninguém vai saber como é que vai passar. Tem gente só pensa no presente. No que vai acontecer ou deixa de acontecer não tá pensando. Eu tenho encontrado muita gente boa porque já andei muito, conheço muitos lugares e nunca me dei mal em canto nenhum que eu tenha chegado.
Toda vida eu soube me defender dos maus elementos, menos da doença. Dizem que quem faz a doença é Deus, mas pode ser ruindade da gente. Dizem que só pode acontecer através dele. Se a pessoa nasce com um destino, aquele destino tem que ser cumprido, tem que cumprir direitinho, mesmo que fuja pra dentro de uma garrafa mas dentro da garrafa acontece o que é de acontecer, disso aí ninguém escapa.
A vida da gente não é fácil, é muito doce; é boa demais. Mas é preciso saber aprumar o pé na estrada, se não tá perdido. Eu não vou conversar mais do que isso porque não adianta eu explicar o começo da minha vida depois que eu saí de casa.
Filho de Adolfo Leopoldo F. e Doris Emma, nascido em Porto Alegre, no dia 15/11/36. Atualmente é viúvo já foi funcionári público, redator e técnico em laboratório.
Eu vou dizer algo que fale mais ou menos sobre a vida: Se nós fossemos analisar friamente, o que que ela pode representar ela se tornaria uma uma coisa incógnita, difícil de se chegar a conclusão. Tem muita gente que sabe viver a vida e outros que não sabem viver a vida, tem aqueles que sabem viver a vida melhor do que os que sabem viver a vida. Por isso eu digo sempre que a vida é um mistério. Tanto ao nascer como ao morrer será sempre um mistério.
A vida tem momentos difíceis, alegres e todos nós passamos por essa mesma situação. Eu acredito que nós temos que tentar sempre viver da melhor forma possível, mesmo com problemas, dificuldades, sofrimentos e dores. Nós temos que saber vencer os obstáculos mais difíceis da vida e tentar estampar na face, no jeito de ser, de proceder, no quotidiano aquele sorriso. Temos que cativar amizades e deixar de pensar besteira.
Como teve esse colega que convive aqui conosco, não sei porque razão levou-se ao suicídio, enforcando-se... não sei por que fraqueza. Muitos acham fraqueza espiritual, eu já acho o contrario, um homem que tira a sua própria vida é um homem de muita coragem, ele pode ser uma pessoa mentalmente fraca mas eu ainda não acredito por que ele preparou tudo pra poder tirar a própria vida.
Eu não tenho essas coisas comigo, eu acho que a pessoa deve lutar, principalmente quando é temente a Deus e sabe da existência dele. Acreditando piamente que Cristo esteve na terra, morreu e ressuscitou. Que era filho de Deus respeitado e mesmo assim sofreu muito mais do que nós todos juntos. Nós também temos que ter a mesma opinião e a mesma firmeza.
Eu vou chegar mais próximo do que a vida pode representar: Eu era uma pessoa totalmente diferente, vivia a minha vida numa situação equilibrada. A pessoa que vive numa situação de lazer vive mais afastada de tudo que possa nos trazer um sentimento mais humano. Se você vive uma vida boa e sem problemas financeiros você acha ou acredita quase que é absoluto em sua existência, você não sente dores, não percebe o sofrimento de ninguém e você estando bem é o que importa o resto que se dane.
Eu acredito que são nos momentos de doença e sofrimentos que a pessoa se aproxima cada vez mais de um sentimento humano, se você sofre você sente o sofrimento do outro. Isso nos une e faz com que nós nos compreendamos melhor.
Quando acidentei minhas pernas nessa queimadura vim pra cá fazer o tratamento e passei um ano internado, perdi relativamente uma terça parte do que ainda me restou devido ao tratamento e a morte de minha esposa.
Ela ficou um ano, um mês e oito dias hospitalizada com câncer no seio. Gastei muito com esse problema, fiz 25 cirurgias vasculares na minha perna e saí daqui dito como recuperado. Comecei a batalhar novamente ai a perna começou a arruinar e quando eu retornei constatou-se que era Hanseníase. Fiquei mais três meses vendo amigos e colegas morrendo aqui dentro.
A partir daí compreendi cada vez mais o significado da vida, percebi que não é o orgulho, o préconceito e a vaidade que nos livra da morte. Cheguei a conclusão de que quando a vida surge ela desaparece. Precisamos tratar todo mundo com mais amor e mais reconhecimento, sem esquecer o quanto é difícil manter equilibrada uma situação da própria vida.
Aqui dentro o tratamento é bom, o viver aqui é sadio e puro. O povo é bem tratado e bem alimentado, mas esse cotidiano não deixa de ser um sofrimento, por que existem as pessoas boas, carinhosas e também existem pessoas ruins, que procuram destruir a gente aqui dentro. São pessoas que mesmo aqui dentro não aprenderam a valorizar a própria vida. Não tem amor na vida ou são pessoas despeitadas ou sabem que estão completamente arruinadas em situação financeira ou então de saúde.
Muitos aqui dentro não tem mais perna nem braço e querem ser mais do que os outros por uma questão de orgulho. Eu não tenho magoa, nem tenho rancores dessas pessoas... eu tenho é pena, são uns pobres coitados, eles tão se destruindo mais do que as pessoas que estão tentando destruir.
Tem pessoas aqui dentro que já foram mandadas embora pelas freiras por calunia, fofoca e mesquinhez. Tudo que falam pra elas, elas acreditam na pessoa que vai fazer a fofoca. Aqui muitas vezes o senhor não tem condições de se defender da fofoca. Eu aprendi a conhecer a vida aqui dentro quase como se fosse um encarcerado, um prisioneiro que não pode falar contra nada, que tem que obedecer o ritmo militar, tem que ser aquilo que elas querem, não o que a gente quer. Aqui nós vivemos emprestados, é uma vida boa num sentido e bastante chocante de outra forma. As irmãs em parte são muito boas, você pode fazer mil coisas certas que elas te levam na palma da mão, mas fez alguma coisinha errada perdeu aquelas mil que você fez de bom.
Muitas vezes eu me pergunto e penso profundamente nesse sentido que você quer chegar sobre experiência de vida, o que que é a vida? Quem somos nós na vida? Só Deus sabe. Eu tenho a convicção de que nós passamos emprestados nesse mundo para cada um cumprir sua tarefa.
Acredito que realmente existe a ressurreição e que nós temos o direito de viver uma segunda vida mais calorosa junto de Cristo. A primeira é uma experiência de vida pra você demostrar ao criador que você é capaz. Eu acredito que cada um opta pelo caminho bom outro pelo caminho ruim. Uns estão com Deus e outros estão contra Deus.
A vida teve início dessa forma e vai terminar da mesma forma. Só Deus tem condições de nos dar uma vida diferente. Ele não nos obriga a fazer coisas que ele quer, nós temos que escolher o bom e o ruim. O sofrimento de cada um é uma coisa que a própria natureza da vida nos trás. Tem pessoas que até sem sofrimento ficam se mal dizendo, chorando as mágoas de uma dor, enquanto na verdade a dor que eu ainda acredito é um alerta na vida da gente, um despertar da vida difícil, da vida perigosa para a vida sadia O que você sente no corpo é um alivio pra alma.
Nos próprios mandamentos Deus diz que não quer ver ninguém sofrer, ele não criou ninguém a sua semelhança pra viver sofrendo, machucado e mal tratado. Alguma razão nós temos para ter que passar por esse caminho. Ou nós merecemos porque fizemos alguma coisa de errada no passado e estamos pagando agora, ou nós temos que passar por isso pra ver se temos força espiritual para continuar com Deus e não nos afastar dele por que ele nos puniu.
Eu sou da teoria de que o bom pai quando bate no filho não é por que tem raiva do filho, pelo contrario, é por que ele o ama, quer consertar o mal pela raiz e ver o filho bem. Eu creio que Deus tem esse dom e essa vontade.
Não adianta a gente fazer uma narrativa do que é a vida. Uns pensam que vivem a vida mais nunca viveram realmente a vida, eles vegetaram a vida, cheios de vícios pecaminosos e farras.
Muitas vezes a gente vê a pessoa que rouba, mata, assalta e vive sorrindo e brincando. Nós não temos que ter inveja daquilo, ao contrario eu acho que essas pessoas não sabem o que será delas depois da morte. O próprio Diabo pode proteger os que estão ali do lado dele com vida boa. Mas quem sofre aqui na terra terá sua gloria após morte.
Eu ainda estou resignado, estou aqui dentro me tratando pra ver se eu tenho condições de melhorar esse estado de saúde pra batalhar novamente, lutar e vencer na vida. Não quero enriquecer, é lógico que eu quero ter condições de viver a vida mas sem pensar em coisas indecentes, imorais, nem em pegar o que é dos outros. Quero ganhar o pão de todo dia de acordo com justiça do homem e ter uma vida mais folgada sem ficar todo tempo naquela agonia sem saber o que comer amanhã.
O que pode acontecer a gente não sabe. No presente a gente lembra do passado mas do futuro não se sabe o que será. Eu sei que remando a vida e sabendo o sábio pensar já é uma grande coisa que a pessoa faz. Quando a pessoa não acredita que a vida é um dom de Deus e não respeita ela... ele simplesmente não vive, não sabe viver a vida e também não sabe morrer dignamente.
Eu por exemplo não tenho medo e nem receio da vida ou da morte. As vezes eu sei que tenho que passar pelo que estou passando até o momento. A situação vai melhorar, essa enfermidade não pode ser uma eternidade, ela tem que melhorar.
Da morte eu não tenho receio por que não trilho o caminho da vida perigosa e pecaminosa, tenho certeza que no dia que ela me convidar pra me levar ela vai me encontrar com o espirito preparado, posso não ser puro, ninguém o é, mais tenho certeza que uma grande parcela do meu espírito está com Deus, isso é uma coisa que me consola muito.
Vivo com minhas orações cotidianas, brinco com meus colegas aqui de dentro e não levo a vida com maldade, pra mim essa é a vida. Não invejo nada de ninguém. Veja o Catolé que a pouco entrou aí com 99 anos de idade, brinca com os outros... como se fosse uma criança de 15 anos... por que ele vive uma vida liberta, não tem opressor nem nada que faça com que ele mude aquela personalidade. É uma idade bastante avançada, mas uma idade que ele venceu, é um caminho de inocência sem ter maldade com ninguém. Eu acredito que ele soube e continua sabendo viver porque não se preocupa com nada. Acho bonito esse modo de vida, não invejo só acho bonita.
Se todos pudessem seguir o mesmo caminho a própria vida seria um mar de rosas, ela foi criada pra ser esse mar de rosas. Fomos libertos do pecado pela morte de Cristo mas nós continuamos pecadores. Quotidianamente a gente peca, a gente erra em gestos, palavras, pensamentos... mesmo orando diariamente e nos desculpando dos erros cometidos somos pecadores, mas de certa forma podemos sempre ter um alívio junto ao pai.
Sobre a Comunidade não posso falar muita coisa do início porque tem alguns moradores mais antigos que contam coisas parecidas. Muitos deles eu vi morrer, presenciei os últimos suspiros... você tá conversando com a pessoa e de um momento pra outro a pessoa desaparece... a gente se choca um pouco mas temos que compreender que todos nós vamos passar por esse caminho, não adianta se penalizar pela pessoa.
Eu sei que por uma questão de princípios cristãos ou religiosos fazem oração e missa do sétimo dia mas isso é ilusão, quem morreu em pecado não tem ninguém que o salve, nós mesmos temos que procurar a salvação, depois de morto não adianta. Pode botar cinquenta orações, cinquenta missas pra rezar que não adianta. Se merecer Deus sabe, não mereceu Deus condena.
Leio a Bíblia quotidianamente e estou fazendo uma tradução do italiano bíblico para o Português. Não sei o Italiano mas pelo que eu capto sei aonde se encontram na Bíblia. Faço isso por uma questão de passa tempo, pra preencher o vazio é quase que um quebra cabeça ou palavras cruzadas.
Aqui eu pergunto a muitos sobre o que a turma faz pra preencher o vazio e todo o santo dia é a mesma ladainha: levantar, tomar café, vir deitar, esperar a hora do almoço, almoçar, sentar aqui fora e só. Deito todo o dia dez onze horas, quando o pessoal fica assistindo um filme ou alguma coisa, então eu fico lá até fechar essa televisão.
Todos os dias às cinco horas eu estou de pé limpando e varrendo aqui fora, tomo meu café e continuo a minha tarefa até terminar. Nos momentos de descanso eu durmo, leio e quando canso o corpo repouso um pouco e assim é quotidianamente. Hoje se me perguntam: “tu viu aquilo?” _Não, eu não vi nada por que eu fico lá dentro do meu quarto_.
Isso me alivia bastante por que eu saio de perto daquela maldita língua que é o chicote da vida e a desgraça de cada ser humano. A língua é o órgão mais perigoso do corpo humano e se soubessem o significado da língua, não usariam ela pra maldizer e criticar as outras pessoas. Deus condena a fofoca e quem não lê a Bíblia ou não sabe o significado do uso da língua.
Existe uma charada no meio desse ditado que fala de um homem que era idoso mas usava um cabelo comprido, ele era um grande professor. Um dia encontraram ele no elevador e disseram: “com licença moça...” quando se voltaram e viram que era o professor perguntaram: “Professor, qual é o significado da língua?” Então as atenções voltaram-se pra ele, e ele disse, _Olha, a língua é um órgão sexual que nós, os antigos usávamos para falar._
Com isso ele deu um tapa de luva naquela piadinha, que quiseram fazer com ele, se todos pensassem e agissem assim quem sabe eles não usassem o poder de olhar o outro e sem criticar ou ridicularizar o outro. Nós podemos até olhar pra outra pessoa, é um direito e um dom que nos assiste, o que nós não podemos fazer é criticar a vida de ninguém. A matéria bíblica que não adianta você querer tirar o cisco do olho do teu irmão se tem uma trave dentro do teu.
Eu creio que vou permanecer aqui dentro mais alguns meses, mas no dia que eu sair daqui, como já houve casos de eu sair e retornar, sempre vou ter convicção de sair com os direitos de retorno garantidos pelo meu proceder aqui dentro. Se um dia eu precisar retornar não quero ter uma ficha suja com as irmãs. Muita gente faz as coisas erradas pedem pra voltar e elas se comovem, tem muitos aqui que já foram mandados embora porque o proceder era péssimo, depois voltaram por uma precisão e elas perdoaram e aceitaram eles aqui novamente.
Eu acho ridículo e vergonhoso a pessoa ter que se humilhar dentro do seu próprio erro. Errou porque quis ser importante e aparecer, depois de tudo se humilha pra poder reconhecer seu próprio erro. Nós temos que pensar muito antes de abrir a boca pra pronunciar uma palavra. Eu estou falando agora, mais eu não sou uma pessoa de tá conversando muito, eu ainda acredito naquilo que um mestre do seminário nos dizia: “Quem pouco fala e muito ouve se torna uma pessoa sábia, quem muito fala acaba falando besteira, e quem nada ouve nada aprende”. Na verdade a pessoa que não ouve e só quer falar não aprende nada, e quer ser um sábio quando na verdade ele é um leigo.
E tem passagens em torno da vida que a gente não deve esquecer. Quando tinha 12 anos eu lembro que um padre fazendo um pontinho com o giz na lousa perguntou: “o que que vocês estão vendo?” _Um ponto_ E ele disse: “Vocês são bons observadores, o ponto que eu fiz no quadro foi um borrão, isso vocês observaram por que vocês viram, mas tudo de bom que vocês aprenderam através desse preto do quadro vocês não lembram”.
Na realidade tudo que mancha aparece e aquilo que não deixa mancha esquece. Nós temos muita sabedoria esquecida, muita coisa a gente poderia levar pra quem ainda é jovem. Hoje em dia você quer orientar e ajudar os jovens e não dá porque parece que eles já nascem meio insuportáveis. São crianças mal educadas e mal doutrinadas, resmungonas cheias de palavrões na boca. A educação está completamente mudada.
Isso que eu lhe narrei pode ser a vida. No meu modo de pensar e interpretar o sentido da vida não deixa de ser isso. Lutar pela vida, lutar na vida e lutar com vida, não significa mais do que a vida. Ela é passageira e não adianta a gente querer pisotear o outro porque de uma forma todos somos pisoteados porque temos que prestar contas à alguém.
Se vivermos uma vida mais achegada naquele caminho certo temos a convicção de que um puxãozinho de orelha a gente pega, mas uma peia não. Eu acho tantas doutrinas existentes quando o cordeiro é um só. Se todas elas estão trabalhando com um cordeiro por que tanta desigualdade religiosa? Por que não se unem e ensinam o povo a conhecer o Deus, Só existe um Deus e um filho, pra que puxar pra lá e puxar pra cá se a própria Bíblia diz que só existe uma fé, um Deus e só um batismo?
A bíblia fala que um leve o outro para ser batizado. O crente tem a mania de dizer que já foi batizado pela água, se não for batizado pela água o batismo não vale nada. Esse batismo da água não tem nada a ver com o batizado em nome de Deus. O batismo da água é um batismo de arrependimento, não tem nada a ver uma coisa com outra. Se nós somos batizados e temos os nossos padrinhos, eles automaticamente são nossos tutores, na falta de nossos pais os padrinhos tem condições de nos manter, de nos criar e nos orientar. Esses combates religiosos são todos um atraso de vida. As vezes o semi analfabeto é mais fácil dobrar, ele vai na igreja ai chega outro crente e conversa com ele pra mudar de religião e ele muda.
Quando ele começa a aprender alguma coisinha já quer ser pastor e não tem chance naquela igreja por que lá já tem pastores mais preparados então ele sai daquela religião e entra em outra pra poder pastorear. Tudo isso é vaidade e orgulho, não é procedimento de uma pessoa achegada a Deus. Ele tá subindo um degrau usando o nome de Deus, uma coisa não justifica outra.
Eu fiz um relato mencionando muitas coisas e mesmo que eu seja um pecador eu acredito que sou cem por cento compreensivo com meus próprios erros perante a Deus. Nós não temos o direito de nos humilhar pra homem nenhum. Nós passamos por essa situação por que precisamos de um hospital comandado por religiosas, que são Irmãs. (3) Biblicamente a história condena que o homem seja mandado ou comandado por mulher, por que o homem é o cabeça da mulher. Como Cristo é o cabeça do homem e Deus é o cabeça de Cristo.
São situações destas que faz com que o homem se rebaixe pra uma mulher isso é errado! Por que a própria sociedade permitiu uma coisa que vai contra o principio do mundo e do universo? Quem é que tem razão elas ou Deus que disse que ela tem que ser submissa ao homem? Cabe a ele julgar, não a nós. E daqui dou por encerrado.
Antônio Moura é casado, aposentado e mora na vila de casas da Comunidade. Ele narra sua vida ressaltando a importância do estudo, do trabalho e das boas relações que sempre manteve com a administração dos lugares por onde trabalhou e apresenta sua vida como uma tragetória de vitórias sem aprofundar os momentos difíceis.
Tu quer saber um pouco da minha vida, então vou começar do tempo que meu pai veio da terra dele. Ele casou no Pará com minha mãe e vieram pra um lugar no Amazonas por nome Purus, lá eu nasci. Meu pai era português e minha mãe paraense, ele trabalhava no seringal arrendado, além de mim já tinha mais quatro irmãos. Nós somos cinco irmãos homens e três irmãs.
Trabalhando no seringal ele arrumou dinheiro porque português é sempre mais vivo que os outros, então ele comprou esse seringal. Eu fiquei grande e me formei trabalhando lá mas nunca gostei muito desse trabalho. Quando meu pai morreu nós ficamos trabalhando no seringal, ai eu adoeci e vim fazer tratamento em Manaus, quando chegou em Manaus eu fiz o tratamento da hanseníase e não quis mais voltar pro interior, então meus irmãos ficaram tocando.
Nessa altura eu não tinha pai nem mãe, eu perdi primeiro a mãe e depois perdi o pai. Meus irmãos ficaram tocando e eu sempre ia lá. Eu estudava em Manaus, fiz a oitava série e topei um trabalho na prefeitura. O Teixeira era conhecido do meu pai ai eu peguei um emprego com ele mesmo sem ter idade pra contrato. Nós demos um jeito e eu me contratei e trabalhei quatro anos na portaria.
O dinheiro que nós tinha lá no seringal dava pra manter meu tratamento mas nós somos um tipo de gente que sempre gosta de trabalhar.
Eu arrumei uma esposa e vim pra Rondônia, quando cheguei aqui apareceu aquele concurso, foi o tempo desse dito governador aqui em Porto Velho. Ele me convidou pra trabalhar com ele porque eu já tinha teoria e trabalhava um pouco em laboratório. Eu vim pra cá trabalhar de enfermagem no laboratório, nesse tempo ele já era governo de Rondônia. Ele perguntou pra irmã se eu tinha uma gratificação e ela disse que sim. Ai foi o tempo que o território passou a Estado, eu passei a Federal e a vida foi melhorando. Trabalhei uns quatro anos na enfermagem depois passei pro laboratório. Casei, tive dois filhos com a mulher e em pouco tempo a mulher morreu.
Naquele tempo eu era meio jovem e não podia criar os dois, ai uma colega minha ficou com eles. Ela tem uma loja em Porto Velho, a Jangada que chama, ela criou eles e eles agora tomam de conta dela porque ela já tá velha. Depois de um tempo eu me juntei de novo. Homem não fica só mesmo... então eu me juntei com a paulista, tive uma filha e até agora nós estamos trabalhando. Minha filha mesmo é essa que eu tô com ela, tem dez anos, estuda e está passando todos os anos. Depois que eu me juntei passei dois anos morando no Candeias e trabalhando aqui, depois a irmã me convidou pra eu vir morar aqui, era mais perto do trabalho e isso facilitou.
A vida pra mim não foi difícil porque eu mesmo procurava fazer a vida com o que eu ganhei no trabalho, tive muita sorte por ser uma pessoa bem quista pela administração. Aqui eu faço tudo, trabalho de vigia porque é minha profissão mas eu já trabalhei de enfermagem que também é minha profissão e estudei um pouco de laboratório mas não cheguei a terminar o curso, mas o da SUCAM falta pouca coisa pra eu terminar. Nós temos uma casa no Candeias que eu tô reformando. Eu não tenho quase o que contar da minha vida né...
Tem vinte e oito anos que eu tô aqui em Rondônia. Aqui na Comunidade vai fazer uns vinte e cinco anos. Quando eu cheguei aqui quem administrava esse lugar era um compadre meu... Padre José, ele é padrinho de uma filha minha que nasceu aqui dentro. Ele foi pra Itália e lá ele morreu. Depois que ele foi embora vieram as irmãs.
Foi ele quem começou isso aqui, mas o maior serviço foi delas. Isso aí ninguém tira porque eu tenho conhecimento. Ele começou e elas estão findando. Quando ele chegou aqui eu trabalhava no hospital em Manaus então as freiras de lá fizeram meu atravessamento ligando pra ele e quando eu cheguei ele já tava aguardando a minha chegada.
Quando eu cheguei esse lugar era uma lastima tão grande que eu tava resolvido a voltar. O ambiente que eu tinha lá não era pra comparar com o que eu encontrei aqui. Depois de um tempo ele foi quebrando aquela imagem e começou a melhorar até chegar aqui.
Naquele tempo tinha muita gente aqui mas os funcionários não moravam aqui não, a maioria morava fora. Depois que ele chegou foram mudando as coisas pra melhor. Quando ele saiu daqui as irmãs chegaram então modificou muita coisa. Hoje em dia isso aqui tá um paraíso. Naquele tempo o hospital só atendia hanseniano, agora não, agora é o contrário. Aqui a maioria dos pessoal que tá com hanseníase, só entram pra cá quando tá positivo depois que eles são negativado o tratamento é em casa não existe mais aquele medo. Depois que fica de alta é como outro qualquer faz o tratamento em casa, conversa com o médico, pega a medicação e recebe alta. Quando termina o tratamento tem que parar com o remédio.
Naquela época eles vinham positivos e só podiam receber alta se recebesse algum exame negativo, agora ele entra positivo e o medico dá alta pra fazer o resto do tratamento em casa. A hanseníase é um exame que dá um tipo de globias. Quando o campo dessa globias é fechado dá positivo depois é que vai quebrando o campo, ai vai espalhando aquelas globias até chegar de uma maneira que não exista mais.
Esse exame é tirado do sangue, eu estudei isso, é através de uma linfa que nós temos no corpo. Tu sabe que o nosso corpo não é ressecado porque tem uma linfa né,? Então agente tira essa linfa e prepara o exame chamado bacofopia.
Naquela época eu fazia e ainda faço se precisar porque o tratamento não modificou quase nada. Antigamente não tinha esse tipo de tratamento, ele não tinha sido descoberto. Agora se chega um paciente com o exame bem positivo e feio de cara, ele ainda tem jeito de limpar. Tem um tipo de remédio chamado lamprem, que faz o doente ficar meio roxo. A medicação incrementa na pele e queima deixando uma cor arroxeada, depois a medicação deixa a pele limpinha.
É um combate das globias com a medicação, é isso que acontece quando o bacilo se desfaz, o paciente pode receber alta. O tratamento com o dermatologista passa de um à dois anos, conforme a situação do paciente. Depois ele pega alta e paralisa a medicação. Não pode continuar tomando porque não existe mais globias e nem bacilos para que o remédio se manifeste, então se ele continuar vai atingir outra parte do organismo, é arriscado matar a pessoa porque é um remédio muito forte.
As pessoas chegavam aqui a pé, quem tinha carro vinha de carro, o ônibus não entrava aqui dentro ai o nego reclamava muito pra andar esse pedaço até aqui. Na época do padre entrava tudo a pé, quem tava muito ruim tinha as ambulâncias que eles arrumavam, dos outros hospitais porque aqui não tinha ambulância. Ele mesmo trazia gente no caminhão que ele tinha.
Quando os hospitais não mandavam trazer, ele pegava na cidade e trazia pra cá. Naquele tempo o tratamento era só pra hanseníase depois é que modificou. Depois que foi descoberto a medicação e conseguiram com facilidade pro paciente a ser medicado modificou tudo. Só existe internação hoje em dia quando tá nessa fase que eu falei. Hoje em dia tem muitos doentes de hanseníase que são empregados, uns no quartel e tem outros que são funcionários. Aqui dentro tem poucos funcionários morando, eu digo pouco porque daí do portão pra vila de casas já é meio distante e lá já pertence quase a BR é muito mais longe. Ali na estrada tem um bocado de casa de funcionários aqui dentro tem quatro. Facilita muito morar aqui perto porque quando elas precisam mandam chamar e o pessoal é muito atencioso no trabalho fora do horário.
Os moradores do pavilhão a maioria é aposentado, são pessoas de idade, dá dó porque eles vem de fora sem ter e sem saber onde moram. A pessoa velha faz só sofrer. As irmãs olham esse ponto de vista ai inventam seja o que for pra eles fazerem. Arranjam sempre um trabalho leve que não prejudique a saúde deles. Eles estão velhos e já deram o que tinham de dar no serviço, hoje em dia estão cumprindo o fim dos dias e a esperada hora. Aqui todos são unidos, as vezes até eu mesmo brinco de dominó com eles. Eles jogam dominó todo mundo junto e as vezes eu fico até a boca da noite quando fico de plantão. Quando termina meu plantão as vezes eu vou para aquele barzinho e a gente se diverte com eles.
As vezes vem uma pessoa fazer um tratamento diferente e se for uma pessoa carente a irmã bota lá nos quartos enquanto termina o tratamento. Não tem contágio de nada. Vem gente de Ariquemes, Jaru, Ji-Paraná sem condições de voltar no mesmo dia, então é dentro de um controle que ela faz isso. A gente que é funcionário enxerga que isso é um termo de bondade só está faltando um pouco de apoio do governo, os outros até que ajudavam mas esse agora... No começo eu acreditava muito nele agora eu desacredito.
Um ambiente como esse aqui era pra ajudar bastante mas não tem esse tipo de ajuda, principalmente agora que a gente sente que a irmã tá meio aperreada. Ao invés de dar as coisas ele fez foi tirar o pouco dos funcionário que tinha naquela demissão que ele fez. Eu não sei se os médicos que vem pra cá são contratados por ele mas eu acredito que sim. Agora os médicos que trabalham aqui, trabalham bem e são atenciosos. Você pode chegar nos outros hospitais que os médicos não lhe olham e já vão saindo, a Dr. Katsuê está atendendo até depois do expediente e não vai deixar nenhum paciente sem consultar.
Solteiro, católico, nascido em Água Verde-Ceará no dia 24/12/1914. Filiação: José Correia Sobrinho e Maria de Nazaré da Conceição.Seu Celso faleceu um ano depois de ter cedido sua entrevista. Naquele momento o mesmo era voluntário na vigilância do pavilhão, já foi seringueiro e garimpeiro é um dos primeiros moradores da Comunidade, que poderia nos contar muito sobre a vida dos doentes antes da chegada das irmãs mas organiza sua narrativa priorizando as viagens onde estão presentes as aventuras no período da 2ª guerra, sua vida no seringal e as lembranças da famíla que deixou no Ceará.
Depois que me operei fiquei com a oiça curta: As vezes eles estão jogando dominó, sinuca ou baralho e eu só vejo eles conversarem mas não sei o que tá se passando. Só me lembro algumas passagens de viagem e quero contar a minha saída de Fortaleza.
Nós saímos de Fortaleza às seis horas da manhã comboiado em três navios: Era um tempo de guerra e ninguém conversava, ninguém fumava, nem assobiava nem nada. Os navios não davam sinal de um para o outro por meio de telefone, porque o submarino tava em baixo pegando tudo, então o sinal era por bandeira.
Saímos de Fortaleza viemos pra Maranhão, entre Maranhão e Fortaleza tem um rio grande chamado Camboci, ali entrou um navio pra ir deixar uma parte do comboio numa cidade distante, e nós seguimos pra Maranhão em dois navios, chegando lá ficou outro navio descarregando e carregando. Nesse tempo de guerra nós entramos pra Belém só com um navio sem ter o resto comboiando ele.
Em porto Salina era canal dos alemão e quando chegamos lá tinha um submarino com o cano de fora, ai o comandante do navio avistou isso com muita distância e arriou o ferro, mas não disse o que era nem o que aconteceu porque viu muitas famílias que podiam se alarmarem e caírem n'água. Lá nós passamos dois dias e uma noite.
No outro dia de manhãzinha o caça-submarmino, esse navio que tinha ficado pra trás chegou. Foi só ele chegar o submarino correu com medo dele: o caça-submarmino por cima e o submarino por baixo d'água. Aquele monte de gente tudo atracado com salva vidas dentro do navio; ninguém via conversar um com o outro, ninguém assobiava nem nada, tudo quieto! Nós tudo esperando o pior. Minha rede vinha atada perto dos tambôs de óleo e eu não tirava os olhos dos tambôs, "qualquer coisa aqui; cai um tambô desses dentro d'água; eu avôo em cima". Já estava perto da praia e de longe eu via uma casa que era só pra telefonar e receber telefonemas de algumas partes.
No outro dia nós entramos pra Belém e chegamos lá oito horas da noite. Desde ai nós vinha passando uma fome danada: o curral do navio vinha cheio de gado só pros arigó. Mas o miserável que vinha de chefe vendeu o nosso gado todinho e nós vinha comendo só feijão preto com aquela carne de jabá azul, quando dava aquele vento a farinha voava todinha. Quando chegamos em Belém saímos do navio, fomos todos pra vacina, ai polícia arrodeou e já foi levando o chefe, depois disso ninguém viu mais ele.
Nós já tinha falado com o comandante o que vinha acontecendo e ele telefonou pra polícia de Belém. E nós tudo se acabando de fome... chegando lá vimos aquele café de manhã reforçado... e aproveitamos, quem que aguentava?
Depois da injeção e tudo pegamos aquela varenga Cruz do Sul e viemos pra Itapanã. Lá nós passamos dezoito dias e todo dia tinha que cantar o hino nacional com aquela mesma mocutazinha que soldado usa: uma mochila, rede, alimento, prato, colher, tudo a gente tinha que trazer ali dentro. Quando terminava dali nós ia tomar café, depois ele levava nós pro armazém, dava meia barra de sabão, um pacote de bolacha e uma bola de futebol pra nós ir brincar; naquele tempo nós tudo era rapaz novo, o mais velho era eu de trinta e um anos, hoje tá tudo velho e acabado.
Lá em Fortaleza me deram aqueles trajes de soldado: calça, camisa americana de pano grosso e chinelo, eu não queria usar aquela roupa velha; vendi tudinho por dezoito mil réis e fui bater em Pinheiro. Nesse tempo eu era um rapaz novo, gostava de beber, mas coisa pouca. Quando tiramos uma licença o homem veio avisar: “cuidado não vão beber!” o engraçado é que nós queria sair só pra beber. Chegamos em Pinheiro onze horas, dia de Domingo o comércio fecha às onze e o rapaz não queria vender, ai nós dissemos assim: "nós compramos uma garrafa de cachaça e levamos pro banheiro, um toma, sai e vai o outro; ai ele disse: "é pra beber tudo aqui”, pegamos a garrafa de cachaça e fomos embora.
Quando saímos encontramos um velhinho e perguntamos dele aonde é que vendia bebida, “a essa hora aqui não vende bebida em canto nenhum mas naquele quintalzinho tem um senhor, vocês entram pelos fundos que ele vende cachaça lá na cozinha”. Ai nós entramos e perguntamos se ele vendia alguma coisa, “vendo cachaça, mas é pra beber aqui!” Ai compramos uma garrafa.
O que eu tenho pra contar de lá pra cá é a experiência de todos os que vinham comigo. O medo do navio ser bombardeado é o mesmo que esperar um tatu numa armadilha;. eu não tirava os olhos dos camburões, se eles caíssem n’água eu ia atrás... Quem sabe ele me jogava naquela praia não ficava muito distante. Quatro meses antes de vir em Pinheiro passamos um bocado de dias em Ponta Pelada, é um pouso dos arigó, uma vila cheia de casas parecidas igual essa Comunidade aqui.
Depois que saí de casa só voltei uma vez; eu era muito querido das minhas irmãs e da mamãe, ela sempre confiou em mim. Dia de Domingo eu só saia até a boca da noite, daí em diante eu não saia de casa, me sentava na calçada e ficava conversando com ela até nove horas. As vezes ela tinha raiva de mim porque se acontecia qualquer besteira na rua e ela perguntasse: “ o que houve na rua?”, eu dizia: _nada, tá tudo em paz_! Mas as vezes eu via aqueles cachaceiros querendo brigar na rua. Eu nunca gostei de contar essas coisas pra ela.
Meus irmãos chegavam mais tarde que eu, um chegava dez horas da noite o outro meia noite, era assim. (4) Nossa casa era grande com aquelas portas de ferrolho de empurrar pra cima, com isso nasceu um caroço na palma da mão da minha mãe, foi sajado e ela ficou com a mão seca.
O que eu tenho pra falar é que depois de tá dentro do seringal a gente esquece muitas coisas que a gente vive por aí. Passei oito anos sem vir a Porto Velho e sem saber pra qual lado ficava, entrei e saí por Calama. Trabalhei oito anos com muita vontade de voltar. Arrumei sessenta e nove contos que já era muito dinheiro e o patrão ainda interou os setenta.
Baixei pra Calama e de lá peguei o navio pra Belém e dormimos na bahia de Tapajós. Cheguei às onze horas em Belém mas o navio tinha saído às dez; se nós não tivesse dormido lá na bahia de Tapajós tinha pego o navio no mesmo dia. Passei quatorze dias indo na agência, cheio de dinheiro no bolso e nada de ter navio pro Ceará. Ai disseram: "tem um navio do sal que vai pra tutóia, é um navio cargueiro mas dentro é decente".
Peguei ele pra Maranhão, de Maranhão fui de trem pra Terezina e no outro dia peguei o ônibus pra Fortaleza. Cheguei meio dia numa pensão de fronte à Santa Casa, ali eu conhecia tudo, peguei um carro que naquele tempo ainda era jipe, fui pra Porongaba, pra casa dum irmão meu, porque todos tinham se mudado lá pra perto da fazenda do PC, ai ele foi me deixar em casa.
Eu disse "ó, quando eu chegar diferente lá em casa vocês não vão dizer que é eu não". Mas quando o carro buzinou, a primeira que botou a cabeça do lado de fora da janela foi minha irmã e me conheceu logo: "mamãe é o Celso!" Virgem... e aí pronto! Depois de oito anos sem ir em casa fiquei lá um bocado de dias e dessa vez pra cá não voltei mais. Mandava dinheiro e as vezes vinha dinheiro que eu ném tava precisando, mas pensavam que eu tava sem dinheiro ai mandavam e eu devolvia, eu já estava firmado o que eu tinha dava. Eu passava muitos dias no mato ai quando eu cheguei no Café Santo meu patrão disse que tinha uma carta pra mim, eu procurei essa carta e não encontrei, então escrevi outra e a carta voltou. Eles tinham se mudado e mandaram o endereço na carta que sumiu...
A gente passa muitas coisas nessas viagens perigosas. O camarada que não sabe andar acaba logo, toda vida eu sempre gostei de respeitar todo mundo tanto os novos como os velhos; pequenos como os grandes; gostei sempre de andar direito. Adonde eu tô sempre deixei a porta aberta: se eu quiser voltar a porta tá aberta, é quinem aqui, as imãs não querem que eu vá embora, eu não ganho nada aqui e nem quero. Tenho a minha aposentadoria, casa pra morar, água e luz. Eu tenho tudo e elas se dão muito comigo, eu me sinto em casa, mas na casa da gente é melhor. Vendo as sobrinhas, irmãos e irmãs da gente. Nós somos doze irmãos, eram quatorze e morreram dois quando eu ainda não era nascido, Oscar e Benjamim estavam fazendo espingarda de cano de guarda sol até que uma disparou.
No seringal eu trabalhei vinte e três anos só com um patrão, nunca gostei de tá pulando de um lado pra outro porque não dá pra arrumar nada. Agora eu nunca quis foi me casar, às vezes eu estava na minha colocação e via passar aquele senhor pro barracão carregando um menino dentro do paneiro, outro nos braços, outro engatinhando, aquela agonia pra ir pro barracão, eu olhava aquela carga só de menino e por causa disso nunca quis me casar. Mesmo assim eu achei com quem me casar, mas depois eu imaginava que também poderia cair doente por dentro do mato naquele seringal e a mulher fica bem dizer abandonada ou muitas vezes o marido caia doente e a mulher não ia fazer nem um chá, pra ver se ele morria pra ela morar com outro, aquilo podia acontecer comigo também.
Uma vez casou o filho do gerente e seu Rocha, nosso patrão veio ser padrinho do casamento. Naquele tempo ele era dono do Café Santo e de muitas coisas. Ele trazia uma moreninha doida pra namorar e se casar. Ele e a mulher dele, dona Noêmia, uma professora de idioma muito boazinha perguntaram um dia se eu queria me casar com ela.
Não dona, não quero não!
Passou-se um tempo eu fui a Manaus e fui bater na casa de dona Noêmia; ela me trouxe um leite, nós conversamos e ela disse: "olha seu Celso, como senhor não quis casar com a Maria ela fugiu com um garimpeiro de diamante".
Ó dona Noêmia, se ela abandonou a senhora; deixando a senhora sem empregada, a mesma coisa ela fazia comigo... depois que eu arrumasse ela e tudo direitinho ela se iludia com outro e me deixava lá espiando pra lua.
No seringal qualquer coisinha é dedo no gatilho, quem é que vai atrás? Era só o que eu imaginava eu tinha muito medo...
Filho de Francisco Paixão e Luíza Paixão, casado, nascido no ceará no dia 26/03/26. ex.-garimpeiro, ex.- seringueiro, aposentado e hoje em dia trabalha na cantina da Comunidade. Seu José é um dos moradores mais antigos e querido pelas irmães. Tem muita representatividade entre os outros moradores. Sua família é dentro da Comunidade uma das mais abastadas financeiramente. À primeira vista parece meio carrancudo mas é uma pessoa calma, educada e muito humilde no trato com as pessoas.
A minha experiência de vida se deu quando apareceu essa doença em mim, fiquei muito desesperado, não sabia se eu ia viver nem nada. Foi quando eu vim pra cá em 54, comecei o tratamento e por dois anos fui recebendo os exames negativos até hoje graças a Deus meus exames são todos negativos. Daí é que eu vim a recordar que eu ia viver de novo, porque quando eu soube que eu tava com essa Hanseníase fiquei muito revoltado, não dava mais nem pra viver. Ai o médico foi me tratando e eu fui vendo o que era ter vida novamente.
De lá pra cá eu fiquei trabalhando como funcionário federal depois me aposentei e agora trabalho aqui com as irmãs desde 75 e graças a Deus tenho me dado muito bem. Trabalhei no Solimões no rio Jandiatuba foi o primeiro ano que eu cortei seringa. O seringal é onde acaba o mundo, é uma prisão dentro da mata, eu pensava de nunca mais eu sair dalí. Cheguei na colocação só eu e Deus pra passar dez mêses sem ver uma alma vivente, depois de seis mêses foi que chegou o patrão que trazia mercadoria pra gente, nesse dia eu soube que eu tinha dinheiro pra baixar. Lá eu trabalhei o verão todinho, saldei vinte e cinco contos de réis e depois vim pra Manaus trabalhar de embarcadista no navio Santa Cruz de Araújo. Trabalhei por uns quatro anos como carvoeiro, depois passei para carvoeiro habilitado, lá eu arrumava qualquer motor da capitania dos portos como motorista e hoje tô por aqui graças a Deus.
Aqui mesmo eu me casei, minha esposa é de Manicoré, ela tava se tratando aqui dentro, construí família e hoje tenho dois filhos, e tô levando a vida como Deus quer. A vida é uma história, porque se agente for contar a vida da gente mesmo não tem fim não, a vida é muito sofrida, o camarada tem que ter fé em Deus, com fé em Deus ele vence tudo, toda dificuldade que a gente tem na vida a gente vence, agora quando o nego não tem fé em Deus ele leva tudo por água abaixo, não tem futuro pra ele.
(5) A vida do nordestino que entra aqui na primeira vez é sofrida, porque o filho do Amazonas nunca ensina como fazer aquele serviço, só ensina errado. Eu tiro por mim, quando eu cheguei aqui no Amazonas eu trabalhei o primeiro ano no Rio Branco do Boa Vista, eu não conhecia castanha do pará, eu só conhecia aquelas pipitas que eu vi vendendo numa sacolinha em Belém. Andando no mato eu vi o caboco gritar: "horra que é castanha, horra que é castanha!" Eu não via castanha, procurava nos galhos e não achava as pipita que eu tinha visto, ai quando cheguei em baixo de uma castanheira o cara disse: "olha tu fica aqui me esperando que eu vou ali matar um veado". Eu pensava que o veado tava lá amarrado e ele chegava só pra matar, mas nada, o caboco ainda ia esperar lá onde o veado comia.
E eu disse pro outro companheiro que tava perto: _mas rapaz esse caboco grita horra que é castanha, horra que é castanha, e eu não sei, tu já viu?_ "Eu não". Ai eu peguei um quengo redondo que eu vi no chão balancei e falei: _Rapaz é esse nó de pau aqui ó!_ Com um facão cortamos um pedaço de pau, botei o quengo em cima de uma raiz e fomos quebrar ele com um cacete, o cara bateu duas vezes não quebrou, ai eu digo: _me dá aqui esse pau!_ Ai ele me deu o pau, quando eu bati em cima do quengo ele escapoliu e foi na canela do companheiro. Naquilo ele caiu rolando lá no chão gritando que eu tinha quebrado a canela dele e o outro caboco vem subindo o barranco de lá pra cá "Que foi isso rapaz?!"
Eu fui quebrar esse nó de pau e quebrei a canela do rapaz ó!
Ele caiu achando graça de nós, depois é que ele foi ensinar como era que agente quebrava. Eles nunca ensinam alguma coisa dizendo rapaz a gente faz assim.... Lá o rapaz mandou eu buscar uma montaria... uma montaria lá na minha terra é uma cangalha ou uma sela esse é o nome de montaria. Cheguei lá e ele disse: "você vai lá na casa de farinha lá tem umas três montarias, traga uma daquela pra cá"... ai eu vou lá, passei mais de hora caçando a montaria dentro da casa de farinha, e num achava, porque pra mim a montaria era uma cangalha ou uma sela, ai voltei sem nada. "você não trouxe a montaria? não! eu não achei essa montaria lá. ele disse: "rapaz tá lá!" Ai foi outro rapaz e trouxe, veio lá pelo meio do rio com aquilo. Eu disse:_rapaz vocês só ensinam errado porque na minha terra uma montaria é uma cangalha ou uma sela que se dá o nome de montaria, você manda eu trazer uma casca de pau lá pelo meio do rio, eu não tô sabendo disso não!
Por isso que eu digo: agente tem que ter muita paciência quando chega dentro do Amazonas, porque o pessoal mesmo daqui é duro pra gente entender. Mas graças a Deus eu arrumei força e passei toda dificuldade em paz.
Sobre esse negócio de Hanseníase quando eu cheguei aqui dentro isso aqui era só uma varetinha, agente vinha no caminhão até a entrada e chegava todo arranhado, daquelas malícia que tem no mato da estrada, aqui nessa praça era um lago de água preta cheio de uma ingia, isso ai não era hospital não, era só depósito. Trazia gente doente e jogava ai, eu vi gente morrer comido de bicho, tinha nego deitado na cama e os bicho subindo pela parede, porque não tinha quem cuidasse da gente. Pra pegar um pedaço de doce era aquela fila de doente... quem trazia o doce era o padre Mário, ele morava no Areal. Isso aqui era a maior nojenteza, tudo cheio de lata, depois que chegou o padre melhorou um pouquinho, ele passou cinco anos ai depois veio a irmã Rosa.
Depois que a irmã Rosa chegou ela tirou tudo que foi imundice que tinha ai dentro, aposentou todo mundo que podia se aposentar e o que não podia se aposentar ela arrumou emprego. Ela foi renovando as casas, mudou o hospital, chegou o médico e acabou aquelas coisa que tinha; aqui a mulher acabava de ter a criança o médico pegava e tirava pra fora, depois que a irmã Rosa chegou não. A mulher tem os filhos e é tudo criado aqui dentro, são uns meninos sadios, os meninos comem, morrem de velhos, e nunca que apareceu a doença.
Mas no tempo do governo era a maior tristeza do mundo, agora depois que a irmã Rosa chegou não, mandou aterrar esse lago, mandou fazer essa gruta, modificou o hospital todo. O hospital só era uma portinha, um pedacinho de casa, ai ela mandou fazer esse hospital e agora aqui é um paraíso quem entra ai dentro vê a maior beleza do mundo. O pessoal que chega doente de Hanseníase se trata ai mesmo junto com os outros, não tem separação de nada. A separação tem só com o pessoal que tá mesmo pra morrer, vai para o pavilhão, só mesmo pra morrer. Acabou aquela tristeza que tinha aqui dentro.
As pessoas que chegaram depois de mim devem contar as mesmas coisas: o Mário e o Raimundo Diogo, ainda são do tempo que eu cheguei. Aqui era a maior tristeza do mundo porque o pessoal morria... como eu vi muito. Eu vi uns dois na minha terra que morreu assim doente quando acabava de morrer o cara tocava fogo na casa e ninguém podia passar por perto que era uma doença que dava medo aos outros, era uma coisa complicada, é só o que eu tinha pra falar.
Casado nascido no dia 02 de Janeiro de 1922 no estado do Amazonas entre Manicoré e Humaitá. Seu Juvenal já foi agricultor, seringueiro e soldado e pescador. Hoje em dia vive na vila de residências da Comunidade com a esposa e uma filha deficiente de 48 anos. É alegre, carinhoso e sempre prestativo mas sofre devido a doença e a morte do único filho que o visitava depois que ele adoeceu.
Eu vivo com uma pequena aposentadoria que a gente tem. As irmãs são muito boas com a gente. Aqui nós não temos assistência do hospital nem nada. O médico faz a consulta pelo SUS, passa a receita e agente tem que ir pra cidade comprar remédio, está tudo tão caro de um jeito que não sei como é que a gente pode fazer.
O que mais atenta a gente é a doença. Uma coisa ou outra aparece e sempre com dificuldade a gente vai levando, agora eu peguei o dinheiro e fui pra Candeias comprar umas coisinhas. Comecei a gastar pra cá, pra lí, pra colá e já estou quase na rapa de novo. Vou ter que esperar até receber outra vez. E assim a gente vai passando conforme Deus quer. Essa é a minha vida aqui, sou aposentado e vivo dessa pequena aposentadoria.
O meu filho mais amado, que eu tinha, morreu! Esse nunca me desprezava, era um filho que dia de domingo nunca faltava de estar aqui comigo. Eu tenho outros filhos na cidade que também vivem numa dificuldade maior depois dessas arrumações que o governo fez, a vida tá difícil pra todo mundo. Como eles não podem me ajudar em nada, eu tenho que dar o meu jeito conforme Deus quer. Eu estou satisfeito de morar aqui por que as irmãs são muito amigas da gente. Com amor elas não me faltam com nada, assim a gente vai devagarinho.
Até a idade de 60 anos eu vivia muito bem, não conhecia doutor e não sabia o que era remédio, de 60 pra cá quando não é uma coisa é outra. Eu tenho uma perna mecânica, me feri aqui na porra da perna, fui no médico aí me passaram um mês de repouso. Ainda não estou bom, mais tô fazendo o possível pra escapar. Eu não posso passar mais de dois meses internado. A saúde tá precária, a velha também vai do mesmo jeito, esta mulher aí adoeceu não sei de quê, já fui com todos os médicos daqui e não achei um médico que descobrisse a doença dela, fiz todos os exames e nada, a mulher continua doente já apelei pro crente, pra macumba, pro rezador e ninguém descobriu o que ela tem. Essa é a maior dificuldade, a doença não é fácil.
Aqui é um lugar muito bom, agente vive sossegado, as irmãs são muito amigas da gente e nesse ponto eu tô despreocupado. Meu desgosto se deu depois que o filho que eu mais amava morreu. Ele esteve aqui num sábado, era um dia parecido com esse, ele ficou até cinco horas da tarde... conversou comigo, bebeu, comeu depois saiu alegre e satisfeito. Passou domingo, segunda, ai quando foi na terça feira, quatro horas da madrugada chegou um carro me avisando que ele estava morto no João Paulo. Aquilo pra mim foi um choque, eu senti alguém fincado um punhal no peito.
Eu sai daqui doidinho, cheguei no hospital e o homem da funerária Bom Pastor já estava lá. Eu sem dinheiro e como ele não pagava funerária, os direitos dele foram negados. Já eram cinco horas da tarde quando o homem bateu em cima do papel com a caneta dizendo que meu filho não podia ser enterrado por que tá com os direitos negados.
Meu filho era funcionário da casa do ancião há 17 anos, e tinha fundo de garantia no Beron de R$ 300,00, aí quando o cara disse que ele não podia ser enterrado, eu disse:
_Agora o senhor mexeu comigo, (7) eu não tenho nada, mas olhe pra mim e veja que eu sou um homem de vergonha! Meu filho era um trabalhador e não um mal feitor. Ele não pode ser enterrado sem caixão por que fica triste é pra nós que somos parentes... O senhor vai me vender um caixão de qualquer jeito!_
Ai ele disse: “ Como eu sei que você é um pai caloroso, vou lhe vender um caixão de plástico.”
_Eu não quero! Meu filho é um homem grande, o caixão pode quebrar e isso é vergonhoso._ Então ele disse “não, o caixão é forte.” _Não quero, o senhor vai me vender um caixão de quinhentos reais fiado e eu lhe pago à prestação_.
Quando o caixão foi para o IML, as irmãs já estavam lá no nicrotério, depois a funerária veio trazer meu filho aqui. Eles chegaram cinco e meia e já não deu nem pra ele entrar aqui. As irmãs disseram: “seu Juvenal não dá pra fazer velório porque está em cima da hora e os homens que estão no cemitério são funcionários e já passou da hora deles saírem. Vamos rezando o terço em viagem.”
O enterro foi terminar cinco e meia. Marquei o prazo do pagamento e quando foi no dia dez ele veio receber. Eu tinha arrumado o dinheiro em cima da hora graças a Deus. Paguei Quinhentos Reais de uma só vez e exigi nota fiscal.
Esse foi o maior choque pra mim, já vão fazer quatro anos agora em junho e quanto mais tempo passa mais difícil fica de acreditar que eu só vou ver meu filho em fotografia.
É uma lembrança que não tem tempo que apague. Ver uma pessoa que a gente ama tanto desaparecer assim tão de repente. Quando veio o óbito: morte indeterminada eu perguntei porque?
Quando ele chegou no hospital bem dizer já foi morrendo ai o médico parece que se embaraçou, não fizeram a endoscopia. Eu sei que consta que foi congestão mas não tenho certeza. Eu queria saber do que ele morreu. É triste você está deitado na sua cama, derepente alguém bate palma e vem dar uma notícia dessas! É o mesmo que dar uma paulada na cabeça.
Já pensou: um homem novo, forte e trabalhador, no entanto todos os direitos foram negados na ocasião da morte, depois disso é que o dinheiro saiu. Coitado do meu filho, não aproveitou nada, o que era dele serviu aos outros. A mulher dele ficou com todo dinheiro, mas na hora ela não deu um real pra comprar velas. Eu, agi com tudo, estou aqui vivendo no sofrimento, quanto mais tempo passa pior fica.
Minha vida aqui é assim: é esse sofrimento pela morte tão rápida de uns e até aqui a mulher conta que foi congestão: ele comeu fígado frito, foi dormir e acordou com uma dor no estômago terrível... Levaram ele para o hospital do CEMETRON aí o estado dele piorou, levaram pro João Paulo II e quando chegou lá bem dizer já foi morrendo. Nessa hora eu estava aqui dormindo sem saber de nada, se eles tivessem me procurado antes quem sabe eu não resolvesse a situação... não sei não.
Esta menina aqui é minha filha, vai fazer 48 anos amanhã. Foi a única que ficou em casa por que é deficiente e o estado de vida dela é precário. A Mariazinha foi quem ficou pra entreter a gente dentro de casa, ela é igual uma criança.
Aqui nós temos hospital mas qualquer remédio que o doutor passa tem que comprar na cidade. A gente vive com dificuldade porque não temos parentes aqui, é só essa menina, eu e a velha. Qualquer coisa que haja sou eu tem que ir para o mercado, ir pra hospital e coisa e tal. Eu é que sou o chefe da casa. A velha, coitada quase não conhece nada, eu que faço as obrigações.
Eu comecei sendo sócio da Associação Rural, entrei como sócio remido, até que deixou de ser Associação Rural e passou à Sindicato. Nesse tempo eu morava na ilha de Mutum. Nossa vida era trabalhar na agricultura, quando chegava dia de Sexta-feira pegava a lancha do Território e subia até a feira de Porto Velho e assim foi a vida toda, até que eu deixei de ser sócio. Agora passei à Associação dos Aposentados, comecei pagando dois Reais e Cinqüenta centavos, depois cinco....
Um dia eu disse: __rapaz eu não vou agüentar desse jeito, por que eu só faço pagar e não tenho nada __. Eu nunca tirei um pílula que fosse de lá e vou pagar até quando? Resolvi cair fora pra nunca mais. Eu tenho a carteira mas não ia agüentar por que agora tão pagando dez reais por mês. Do pouco que eu ganho não dá pra pagar essa quantia toda.
Aqui com as irmãs eu vivo bem graças a Deus, quando preciso de uma consulta vou lá tiro pelo SUS e não pago nada, por isso deixei de ser sócio na Associação Rural, sou nomeado, tenho a carteira mas não quero. Aqui eu não faço nada, vivo aqui até quando Deus quiser.
Quando eu cheguei a irmã disse: “Juvenal você pode roçar, pra plantar macaxeiras e arroz...” ai eu disse: _Irmã eu já tô cansado, a minha vida tá no final e eu não vou me meter numa mata dessa, pra cortar, roçar e plantar... eu posso até capinar... mas produzir... eu já sou um homem doente e não posso tá fazendo mais esses trabalhos_
Eu vivo aqui por conta das irmãs, não pago água, luz, nem aluguel... é uma benção. Quando chega o dia de receber eu vou lá no banco, tenho carteira de ônibus, vou e volto, não pago nada.
A mulher do INSS disse que eu tô aposentado porque eu já trabalhei muito, agora é tempo de parar pra comer do que eu já ganhei, desde o começo tudo que eu compro eu venho pagando imposto: um quilo de açúcar, um quilo de café desde esse tempo eu já tenho um saldo. E que agora eu só vou comer do que já ganhei. Quando chega o dinheiro de lá a gente já tá contado encima da hora, graças a Deus nunca faltou... eu vivo disso e não pretendo fazer outras coisas.
Infelizmente alguma doença como essa ferida que apareceu aqui na curva da perna e abriu de um jeito que já tava cabendo a cabeça do dedo. Essa perneira nova, era muito alta e me feriu, com a mulher adoentada eu tinha que andar para fazer as coisas. Como a ferida ia aumentando eu fui no médico, e ele disse que eu tinha que parar e passar um mês de repouso sem calçar a perneira de jeito nenhum... tenho que andar mas estou com medo de perigar... se o médico ver eu calçado com essa perneira ele vai brigar comigo... Eu não posso andar só com um pé, de muleta eu não posso subir e descer dos ônibus mas tenho fé em Deus que essa perna não vai mais dar trabalho pra mim, já não tá mais doendo como doía...
Eu já estou na casa dos 78 anos, se não fossem as doenças ainda dava de fazer alguma coisa. Sou do dia 02 de Janeiro de 1922. Sou do Amazonas, entre Manicoré e Humaitá, sou daquela mediação ali do Uruapiara, da ilha de Oboetempe, fica confrontando os dois municípios, Humaitá e Manicoré.
Fui nascido e criado na ilha de Pão e Flor e de lá casei trouxe a família e fui morar na ilha de Mutuns. Morei lá 30 anos e criei meus filhos, aí a dona Elvira precisou de uma pessoa de confiança de fronte Porto Velho num lugar chamado São Sebastião, lá agora tem uma fazenda de gado onde é o Antônio Chavier. Então ela me chamou pra tomar conta do lugar.
Depois de 15 anos morando lá ela quis me vender o lugar e eu não quis porque meus filhos já estavam empregados. Então eu disse: _Dona Elvira eu não quero o seu lugar por que é muito sacrifício explorar um lugar desse eu sozinho com a velha_. Então ela disse: “olha eu fazia questão de lhe vender o meu gado, por que você é uma pessoa muito boa, gostei de você”.
_Dona Elvira, eu não posso comprar mas vou arrumar um comprador pra você_. Eu falei com o Antônio Chavier, levei ele lá e ele foi e comprou o lugar. Depois disso ele quis que eu ficasse servindo a ele. Me deu um terreno, me deu estaca, arame, mandou cercar e eu morei lá. Lá o meu ramo lá era cana, eu tinha 3 mil pés de cana até que o boi chegou e comeu tudo, ficou só a terra.
O homem veio me indenizar com 100 cruzeiros e eu não quis o dinheiro, ele insistiu muito até que eu peguei, dei 50 cruzeiros pro meu filho, e fiquei com 50 pra mim. Eu não sei com o que foi que eu gastei, não comprei nada! Nesse tempo as irmãs daqui souberam o que estava acontecendo comigo e foram me buscar pra morar nessa casa. Eu vim pra cá por amor delas, eu não pedi pra vir, cheguei aqui e até hoje estou me dando bem graças a Deus.
Deixei tudo lá, vendi malhadeira, tarrafa e quase nada deixei por lá. Deixei casa boa coberta de brasilite, cercada e assoalhada. Pra quê eu queria casa, agora já não tenho essa aqui? Lá eu não volto mais.
O maior transtorno além da doença que nos perturba foi a morte do meu filho. Aqui eu só tenho amigos e todos são legais. Eu não tenho inimigo em canto nenhum na vida, eu saio e onde vou tenho amigo. Tenho amigo no Candeias, lá pro outro lado do rio onde eu morava... Eu só tenho nome na polícia por que tirei a minha identidade, nunca fui preso, nunca matei, nunca roubei, nunca cobicei o que é dos outros, sou um amigo legal de todo mundo, pode perguntar e todos vão dizer que eu sirvo muito pra certa pessoas que vem...
Aqui chega alguém eu vou e dou instrução direitinho. Agora estou esperando um amigo que vem tratar da vista, falei com ele lá na feira e qualquer hora ele tá chegando aqui pra eu levar ele no oculista. Esses caras dos ônibus que passam aqui são tudo legal comigo, eu queria ter saúde como eu tenho amigo.
As irmãs são muito boas com a gente, não importa altura nem idade, agradam das crianças aos velhos. Quando eu soube que meu filho morreu, o primeiro passo que eu dei foi pra lá, cheguei falei com a chefe ai ela mandou eu buscar meu filho que ela fazia todos os preparativos, aí eu fui e quando eu cheguei tava tudo preparado, o enterro dele foi aqui. Foi o maior chorôrô, a chefe me abraçando e me confortando: “é Juvenal, força, força que você sabe, agente é vivo e tem que passar por esse caminho, hoje é ele, amanhã sou eu e você e os que estão aqui. Temos que nos conformar com a vontade de Deus”. A morte é uma coisa que ninguém pode se defender, toda pessoa quando nasce já traz o destino marcado, aí chega aquele dia que tem que acontecer.
A Mariazinha pegou uma paralisia na hora em que nasceu e graças a Deus tá viva até agora, e ele que era um homem forte, pesava 70 quilos morreu tão rápido... meu filho tinha muitos amigos e até hoje me perguntam: “e aí Juvenal cadê o Aristides?” _meu irmão, o Aristides já tá fazendo 4 anos de morto_ “não diga isso, eu não esperava uma dessas”. Quem é que espera? .... eu dormindo despreocupado derepente o destino vem meter essa faca no meu peito, isso é triste. Dizem que o tempo conforta, mas não, a gente não esquece. Eu estou aqui me lembrando do tempo que ele entrava e vinha de braços abertos, me abraçando...
A última vez que ele passou aqui foi morto no caixão, já pro enterro. Eu tinha carro aqui, a funerária foi na frente nos fomos atrás. Esse foi o maior transtorno que eu já passei na vida. Mas isso não acontece só comigo, com todos os que tem família um dia vai pai, mãe, tia, avó, vai tudo e o caminho é este mesmo. Não adianta se defender, se existisse um lugar que não morresse ninguém, não cabia mais gente lá.
Um dia desses quase que a carreta ia me matando aqui dentro de casa, eram 9 horas da noite, eu deitado na cama e a mulher assistindo televisão, era um dia de domingo quando entra uma carreta dando uma tacada tão forte no muro que quebrou. Quebrou as tábuas e se entrasse aqui ia dar no canto da casa. Eu falei pro motorista ir com a irmã falar alguma coisa, a irmã se entendeu com ele pra mandar consertar o muro quebrado.
Eu fui seringueiro desde os 12 anos, minha mãe morreu e eu fiquei com meu pai. Nós éramos pobres então eu passei a cortar seringa. Eu cortava seringa e ajudava ele nos serviços de casa. Foi assim que eu cresci, fiquei homem e com 18 anos fui pro Quartel em Manaus.
Eu fui pra 1º Companhia do 27, cheguei nesse Quartel e comecei a trabalhar na agricultura de novo. Eu deixei a seringa em 44, foi o tempo que eu subi pra cá pra ilha dos Mutuns, papai já tinha vindo na frente eu vim atrás. Fomos trabalhar na agricultura, plantei muita banana e outras coisas. Quando tinha produto a gente botava no abrigo e subia com toda a dificuldade nas lanchas, as vezes quebrava em viagem e nos tinha prejuízo porque perdia todo o produto.
Eu trabalhei muito até o tempo que eu tive um ferimento no pé que foi preciso cortar a perna, a irmã falou comigo e mandou que eu fosse pra o Hospital de Base. Cheguei lá cortei a perna e aí com 3 mês eu fui pro Acre botar a perna mecânica. Botaram a perna em 92, eu cheguei com a perneira e fui trabalhar de novo, foi o tempo que o Antônio Xavier comprou o lugar e as irmãs foram me buscar pra cá. Estão fazendo 9 anos que eu deixei tudo pra lá.
Eu estranhei muito por que toda a vida eu morei na beira do rio. O rio é amplo e arejado, eu lembro que eu corria de barco, de canoa pequena... pescava... nossa vida era outra, eu vinha todo o dia de motor aqui pra Porto Velho, vinha comprar, vender, depois que eu passei pra cá, só por necessidade eu corro lá. Aqui é um ambiente fechado, nós ainda não nos acostumamos... como não tem outro jeito...
Amanhã irei à feira comprar um peixe pra comer porque aqui ninguém acha peixe. Lá eu vendia peixe, agora quando a gente quer comer um tem que comprar caro e às vezes é tão ruim... puta merda eu vendia barato e agora pago num quilo R$ 6,5. Nós compramos o peixe do gelo, chega aqui bota na geladeira e não é a mesma coisa. Nunca mais a gente comeu um peixe novo como os que a gente pegava lá... mas é o jeito, está tudo bem, a vida vai passando devagarinho conforme Deus consente. Se eu estou bem é porque as irmãs são mesmo que ser umas mães pra gente, não me cobra nada aqui e eu ainda tenho a consulta pelo SUS.
Estou bem por que também tenho a carteira de ônibus, vou e volto e não pago nada, aqui eu pago funerária, minha e da família toda, no dia que eu ou a mulher morrer vai estar tudo preparado pra eles, do jeito que eles escolherem. Meu filho não pagava funerária, aí quando ele morreu foi o maior transtorno pra mim, eu procurei os direitos dele e foram todos negados.
Na hora só o IPERON auxiliava com R$ 300 para 90 dias, e a funerária queria o dinheiro na hora... às vezes a pessoa conhece quando a outra é de bem ai ele disse: “vou fazer pra você por que sei que você é uma pessoa de bem, vou lhe ajudar”. Numa hora dessas a pessoa está aérea, a gente fica de um modo que não pisa no chão, eu dava tudo se eu tivesse... se custasse mil reais eu comprava o caixão só pra não ver o meu filho enterrado embrulhado num pano.
Depois que ele morreu a mulher dele foi lá tirou tudo e não deu um real pra comprar uma vela. Vou te dizer, a justiça divina não falha, ela tinha um filho que é um vagabundo, só sabe beber cachaça e até largado da mulher é. Quando ela foi pegar esse dinheiro lá no IPERON ele andava atrás ai quando ela pegou o dinheiro ele pegou logo 100 mil. Comprou um carro, tomou uns goró, foi pra um campeonato de pesca lá pra cachoeira do Teotônio e dando uns cavalo de pau acabou com o carro que não prestou nem pra ferro velho, quebrou a bacia e hoje em dia tá de cadeira de rodas, pra você ver... Não deviam terem trazido o dinheiro pra fazerem a catacumba dele? ...Eu também não vou atrás. As irmãs já me disseram que na reforma do cemitério pra que não vão esquecer do meu filho, pra eu não me preocupar. Eu não sei como vai ser mas eu já tenho uma placa preparada e o que for preciso pro meu filho eu pago... se Deus quiser.
Meu filho era um homem lindo, tinha 46 anos. Era um homem forte, trabalhava na casa do Ancião, ajudando aqueles velhos, os velhos gostavam muito dele.
Quando ele morreu aqui e acolá eles chamavam: ''... Aristides...'' passaram quase um semana chamando o homem ...tão querido ele era lá, Ave Maria! Ele pegava a pessoa e levava pra qui e pra lá fazendo graça, brincando o tempo todo. Ele gostava mesmo das pessoas, por isso só tinha amigos, graças a Deus.
É como eu digo: eu tô com essa idade toda e só tenho nome na delegacia por que tirei minha identidade. Em toda parte que eu moro e saio deixo amigos, como aqui... se Deus o livre eu sair daqui, tem gente que é capaz de chorar. Ali atrás tem uma salinha e toda tarde eles se juntam lá pra conversar comigo, vem dali, vem daqui e fica batendo papo até 6 horas, graças a Deus a minha vida é assim.
Eu tenho irmão e tenho irmã, minha irmã caçula mora em Ji-paraná, meu irmão caçula da parte dos homens mora ali na balsa, bem na cabeceira da Lagoa dos Milagres: Tavares é como o chamam lá. O outro irmão, morava no bairro São Francisco, de lá ele saiu pro Cujubim Grande, ele foi trabalhar pro Benjamim. Esse que tá na balsa é o Francisco, a minha irmã é a Esmeralda batizaram ela com o nome de uma pedra, é isso, tenho 2 irmãos e 1 irmã.
Essa mulher... nos casamos em 42, até aqui ainda não nos cansamos um do outro. Uma vez lá no INSS estavam tratando dos meus papéis então eles perguntaram: “tu é casado?” _Não... sou e não sou_ ai ele disse: “por que o senhor diz que é e não é?” _por que a turma não considera o casamento católico, só o civil não é?_
“Agora a gente tá considerando”. _...Então eu sou casado..._.
“Quanto tempo faz que você é casado?” _você é boa de matemática? então pegue o papel! Calcule de 1942 até essa data em que estamos_.
Já tinha completado bodas de ouro. (6) Pra dividir a vida a beleza não importa, o que vale é o bom viver, ela nunca me deu motivo pra gente se deixar e eu também não. Até hoje o compromisso que ela tem por mim eu tenho por ela. O que o padre pergunta pro cara e pra ela na hora do matrimônio? Eu estou cumprindo conforme a lei de Deus mandou, na saúde e na doença e até no fim dos tempos.
A coitada quando era nova, era forte, bonita e trabalhadora. Porque nessa idade é que a gente vai se deixar? Pra mim não dá não, quanto mais velha fica mais bonita eu acho, essa mulher é linda e eu sou apaixonado por ela. Não maltrato, faço tudo que é preciso e nunca faltarei em nada pra ela, o que for preciso eu faço. Mesmo ferido eu não parava porque ela estava meio ruim, aí eu tinha que ir no hospital, tinha que ir na cidade, tinha que ir no Candeias, fazia tudo pra ela.
Quando eu estava me tratando ficou difícil, me deram até uma cadeira de rodas mas como que eu vou andar na cadeira de rodas aqui dentro de casa? Então eu devolvi a cadeira. Graças a Deus está passada a maior crise, com fé em Deus estamos vencendo tudo, a minha vida é essa.
TEXTOS/LEITURA
Filho de Mariano G. da Silva e Joana Rodrigues, nascido em Costa Marques no dia 8/12/31. ex.- marceneiro, ex.- farmacêutico e ex.- seringueiro. Quando fiz a entrevista seu Romário morava no Pavilhão do seu Aldenor um mês depois ele casou-se e ganhou uma casa na vila da Comunidade. Seu Romário é uma pessoa extremamente emotiva e carinhosa, quando fui entrevistá-lo ele já tinha boa parte do que queria falar escrito em um caderno por medo de esquecer passagens da sua infância.
Eu vivi bem até oito anos de idade, desde ai a vida pra mim tornou-se um sofrimento e um desespero. A minha mãe carregou um peso muito grande, pois aos oito anos de idade perdi meu pai. (8) Aí vamos sofrer de tudo sem recursos pois nada tínhamos de valor, só uma máquina de costura, minha mãe costurava muito bem, calças e camisas para homem e alguns vestidos pra mulher, o pagamento era pequenino e ela ainda era cozinheira ganhando trinta mil réis. Pagava aluguel com vinte e nada ficava. Eu tinha vontade de comer um pastel, de beber um guaraná e nada tinha de meu ai comecei fazer muitos palhaços de tábua fina e vendia todos pelo preço de mil réis.
Um dia um carpinteiro viu aquilo, perguntou meu nome e me chamou pra trabalhar com ele, para ser um carpinteiro mais tarde, ele queria fazer alguma coisa por mim. Depois ele chamou sua esposa e apresentou-me à ela muito satisfeito dizendo que eu ficava como filho deles. Então ele foi a minha casa às oito horas da noite quando minha mãe chegou do seu emprego e deu-se a conhecer, ai ela ficou como vizinha o senhor Urbano e da dona Raimunda que foram os grandes amigos de nosso coração.
Comecei a trabalhar com ele e foi bom até demais. Seu Urbano empreitou uma casa para assentar as portas e umas janelas de madeira, quando chegou no sábado três horas da tarde o dono da obra chegou fez o pagamento e deu cem mil réis. Ah! como fiquei feliz. _Senhor Urbano, isto tudo é meu?_ "É seu meu filho!"
O dono do trabalho perguntou quem eu era ai o senhor Urbano falou muito bem de mim e que eu era filho de amiga. Esse senhor que era o dono da empreita, era paulista e trabalhava de secretário do serviço de navegação da SNG em Guajará Mirim, ele chegou para mim e perguntou se eu só tinha mãe ai eu disse que era órfão de pai. Daí ele perguntou se eu não queria limpar o seu quintal e que pagava sessenta mil réis. Eu fechei negócio.
De onze às onze e meia eu trabalhava limpando todo o capim depois queimei deixei tudo pronto ai ele viu a latada que fiz para o seu maracujá e ficou bastante contente. Como nós tínhamos acertado sessenta foi pago. Nesse tempo eu nada sentia da doença só uma manchinha na nádega.
Sobre o meu trabalho com o seu Urbano, ele batia na minha porta e chamava: "Romário vamos trabalhar a noite toda". Ai eu levantava e passava a escova de pasta nos dente e esticava o trabalho, ele marcava as tábuas com o lápis pra eu cortar com o serrote quando terminava o caixão do defunto já era oito horas da manhã, ai ele me dava trezentos mil réis, dai tomei gosto pelo trabalho e continuei a trabalhar com ele.
Um dia eu disse pra mamãe: _A senhora já pode sair desse emprego, já garanto no meu trabalho_ No fim do mês ela disse: "senhora Nazaré eu não vou trabalhar mais porque meu filho não quer, ele já tá empregado e disse que daqui pra frente só faço cuidar da nossa casa”. Trabalhei um ano e cada vez mais a amizade aumentava, à esse casal eu digo obrigado por tudo amigos, Deus os acompanhe e os teus filhos também. Eu já contei a minha meninice, agora vamos nas coisas que agora eu vou falar.
Eu tava com onze anos, tava trabalhando ai chegou um homem oito horas da noite perguntando se a minha mãe estava em casa, ela tinha saído mas ia voltar logo; então eu puxei cadeira pra ele e fomos bater um papo. Ele já de idade perguntou o meu nome e disse: “Romário eu não vim aqui a passeio nem pra roubar seu tempo nem da sua mãe. Eu vim aqui ver se ela quer se casar comigo” ai eu disse: _se ela não chegar eu posso dar o recado e amanhã oito horas o senhor pode vir pra se conversar, ai ele se despediu muito bem e foi embora.
Minha mãe teve que resolver um negócio de costura ai quando ela chegou já era umas nove horas da noite então fiquei conversando com minha mãe: _é bom a senhora aceitar porque ele é um homem trabalhador, eu conheço já passei na casa dele e vi, ele é solteirão, e é o primeiro maquinista da SNG eu acho que ele ganha uma grana melhor.
No outro dia assim que ele chegou eu saí e ela ficou batendo papo com ele, talvez tenham até se beijado. Depois que ele foi embora ela falou pra mim que podia arrumar um casamento com ele, mas pediu uns quatro dias pra imaginar isso direito e conversar comigo primeiro. Eu disse: _pode casar! Tenha certeza, eu conheço a casa dele._ “Tudo bem, isso quer dizer que eu posso dar o sim pra ele? _pode!_
Quando ele me viu: “que tal Romário?” _por mim o senhor pode se casar com ela, não tem problema não_.
Tem filho que não quer que a mãe se case, tem aquele problema todo mas pra mim não tinha problema porque eu já sabia me dirigir. Ai ele pagou o alugué da nossa casa, as coisas que agente tinha eu levei tudo e agente se juntou, compramos carroça porque naquele tempo era carroça que levava a bagagem da gente, ai mudamos pra morar com ele.
Ele me mostrou doçura e foi muito bom pai, eu já tinha uns onze anos e ele foi tão bom pra mim e pra minha mãe que eu comecei chamar ele de pai.
Depois eu agradeci muito o homem que eu trabalhava e saí porque ficava longe ai quando meu pai recebia o dinheiro ele me dava, eu achava que era tão pouquinho, mas nós melhoramos de vida foi bom pra minha mãe, eu não comprava mais nada. Um dia ele perguntou se eu não queria trabalhar com ele na navegação. “ vou dar todo meu saber pra você e mais tarde você vai ser um maquinista” _Pai eu sei que o senhor vai me ensinar numa boa mas eu não quero! O pagamento as vezes atrasa dois, três meses e eu não me dou com esse serviço_ Então ele pagou um colégio pra eu fazer meus estudo.
Eu tava sentindo que eu já tava ameaçado pela doença mas não falei pra ele nem pra mamãe. Ai tinha um homem que gostava muito de mim e perguntou se eu ia trabalhar com ele. Ele me deu uma mercadoria e disse que ia me ensinar trabalhar na mata. “tu não vê dinheiro agora mas no fim do ano tu tem dois ou três contos de réis” era três, quatro mil reais. Ai eu aceitei e fui falar pro meu pai José _tô decidido a sair da sua companhia e da companhia da mamãe, o senhor é uma pessoa muito boa mas eu tenho que trabalhar pra ajudar melhor_ ai eu contei a historia pra ele e ele ficou triste que até lágrimas desceu dos olhos dele. “e sua mãe quando souber?” Ai chamou a minha mãe, ela chamava Joana, ele era José.
“Vem cá Joaninha, tá acontecendo isso assim assim com nosso filho, o que é que você tá fazendo com ele pra ele querer sair da nossa companhia?” ela disse que não tava fazendo nada e que filho depois de criado a vontade é abandonar a família. Minha mãe era meio esbaforada ai eu disse: _eu vou mesmo, se a senhora quiser bem, se não quiser também do mesmo jeito eu vou me embora. Não é por causa do meu pai nem por causa da senhora, eu quero é ganhar dinheiro!
Nesse tempo eu sentia uma manchinha nas nádega: Ai esse amigo me levou no médico de pele lá em Guajará Mirim, fui fazer exame lá dentro do laboratório ai o Dr. Costantin deu uma olhada e passou uns remédio e eu fui embora, eu não sentia dormência nem nada. Agora essa doença atrasou meu crescimento, eu era magrinho mas tinha força, passei um tempo tomando remédio ai o sintoma passou.
Nesse tempo estourou a segunda guerra mundial, eu passei três anos trabalhando pelo seringal, eu tirava o saldo todos os anos de três quatro conto e pra mim era uma grande satisfação quando eu chegava em casa e dava três conto e quinhentos e ficava com quinhentos réis pra comprar minhas besteiras, ah! eles me beijavam de alegria e diziam que eu era um menino homem. Nessa altura eu já tava com uns quatorze anos já ficando rapazinho e metido a namorador, só que eu não levei sorte.
Eu fui tomando gosto das mata no tempo da seringá depois no tempo da castanha e da castanha ia pra poalha, poalha é uma ervazinha que serve pra medicina e pra laboratório; pra fazer genérico eu acho que até antibiótico, tira uma massa dela pra preparar um de tipo purgante. Agente arrancava muito aqui em Rondônia e parece que até em Mato Grosso existe. Era essas três lutas: seringa, castanha e poalha ai eu acabava tudo e ainda sobrava tempo pra fazer derrubada, roçado... assim agente foi vivendo. Quanto mais passava ano mais a amizade eu tinha com esse homem, tudo dentro do respeito, ele já era um homem eu ainda era um meninote .
Quando ele me chamava pra fazer alguma coisa eu sempre respondia: _vamo sim senhor!_ Ele sempre me deu a mão. Nessa brincadeira vai passando o tempo ai a doença embarcou. Começou arder meus dedos, a doer os pés, aquela queimação me obrigou procurar o melhor médico na Bolívia e nada. Ele passou remédio e vitamina pra mim dai danou-se tudo. Pois bem, foi passando eu continuei trabalhando com esse sofrimento, quando eu pegava no teçado que batia de cima pra baixo era uma dor e uma agonia que eu a no outro mundo e voltava. _Ô meu Deus o que é isso?!_
Meu patrão preocupado por outro lado mas nada, só remédio e mas o remédio, ai fui trabalhando com ele ai ele disse que não adianta se sacrificar demais. Isso tava acontecendo em quarenta e cinco ai vai quarenta e seis, quarenta e sete, quarenta e oito até que em quarenta e nove eu deformei, meu rosto, meus pés, as mãos ficou tudo inchado eu trabalhava por que era o jeito, pra não dizerem que eu era malandro.
Em quarenta e nove veio um médico do Pará até Guajará Mirim fazendo exame nas pessoas que tinha o mal de Hanseníase naquele tempo chamava mais lepra, ai quando ele chegou lá a primeira coisa que meu pai encarou foi essa idéia. Ai mandou uma carta pra mim pelo homem que tinha motor ai baxamos e foi aquela alegria. Ai ele me levou ao médico que era um especialista. Ele falou com o médico ai ele foi lá em casa fazer esses exames. Depois ele disse que o exame não vai ser feito em Porto Velho mas que ele mandava o resultado pra sede.
Depois de três dias chegou o resultado ai mandaram chamar meu pai, coitado ele chega vinha alegre dizendo que foi negativo que o médico vai tá aqui tal tempo e quer me ver. Ai ele já mandou um remédio pra mim tomar, umas pílula vermelha eu sei que tomei aquelas pílula ai melhorei, ai foi desinchando o queixo só a minha orelha é que não voltou mais ao normal mas o rosto desinchou, fiquei quiném um velhinho, novo mas o rosto era todo engilhado.
Eu comecei a trabalhar bem de verdade e em cinquenta esse mesmo rapaz que eu trabalhava antes, ele chamava Félis Duarte, ai ele subiu de grau e foi ser patrãozinho de uns dez homens. Ai eu falei pra ele: _seu Félis agora o senhor subiu, vai botar gente pra trabalhar e eu nessas condições assim... né, o que é que o senhor vai falar pra mim?
“Romário, o que eu vou falar pra você é o seguinte: você já me ajudou demais e tá me ajudando ainda, pode entrar quem entrar pra trabalhar aqui, mas você não sai da minha companhia de jeito nenhum. Você tá bem?”_eu tô_ Então você vai trabalhar comigo até quando Deus quiser.
_ Ele foi ou não foi um amigão? Só eu sei o tanto que aquele rapaz me ajudou. Passou o tempo eu continuei tomando o remédio e ele sempre lembrando “você não descuida do remédio, já tomou o remédio?”
O tempo foi passando e aquela dor, aquela queimação que quando dava só faltava me matar também foi melhorando, gente novo tem mais força. Ai lá vem outra carta que o meu padrasto mandou dizendo pra eu me apresentar ao médico porque ele tava querendo me ver. Quando cheguei ai o médico falou “que tal Romário?” _melhorei_.
Ai agente foi conversando, ele queria falar pra mim sozinho que era a doença, e eu fiquei quantos anos ainda sofrendo disso. “Vai melhorar, tem fé que você vai ficar bom”. Ai ele disse que queria ver o meu patrão pra conversar. Ai o médico disse: rapaz... é nessas condições assim, assim, assim...” _é eu já sei de tudo, Romário já veio falar pra mim, ele não sai da minha companhia. Ele trabalha até quando Deus quiser: se ele ou eu morrer!
''o senhor cuida bem dele?'' _cuido sim senhor, ele já me ajudou demais, se hoje eu tô bem é por causa dele e eu não desprezo ele de jeito nenhum_.
Ficamos trabalhando até o tempo que falaram sobre a abertura disso aqui, disseram que tavam abrindo pra fazer tratamento na duração de seis meses pro camarada se tratar e ficar bom, tem quarto, aqueles enfermeiro tudo vai ter e lá tudo é bacana. Isso foi esse mesmo médico quem falou pra mim, ai ele perguntou se eu não queria ir pra me internar.
Eu andando lá pela traia ainda arrumei uma ferida no pé que sarava e arrebentava de novo e era coisa da doença mesmo, ai eu falei que quando tiver pronto eu vou pra lá, eu quero ficar bom!
Quando eu chego tá no tempo do novo governo, parece que é o Aluízio Ferreira então ele disse que todo patrão tinha que dar quinze por cento de colaboração pra fazer esse lugar... Então foi adonde fizeram esse negócio aqui, desde o tempo que eu trabalhava com seu Félis. Em cinquenta e quatro foram uns enfermeiros e disseram que já tava pronto e que já tinha gente aqui, ai eu enviesado porque veio onze conto e oitocentos de saldo e meu pai José já tinha falecido. Ah minha nossa senhora, o que foi feito da minha mãe ai...ahh eu vou te falar: a discriminação era tão grande naquele tempo, o preconceito era tão duro que eu vou te falar....
Eu vim, até hoje é vergonhoso eu te falar isso, mas vou falar porque aconteceu comigo e com muitos. Agente vinha naquele gaiolão que carrega o gado atrelado no trem, veio eu e mais uns quatro, do trem agente pegava o caminhão lá por cima do mato e se avoava lá. Naquele tempo quando eu cheguei só funcionava esse restaurante, tavam pintando esse pavilhão aqui, essas casas tudo já tinha, já tinha aquele pavilhão da antiga sapataria, tinha aquele outro e aquele outro ainda não tava fazendo. Quando eu cheguei que ví gente na minha situação e até pior foi um nó que doeu por dentro porque eu ainda tava em condições, não tinha alejo nenhum isso foi duro! Eu dizia: “Meu Deus, onde é que eu fui cair?” fiquei logo apavorado.
Rapaz chegava seis horas da tarde dava uma tristeza tão grande que eu vou te falar: As vezes aquelas pessoas assim, mutiladas me convidavam pra um café ai eu dizia: “não eu não posso tomar café porque eu tô tomando uns comprimido... O tempo foi passando e eu fui acabando com aquele preconceito comigo mesmo. Eu pensei: “pôxa se são da mesma doença que eu porque ficar fazendo essa farofa toda? Ai peguei o café e tomei desde aí eu tomava um café aqui outro acolá mas sempre desconfiado.
Ali tinha um negócio chamado parlatório com uma divisão de vidro onde um administrador proibia o camarada de atravessar aquela imediação, nós não podia passar pra lá e eles também eram proibidos de passar pra esse lado, então agente trabalhava da área sete pra cá.
Todo dia às três horas tinha um cafezinho com pão, um almoço bem feito; pirão escaldado com ossada gorda e tal, lavadeira pra lavar roupa de graça, tinha o pedaço de tabaco pra quem fumava tabaco, pra quem fumava cigarro era cigarrinho, tinha uma vela pra zoar até altas horas da noite, porque o motor apagava às nove horas da noite. Nós tinha meia, um par de bota, uma muda de roupa de seis em seis meses, roupa minha mandavam até uma costureira pra fazer e eu até dava a minha roupa quando via uma pessoa que tava necessitada querendo comprar. O administrador um dia me chamou atenção sobre isso: ele disso que o outro já ganhou e que não era pra dar o que era meu, ai eu disse: _mas não é meu? Eu dei porque ele tem pouca roupa _.
Ai quando deu fé me jogaram pra cá e foi cortada a merenda, ficou só o cafezinho o almoço e a janta, com um pouco lá cortaram o negócio da lavagem de roupa, depois costureira era só pro camarada que pagava e assim foi mudando até o ponto de faltar comida. O camarada tinha que trabalhar no duro no negócio de tecer caranaí, tirar palha, tirar estaca pra comprar mercadoria, manter a mulher dele ou ele mesmo até com remédio. Foi dando muito tempo, até a água mesmo faltou que o camarada foi obrigado fazer uma barragem na nascente de um garapé.
Um dia cedo como todo prosista, eu tava atrás de conversar, encontrei um rapaz que se deu muito comigo ai eu me meti a conversar: “ah você trabalha madeira?” eu digo: _trabalho._ “então vou trazer um serrote pra você”._pode trazer que eu pago na folha e o senhor vai descontando_.
Ele tinha uma picarpinha daquela que dá um pipineiro de terra, aqui e acolá atolava até chegar era a coisa mais feia do mundo. Saiu daqui de madrugada e quando foi três horas da tarde ele chegou com a serra e todo o aparelhamento: “pronto seu Romário, taí e já trago uma nota de madeira, pro senhor tirar sessenta pernamanca”. Arrumei um colega meu e fomos lutar, ensinei até que ele aprendeu ai fomos pro fim da estrada e tiramos madeira de primeira nessa mata.
Foi passando o tempo chegou um troca troca de remédio pra essa doença, era tal de trombinha, era tal um negócio com leite no músculo, virou uma confusão e pronto, acabou aquele remédio bom que eu tava tomando. Haja trabalhar, o camarada tinha que trabalhar mesmo pra se manter, trabalha pra qui trabalha pra colá, e ainda não dava quando deu fé foi fracassando, fracassando... Quando ficou meio acumulado foi obrigado fazer passeata, ir pra rua, né? Arrumaram um carro com aquele letrão dum lado e doutro ''leprosos'' ahha, aquilo é que matava mais. O povo quando via aquilo dava no pé.
Eu arrumei uma dona e casei com ela. Ela era em condições também, mas não levou sorte, ela morreu de lepra, ela morreu em condições foi um colapso derepente.
Eu fiz a empreita e já tinha pagado serra e tudo isso, ai quando dou fé o doutor chega com uma carta: “olha aqui uma carta pra você” Ai eu disse assim: _eu sei ler mas o senhor abra e leia, que deve ter coisa boa_. Ai ele passou o óculos e leu: “ Veio trezentos cruzeiros pra sua viagem”. _O que é que o senhor acha?_ ''se você quiser ir... levando o remédio pra tomar vá! Então eu peguei um atestado e trabalhei, fiz mais umas três ou quatro temporada, saí trabalhando pra lá e pra cá, vinha pegava o invernão até setenta e quatro.
Em setenta e dois chegou um padre aqui com uma passeata pra longe e não tinha precisão disso, pelo menos eu não tinha, mas os outros, fazer o quê? Tinha que ir atrás de comida lá em Porto Velho nos comércios. Até que chegou o padre José viu aquilo tudo e achava duro aquela parada causada por aquele pessoal que só arrumava atrapalhada. Ai ele disse: “quer dizer que vocês ainda não comeram?” _não! Até agora ainda não tomamos café nem comemos pão nem nada_. “Mas veja que tinha muita mandioca” _mas o camarada todo dia comer mandioca..._ ai ele disse: “não carece ir nesse caminhão pra fora não!”
Por isso eu sempre dou valor aos padres e sessões espíritas porque tem muita gente boa no mundo. O padre José saiu nove horas e quando foi umas dez e meia ele chegou novamente no carro e trouxe umas três ou quatro sacas de pão e acabou ficando como administrador daqui. Já tinha passado o Tim Marico primeiro, já tinha passado o segundo e já tava no terceiro administrador ai ele disse que ia melhorar alguma coisinha, ai quando foi de tarde já veio um ranchinho não sei por onde ele arrumou aquele rancho. Ai ele disse: “Olha eu não posso ficar tomando conta mas vou arrumar uma pessoa pra tomar conta de vocês foi milagre esse padre. Ai quando deu fé chegou o padre José Sávio, vigário não sabia nem falar o português, todo atrapalhado e precisava fazer sinal pra mostrar conversa. Mas destá que ele foi se fazer com gente grande, ele já foi logo com o governo, naquele tempo era o governo do Marcos Henrique da corporação militar, ele era coronel.
Dona Laurinha, a esposa do coronel foi tornando-se como mãe pra ele. Ai foi aonde arrumou as melhores coisas pra cá. Ali na lavanderia era um supermercado que tinha de tudo. Quando a coisa melhorou o padre Bento falou pra ele me chamar pra trabalhar na farmácia, pegar negócio de remédio e aquele negócio de médico que eu nada sabia, ele me botou num posto que era tipo um farmacêutico.
Eu trabalhava na farmácia pegava cento e cinquenta cruzeiro lá na tesouraria, ele deu um cartaz amplo pra mim e eu soube aproveitar. Só não foi melhor porque a minha mãe adoeceu e ele também se envolveu com negócio de política, nem sei de que partido era, eu nunca ví padre entrar em política. Ele saiu e deixou encaminhada a equipe à irmã Rosa que é a chefe hoje.
Bem, ai ele disse: “Romário eu vou sair mas vai ficar uma irmã aqui. _mas sempre irmã não é como padre não é? Sempre tem um porém no meio_ e ele disse: “não, elas são boazinhas e tal”. _tá bom!_. Eu só falava disso pra ele mesmo porque na verdade as irmãs são mais exigentes querem tudo nos eixo e o padre... né? Tá certo, quando dou fé lá a irmã Rosa chega, nessa boa tarde eu tava trabalhando na farmácia ai já tem esse médico doutor Jadir que trabalhava também ele sabe que eu era uma coisa grande, todo remédio que passavam pro povo eu lá na farmácia e entregava tudo certinho.
Quando dou fé vem um noticiário por Deus ou por não sei quem lá de fora dizendo que a minha mãe tava doente ai eu chego lá com o padre e vejo a mamãe caida sem fala. internamos a mamãe lá onde é hoje a assembleia legislativa na beira do rio, naquele tempo ainda tavam fazendo aquela BR da Jorge Teixeira. Ela foi internada um mês, era um sofrimento pra mim chegar e ver a mamãe doente sem poder sair dali, sem se mover. Um dia eu perguntei pro médico: _isso ai como é que vai?_ E o médico disse assim: “Esse negócio é derrame se você quiser levar pra casa pode levar”.
Foi obrigado eu vir aqui dizer pro doutor que não dá pra continuar a trabalhar, porque a minha mãe tá numa situação assim, assim, assim e vou sair definitivo. O rapaz que ficou no meu lugar já virou até enfermeiro e ganha bem, nas minhas costas. Fui eu que chamei: _Jaú, vem cá, você vai tomar meu cargo já falei com doutor Jadir, a partir de hoje você já pode tomar conta da farmácia que eu vou atender mamãe. A irmã Rosa não queria que eu saisse de jeito nenhum. Eu saí porque não tinha quem cuidasse da mamãe, só tinha uma mulherzinha lá pra ter aquela luta todinha em casa, a mamãe não levantava, não tomava banho, fazia as fezes ali isso pra uma pessoa. Se ao menos fosse uma mulher, mas um espirro de mulher pequenininha
Quando fui embora deixei as contas e a farmácia tudo direitinho. Saí sem ser aposentado nem nada, fui obrigado a vender o terreno que eu tinha na Salgado Filho por vinte e cinco mil cruzeiros, desse dinheiro eu não tirei um tostão pra mim, só pra comprar alimentação e remédio pra ela. Quando acabou esse dinheiro agente não tinha nada pra se manter. Agente que pegava aquele monte de pílula e agora era aquela coisinha de nada, metade por metade não dá pra nada.
Eu não tinha dinheiro de jeito nenhum ai eu disse pra essa mulherzinha: _Inácia, eu vou à rua, será que dá pra fazer ao menos um chazinho pra mim?_ ai ela disse: “Romário, chá eu faço mas não tem açúcar.
Eu tenho vergonha de contar isso: Eu desci da Salgado Filho até na Gonçalves Dias com uma vergonha, pedindo a Deus coragem pra continuar, alí na Gonçalves Dias tem uma descida que tinha uma de espiritismo cheia de gente tudo sentado e não tinha um que me desse um lugar pra sentar, eu cansado porque de onde eu morava pra lá dava quatro quilômetros ou mais. Eu entrei no meiosão de gente e tinha duas ou três que sairam com o saco cheinho de rancho.
Não tinha um canto pra sentar. Uma senhora disse que ainda tinha uns dez pra se cadastrar ai fiquei em pé... deu nove, dez, onze horas e só depois que acabou tudo ela me chamou: “Seu Romário” ai já desocuparam uma cadeira pra mim ela sabia que eu tava cansado. Ela despachou o pessoal da mercadoria, cadastrou aqueles dez e eu fui o último. Eu contei muita coisa pra ela. “Seu Romário agente cadastra nesse sábado e só no outro sábado é que o senhor vem receber, o senhor vai esperar?” ai ela disse que ia na minha casa e perguntou pra empregada se tinha alguma coisa pra arrumar pra mim. Eu ganhei um saco de rancho e só não beijei ela porque não dava.
Eu fiquei alegre e já dei a mão pra um taxi, eu tinha uns cinco cruzeiros e paguei pra ele me levar em casa. Cheguei lá dona Anastácia abriu o saco e tinha arroz, feijão, macarrão, acúcar, café, manteiga, sabão, uma lata de leite pra fazer pra minha mãe, aquele fubá de milho, conserva... era tanta da coisa maizena que ela disse pra mim: “mas Romário tu foi feliz”. Ai ela foi preparar um almoçozinho rápido.
Filho de Ernesto Martins de Oliveira e Brasilina Correia, nascido em Cuiabá no dia 07/02/50. Ex. agricultor, Ex. Garimpeiro e aposentado estudou até o 2º ano primário. Seu Romualdo é uma pessoa retraída, para conseguir conversar com ele passei quase um ano demonstrando um profundo desinteresse pelo uso do gravador. Sua experiência de vida é o desdobramento da primeira frase que ele aceita gravar.
O que eu tenho pra dizer é que a maior coisa que eu tenho em minha vida é sofrimento. Até agora o maior sofrimento que tive foi ter perdido a finada minha mãe, depois disso me desgostei de minha vida, saí pelo mundo e tô sofrendo até hoje.
Trabalhei muito por esse sertão e até hoje eu vivo essa vida. Eu vivia em Mato Grosso, de lá vim pra Tangará da Serra, trabalhei dois anos numa firma só dentro da mata lutando no meio de índio, depois vim pra Ji-Paraná trabalhei um tempo ai voltei a Mato Grosso para Itangará da Serra e lá compramos uma casa: eu e meu irmão. Morei lá uns tempos, saí de novo e ele ficou.
Tornei a voltar pro Espigão d'Oeste e pra Cacoal porque eu tinha um roçado lá, mas não deu certo de eu ficar lá ai eu fui pra Transamazônica trabalhei pra lá depois desprezei a vida num garimpo lutando, lutando e nada de arrumar quase nada, fui pro Jacaré Acanga, vim pra esse garimpo do madeira e trabalhei uns tempos, depois tornei a voltar pra transamazônica e fiquei por lá. Trabalhei e arranjei terreno por lá mas era uma malária desgramada que eu quase morri. Vim pro Maitá e não tem nada no Maitá, ai me tratei da malária e tornei a voltar pra qui, ai foi o tempo que o garimpo acabou e eu fui trabalhar pelo mato em agricultura depois eu fui morar em Guajará e já não deu certo também ai eu saí, fui pra Presidente Médici, trabalhei pouco tempo ai fui trabalhar do outro lado do rio Machado. Eu tenho costume de por carteira aqui no bolso da camisa ai no cruzamento o barco ia correndo muito e eu agachei pra beber água e esqueci do diabo da carteira derepente "chiiipit" foi embora, foi obrigado vir a segunda via do meu documento o endereço dos meus filhos o rio levou embora. Eu só sei que eles estão em Campo Grande.
Quando eu estava em Espigão d'Oeste era bom, o doutor José que era o dono da firma tinha uma fazenda em Itangará, toda semana eu tinha comunicação com os meus irmãos. Eu tinha os endereços deles tudinho na minha carteira.
Eu tenho duas irmãs que moram em Cuiabá e um irmão, aliás 3 irmãos, é que tem dois no quartel, eu acho que até hoje devem de estar por lá porque eles eram engajado. Tenho uma irmã que mora na Barra do Bugre e tenho mais dois irmãos que moram em Itangará da Serra, Meu pai também se for vivo também mora em Itangará da Serra.
Sinceridade, nunca tive sorte de arrumar um meio de vida bom, só sofrimento no mato. Tudo que eu fazia era sofrendo direto e hoje é cuidando dessa doença
Um tempo eu pensei: "sabe de uma coisa: vou encarar um sítio". Me encarei num sítio na linha D na Nova Mamoré. Era um dia e meio de cacau nas costas, pra ir pra esse sítio, quando eu mudei pra lá não tinha estrada nem nada. Nesse tempo eu fui me sentido mal ai eu fui lá em Guajará, fiz exame e tudo mas não sabiam o que era.
Essas peste de doutor parece que não entendia de merda nenhuma, ai eu ficava arreliado e ia pro mato. Trabalhando tomando aquele remedinho e coisa e tal e foi indo, foi indo quando pensei que não a coisa me pegou mesmo. Pegou que não teve condições mais. Pensei: "sabe de uma coisa eu vou sair". Vim pra Vila Nova e lá coisa e tal, peguei remédio e tornei a tomar. Pra dizer a verdade eu passei quase um ano na mesma luta ai no fim das conta eu vi que o negócio não tava certo mesmo: O meu corpo foi ficando morto, dormente de tudo mesmo ai eu voltei a Vila Nova sem saber o que fazer de mim.
Já pensou chegar num sítio sem ter condições de nada... ai eu vendi um carro que tava amarrado na linha D, uma vaquinha e o navio. O Miguel que era vereador me chamou pra ir em Porto Velho mais ele. No caminho pro Hospital de Base nós fomos almoçar numa pensão não sei nem o que do Cacique, ai a mulher de lá informou que aqui tratava dessa doença.
Eu cheguei aqui em noventa e quatro e me internei uns quatro meses, depois me deram remédio e eu fui embora, tomei todo remédio e continuei a trabalhar. Foi proibido eu trabalhar no sol quente e comer certas coisas mas sabe, quem trabalha assim no mato, que não tem nada muitas vezes é obrigado a comer qualquer coisa, né? Eu fiquei mal e voltei porque o negócio tava voltando em mim de novo.
Cheguei aqui o negócio tava voltado mesmo, ai fiquei aqui dentro dois anos e oito meses, um ano em hospital e um ano e oito meses aqui no pavilhão. A doutora me garantiu que eu tava curado. Então eu voltei a trabalhar de novo e agora estou aqui. Até hoje só vivo sofrendo porque fiquei sem condições de trabalhar.
Pra eu me aposentar foi a maior tristeza. Eu sofri lá em Guajará: lutei tanto e disseram que não tinha jeito ai eu vim aqui, falei pra doutora, nós fomos lá na irmã Inês ai a irmã Inês meteu a cara em cima e vai, vai e nada. Ai fica eu pra cima e pra baixo buscando comprovante desse negócio de imposto de renda sem ter com o quê, pedindo pra um e pra outro até que me aposentei e fiquei por aqui. Um tempo eu voltei lá e passei dois anos e pouco ai eu fui tomar um banho em um baixerau com chão de barro, escorreguei e bati a cabeça. Tomei remédio lá e nada, vim pra cá de novo e fui pra esse hospital da guarnição, lá disseram que tinha uma consternado na minha cabeça pensei que ia morrer ai doutro passou remédio pra eu ir tomando, felizmente eu melhorei mas de vez em quando me ataca ainda um probleminha na cabeça.
Quando a minha mãe morreu perdi o gosto pela vida, quando penso que não, lá morre minha mulher, ai fui obrigado a dar casal de filho que eu tinha pra minha irmã. Ela levou eles pra Campo Grande e eu nunca soube notícias deles e nem eles de mim: acho que eles pensam que eu não sou mais vivo. Meu pai também abandonou os meus irmãos por causa de outra mulher, ficaram tudo abandonado e desprezado, hoje o caçula já tá com dez anos, ele ficou com outro irmão meu e o pessoal mora lá em Itangará da Serra.
Minha maior tristeza é lembrar do meu passado. Eu sei que já ajudei muita gente e ninguém me ajuda, minha vida é essa, sempre lutando. Meu pai também faleceu, já tava velhinho. Eu tenho vontade de voltar pra lá mas ao mesmo tempo eu não consigo.
No tempo que eu trabalhei na transamazônica eu tava até mais ou menos, mas lá era um lugar igual aqui: tinha um pessoal da língua muito grande que vê muita coisa. Eu namorava com uma menina e ai começaram com frescura ai o pai da moça quis brigar comigo então fui embora. Antes de minha mãe morrer trabalhei numa fazenda quase um ano depois sai de lá fui pra Bochorela trabalhei lá uns tempos e depois mudei pra cá.
Na Barra do Bugre eu peguei um emprego bom mas nunca gostei de trabalhar de empregado, não gosto de mandar e não gosto de ser mandado, comigo é desse jeito! Depois eu trabalhei na Guaporé, lá eu trabalhava folgado num barco, eu tava até bem mas a pessoa, não sei não... quando não é pra ter nada não tem mesmo não! O homem lá gostava muito de mim. Muitas vezes tu tá bem num lugar e agente vai na cabeça dos outros e só dá na cabeça da gente mesmo. Eu sai de lá e vim aqui pro Jacundá tomar conta do terreno de um homem, fiquei lá uns quatro meses até que o desgramado vendeu o terreno e carpiu no meio do mundo sem eu saber, quando pensei que não chegou outro dono trazendo uma carta pra mim e ainda queria que eu ficasse lá. Eu disse não e zarpei de novo. (9) Eu sei que eu tenho andado demais e sofrido muito mesmo... eu não sei não. Eu peço Deus que me tire dessa terra, eu não quero viver sofrendo. Aqui também é bom mas a gente é mais humilhado do que cachorro. Ô lugarzinho triste, Deus me livre!
Aqui entre nós do pavilhão não existe diferença nenhuma. Os outros companheiro são bons demais, tudo legal, pelo menos aqui do pavilhão são legal demais com a gente.
O tema aqui não busca compreender estritamente experiências masculinas mas dramas humanos diante de rupturas dolorosas, através da imagem mítica do sentimento de segurança, do medo e as maneiras como essas experiências são enfrentadas por cada narrador. Portanto essa jornada consiste em criar mediações míticas entre os textos sem homogenizá-los em estereótipos preestabelecidos nos esquemas que caracterizam a jornada do herói (origem, concepção, abandono, salvação, retorno) ou (criação, morte, ascensão aos céus, nascimentos virginais) isso não quer dizer que esses esquemas não aparecerão no desdobramento da leitura, o mito do herói não é um tema novo mas não pode ser entendido como esquema, ou formulário onde se perdem os sentidos individuais da origem, da criação e das demais fases humanas.
Essa dinâmica foi proporcionada por Duran, (1993, 1997) onde apesar de não ter tido a intenção de classificar os personagens dentro das estruturas: diurna e noturna não pude deixar de perceber que cada um correspondia a elas de variadas formas no desdobramento da leitura. Onde a diacronia da narrativa heróica pôde ser deixada em segundo plano, valorizando desta forma a sincronia do mito, onde a narrativa esteve livre das etapas estabelecidas pela mitologia para criar suas próprias mediações simbólicas que não fugisse ao sentimento e à aura do texto base, onde às vezes a saída de casa não representava na vida do narrador uma iniciação como na generalidade dos mitos, portanto a interpretação traz a imaginação sobre o sentimento de algumas etapas vividas pelos narradores como a proximidade da morte e ao mesmo tempo assumi outra identidade textual devido a relação que a mitologia tem com os contos de fadas e com os clássicos de Homero sobre os dramas humanos.
Tanto Eliade (1972, 1983, 1998), como Campbell (1949, 1990) e Jung (sd) foram utilizados para que eu pudesse reconhecer a numinosidade das imagens apresentadas pelos narradores e construir articulações dessas imagens em minhas narrativas, não desenvolvi o método de convergência oferecido por Duran, (1993, 1997) para perceber a organização dos símbolos, simplesmente adotei a idéia de punctum (Barthes, 1984) e busquei em Duran uma forma de dar movimento às imagens do meu texto através dos símbolos de cada regime das imagens: (diurna/noturna) ao passo construí a percepção de que meus narradores se defrontavam com a morte através das imagens representadas pela doença, mulher, guerra e mesmo a solidão. As dificuldades foram encontradas a medida em que cada texto assumia uma particularidade temática: (Aldenor; filho da divindade telúrica/ Aldo; filho do Pai Ogro/ Celso; filho devorado pela mãe/ José Paixão; harmonia entre o pai e a mãe/ Juvenal; herói sentimental/ Romário; pequeno polegar/ Romualdo; filho da terra). É preciso lembrar que houve uma excepcionalidade na leitura de Romário devido ao momento da entrevista, quando cheguei para entrevistá-lo ele já havia escrito no caderno parte de sua infância e como já tínhamos combinado que ele escolheria como começar tive que aceitar essa condição. alguns parágrafos de sua entrevista apresentam-se a meu ver como histórias retoricamente construídas a partir do modelo de contos infantis e em Duran (1997) percebi que poderia tecer uma relação com essas impressões primeiras. Residindo aí sua fonte de riqueza para realização da interpretação devido não apenas à sua estrutura narrativa mas ao fato de seus personagens assim como as paisagens serem assimiláveis aos contos de fadas: costureira/fiandeira, carpinteiro/lenhador, noite/engolimento pelo lobo, vaca, mancha e deformidade/imperfeição e destino, meninote e menino-homem/pequeno polegar, alimentos/retorno à casa do pai. Através de analogias com o conto do Pequeno Polegar a mitologia de Romário é tecida, é no fio do seu discurso que percebemos a importância da atividade da mãe relacionando-a com o símbolo da roca de fiar e do tempo cíclico. A elaboração da mitologia de Romário parte da idéia de sincronia com outros mitos para construção de um novo tecido. A metáfora de Romário é tecida na dimensão sincrônica: no interior do mito, com a ajuda da repetição das sequências e dos grupos de relações evidenciadas, e a comparativa com outros semelhantes (Duran, 1997: 360).
A interpretação é direcionada pela pontuação de detalhes punctuns “é portanto, uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver: ...não somente para o fantasma de uma prática, mas para a excelência absoluta de um ser, alma e corpo intricados” (Barthes, 1984: 89) os temas ou imagens podem ser universais mas não o são as vivências, são as experiências humanas que alteram e enriquecem o movimento do mito, e é nesse movimento que precisamos tentar nadar, as entrevistas não estão sendo interpretadas individualmente mas os detalhes escolhidos estão voltados para a essência percebida na emoção com que cada narrador apresenta uma situação e a partir dessa imagem tento reproduzir outras narrativas em torno do tema deste trabalho, onde o mito é uma narrativa que busca através dos autores já citados diminuir o impacto que as idéias da morte, do pecado e da velhice apresentam ou mesmo como já foi dito antes criar mediações que equilibrem esses medos, essas idéias podem aparecer para todos os narradores mas diferenciando-se no detalhe de cada construção discursiva.
1 Nunca trabalhei pra ninguém. Trabalhava em garimpo
O trabalho desloca-se das relações de produção, típicas do mundo capitalista onde são consumidos sonhos e temporalidades. Esse é um trabalho regido pelo sonho e pela imaginação da busca e captura de sentidos que traduzam a vida interior e representem os dramas que marcam a trajetória do herói mitológico. É um salto em busca do renascimento, da resignificação da origem, dos desafios enfrentados nas entre fases da vida e dos desejos... aproximando-se um pouco das técnicas de caça e agricultura, daquelas, onde o tempo não era exterior a vivência do agricultor que se sentia filho da terra coberta e fertilizada pelo céu, onde participar de uma caça era ainda preparação para a vida de um homem, que organizava e promovia os ritmos que valorizavam sua sociedade.
Em Aldenor a aventura começa por um erro de trajetória heróica: a insubordinação a alguém o impede de efetuar obedientemente o tempo exigido à iniciação ao aprendizado e a não eleição de um mestre que o acompanhasse comprometeu o aprendizado.
Aparecendo então o garimpo, um lugar dos ambiciosos, dos desesperados, desconfiados e corajosos. O garimpo é inicialmente o lugar do Outro. Um campo de batalha que faz com que os homens que se aventuram nesse universo tornem-se estrangeiros e conquistadores de um território profanado em nome da ganância. A recusa do chamado não desobriga Aldenor de uma aventura heróica. O narrador não conta os motivos que o levaram a sair de casa, mas em sua narrativa está presente a idéia da ampliação do micro universo constituído pela casa da família depois de suas viagens iniciadas pelo trabalho no garimpo.
Sua chegada assemelha-se ao começo de todos os que chegam no garimpo fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano; é pois uma atividade vã e ilusória enfim irreal (Eliade, 1972: 81). O que difere Aldenor dos outros é que, ao sair sozinho pelo mundo, buscando um modo de vida que não o submetesse à outro para obter dinheiro, ele consagra o garimpo como o lugar que sustentaria suas andanças pelo mundo. “Diante da sacralidade telúrica, de que participam as minas e os minérios... onde as cavernas e as minas são assimiladas à matriz da terra-mãe.” (Eliade, 1983: 54). Aldenor realizou tardiamente seu aprendizado submetendo-se a sacralidade feminina.
Os homens não estão ligados entre si se não pelas mães, e mesmo assim essa ligação é precária pois a terra para uma consciência religiosa “primitiva” é um dado imediato: a sua extensão, a sua solidez, a variedade do seu relevo e da vegetação que nela cresce constituem uma unidade cósmica, viva e ativa. A primeira valorização religiosa da Terra foi “indistinta”, ou seja, ela não localizava o sagrado na camada telúrica propriamente dita, mas confundia numa única unidade todas as hierofanias que se tinham realizado no meio cósmico envolvente – terra, pedras, árvores, águas, sombras... o que nos prova que a estrutura cósmica da hierofania da Terra precedeu a sua estrutura propriamente telúrica. (Eliade, 1998: 196). Portando a natureza de Aldenor não reflete a imagem da terra onde nasceu mas constitui o sentido de sua pertença ao mundo telúrico através da iniciação no garimpo.
Mesmo não reconhecendo o que virá a ser sua mitologia ou sua busca ele se deixa introduzir em um templo subterrâneo, propício às iniciações e ao sepultamento simulado, “onde a caverna é o símbólo do mundo, o lugar do nascimento... É uma imagem do cosmo: seu chão corresponde à terra, sua abóbada, ao céu”(Chevalier; Gheerbrant, 1992: 215).
O mito de Aldenor é constituído no seio da sacralidade telúrica, a metáfora da Mãe é a chave de reconhecimento ao conjunto de sinais que desvendam o mito de Aldenor, intimamente ele percebe sua ligação com a natureza humana pelo não domínio dos desejos mas não consegue definir-se a partir dessa origem pois “apenas a terra nunca é imediatamente pura e só se torna depois de uma lenta operação alquímica ou metalúrgica” (Duran, 1997: 199).
2 Deu muito pús e muito sangue depois eu levantei e não senti mais nada
Este rito representa um sacrifício iniciático, de proteção contra a morte. Onde a solução instaurada na possibilidade da morte apresenta-se como recomeço. Para que o herói reconheça sua missão e aceite sua dupla ligação (biológica e sagrada) com a entidade feminina, pois ...o sentido fundamental do sacrifício, e do sacrifício iniciático, é, contrariamente à purificação, o de ser um comércio, uma garantia... “Pagamento de uma velha conta em dívida para com a divindade no sacrifício de expiação, fatura a quitar em troca de favor já recebido”, (Duran, 1997: 310).
O sangue representa a fertilização da terra de onde renascerá o herói, Aldenor é um herói pertencente ao regime noturno da imagem, seus dramas vivenciais buscam a harmonia perdida com o sagrado, onde a transgressão às leis do pai perde a representação da queda moral e sua busca deverá ser simbolizada através da metáfora da mãe que irá promover a eufemização dos medos e perigos compensando a perda de sua força masculina incluindo-o na estrutura propriamente telúrica, é a história do nascimento das crianças. Onde “o importante é a idéia de que as crianças não são concebidas pelo pai, mas que num estágio mais ou menos avançado do seu desenvolvimento, tomam lugar no ventre materno depois de um contato entre a mulher e um objeto ou um animal do meio cósmico envolvente... O pai não é pai dos seus filhos senão no sentido jurídico e nunca no sentido biológico do termo”, (Eliade, 1998: 197).
Aldenor não reconhece a chave de sua mitologia e por isso perde o domínio sobre conjunto de sinais que libertariam o mistério do mundo materno, sendo então mordido pela cobra onde inicialmente a serpente simboliza o aprisionamento à terra (Campbell, 1990: 140), mas que perde sua característica animal pela eufemização do medo na ação do enterramento e na mudança de pele assumindo o destino que a semente partilha com o grão, tranqüilizando o herói ao lembrá-lo de sua natureza cíclica na esperança do recomeço.
O trabalho de Aldenor não é libertar-se de sua origem mas reconhecê-la desde o momento de sua iniciação por isso ele é sacrificado pelo pé, pois sendo esse o ponto de apoio do corpo na caminhada é antes de tudo um símbolo de consolidação de poder, de chefia, de realeza implicando a idéia da origem. Símbolo de poder mas também de partida e de chegada. O pé deixa sua marca sobre as veredas – boas ou más – que ele escolhe, em função do seu livre arbítrio. Inversamente o pé leva a marca do caminho – bom ou mau – percorrido” (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 695).
Quando Aldenor souber quem ele é saberá reconhecer sua origem e compreenderá que seu sofrimento é a luta, a vida e o fim da juventude chegando ao conhecimento de si, embora não consiga aprumar o pé na estrada ou esteja perdido ele tem o aprendizado de sua iniciação para trabalhar. Em sua narrativa está presente a imagem da descida, da busca pelas lembranças e do conhecimento de si. Jung diz que o sentimento dessa busca e sua energia é semelhante no jovem e no homem velho, mas que não devemos confundir os caminhos e os objetivos dessa busca pois ambos estão em patamares diferentes na escalada rumo ao conhecimento da própria vida.
Essa aventura assemelha-se à “tragetória do sol, o que a juventude encontrou fora, o homem no entardecer da vida tem que buscar dentro de si... as antigas receitas não servem mais para resolver os problemas que se colocam nessa idade. Tal relógio não permite girar os ponteiros para tráz”. (Jung, sd: 67). A presença de Aldenor é a superfície a ser trabalhada. Seu aprendizado não foi em vão, pois diante da ambiguidade de seu mundo ele pode colocar-se como escavador e sítio de escavação, realizando uma arqueologia dos valores, medos e ressentimentos que farão com que ele seja reconhecido. Essa busca não deixa de ser uma prática imaginativa de recomposição de peças significativas e auto-projeção em contextos e circunstâncias flexíveis a um desdobramento do presente enquanto fluxo de lembranças reconstruídas sobre sua vida, suas ilusões e aventuras.
Desdobrar-se: abrir-se, estender-se, desenvolver-se e alargar-se a partir de dobras sobre-postas. A tarefa de Aldenor consiste em uma inversão da ação, é um alargamento involuto na intimidade de si mesmo. Trata-se de “desaprender o medo”. É uma das razões pelas quais a imaginação da descida necessitará de mais precauções que a da ascensão... Exigirá couraças, escafandros, ou então o acompanhamento por um mentor, todo um arsenal de máquinas e maquinações mais complexas que a asa... Porque a descida arrisca-se, a todo momento a transformar-se em queda. (Durand, 1997: 201).
E assim é que se alguém – em qualquer sociedade – assumir por si mesmo a tarefa de fazer a perigosa jornada na escuridão, por meio da descida, intencional ou involuntária, aos tortuosos caminhos do seu próprio labirinto espiritual, logo se verá numa paisagem de figuras simbólicas (podendo qualquer delas devorá-lo)... trata-se de um processo de dissolução, transcendência ou transmutação das imagens infantis do nosso passado pessoal. Em nossos sonhos, os perigos, gárgulas, provações, auxiliares secretos e guias ainda são encontrados à noite... “Fiquei diante de uma caverna escura, desejando adentrá-la”, sonhou um paciente no início da análise; e tremi ao pensar que poderia não ser capaz de encontrar o caminho de volta... (Campbell, 1949: 105).
Não conhecemos os sonhos de Aldenor mas em sua narrativa podemos articular as imagens desafiadoras para percebermos o esboço da atitude humana equilibrando-se em face da morte e, dentro da dinâmica narrativa de Aldenor assimilá-lo ao mito sumeriano da descida da deusa Inana (Campbell, 1949: 108) ao mundo inferior para a junção da luz e das trevas.
“Do ‘grande acima’, ela dirigiu sua mente para
o ‘grande abaixo’
A deusa, do ‘grande acima’, dirigiu sua mente para
o ‘grande abaixo’
3 Biblicamente a história condena que o homem seja mandado ou comandado pela mulher, porque o homem é o cabeça da mulher... são situações dessas que fazem com que o homem se rebaixe para uma mulher...
E, quando a morte e o tempo forem recusados ou combatidos em nome de um desejo polêmico de eternidade, a carne sob todas as suas formas, especialmente a carne menstrual que a feminilidade é, será temida e reprovada como aliada secreta da temporalidade e da morte...o regime estritamente diurno da imaginação desconfia das seduções femininas e afasta-se dessa face temporal que um sorriso feminino ilumina. É uma atitude heróica que a imaginação diurna adota...(Duran, 1997: 121). Aldo inicialmente representa a estrutura heróica do regime diurno ao analizar as relações humanas em oposição ao imaginário da perfeição social sob a forma da trifuncionalidade (Deus, Cristo e o Homem) onde a mulher é uma personagem suspeita na realização das funções sagradas e do comando, sendo o homem o correspondente original da hierarquia divina portador de autoridade na restauração da harmonia entre o céu e a terra através da palavra que traz o conhecimento a distância.
A mitologia de Aldo é composta de símbolos pertencentes ao regime diurno pelas oposições: (batismo e purificação contra os pecados; ascenção espiritual contra os desejos da carne, sofrimento para obter a paz, perspectiva da enternidade negando os valores da vida terrena). Aldo elabora sua narrativa separando-se dos que estão contra Deus, defendendo a punição em troca do amor do pai. A oposição de Aldo se dá contra o tenebroso e negro perigo da sedução feminina e dos pequenos prazeres e vícios de uma vida mortal: mesquinhês, fofoca, inveja, luxúria, ócio etc... Onde a vida alimentada pela situação de prazer deve ser alvo de suspeita, porque é antes de tudo uma provação onde o prêmio será a eternidade. O narrador não se atreve uma definição dos mistérios da vida diante do conhecimento de Deus. É pelo ensinamento do pai que Aldo tenta vencer as armadilhas da vida e este conhecimento serve de parâmetro separador do bom e do ruím onde os companheiros dramatizam as várias etapas da queda moral, da inocência infantil, da coragem e da covardia.
Mas não poderíamos deixá-lo realizar essa dramatização excluíndo o que há de principal no teatro humano: a origem. Aldo constrói sua narrativa por um artifício retórico, onde a definição sobre a vida é constantemente exterior à sua experiência, ele está representando um narrador de tragédias ao passo que tenta diminuir sua atuação na peça, transformando a vida em personagem principal podendo a mesma tomar formas independentes subjugando os personagens aos prazeres ou ao sofrimento de acordo com seus caprichos, sem perceber que a vida já é o palco de uma trama estabelecida onde o personagem é emprestado para representá-la podendo apenas escolher entre o bem e o mal.
É nesse palco que Aldo (sem saber) representa seu drama pela purificação dos pecados e narra a existência humana diante da vida e da morte para apresentar a importância do pai na metáfora de sua mitologia. É pela ação da palavra que Aldo foge de suas experiências mundanas para representar a trajetória do caminho que acredita ser verdadeiro, onde o verbo, a (palavra úmida germinou, como o próprio princípio da vida, no ovo cósmico. É a palavra que foi dada aos homens. É o som audível considerado como uma das expressões da semente masculina, o equivalente do esperma. Ela penetra na orelha, que é outro sexo da mulher, e desce para enrolar-se em torno do útero para fecundar o germe e criar o embrião... ela é a luz que desce à terra, trazida pelos raios do sol e que se materializa, no útero terrestre ...) (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 679).
É pela palavra falada que Aldo define a língua como um orgão sexual usado por ele e pelos antigos para falar, evidenciando mais uma vez que Aldo utiliza as armas para manifestar como antítese o que seria uma vontade recalcada de integrar-se aos mistérios sem carregar o martírio do erro apontado pelo pai. Aldo sente-se prisioneiro da própria língua que nega seu do desejo sensual, não porque é fruto do pecado, mas porque busca na misoginia o dogma para a organização de um mundo cada vez mais esfacelado. O medo da morte e da maldição aparece como interiorização da culpa por ter sido desobediênte. A castidade e a imortalidade se pertencem, o casamento e a morte se pertencem (Heinemann, 1988).
O retorno a origem, ao útero é o drama que o martiriza, esse caminho contraria uma das condições específicas para o perdão, diz Agostinho, o sexo conjugal ou é desculpado (inteiramente livre de culpa) ou perdoável (um pecado venial). O coito é livre de culpa só quando ocorre para a procriação. O coito por desejo, já que ocorre dentro do casamento, é perdoado em virtude da fidelidade e assim não está livre de culpa, mas é só perdoável. (Heinemann, 1988: 108). Aldo recebe as armas do herói; consegue através do conhecimento distinguir o bem e o mal, o certo e o errado, apresenta símbolos ascencionais de transcendência mas não consegue libertar-se do encanto da imperfeição. Não esqueçamos que o narrador é o ator invisível desta tragédia ele absorve experiências alheias para ocultar-se essa é sua estética pois mesmo condenando ou criticando atitudes humanas como o suicídio, é por fascinação que o faz e ao condenar o amigo suicida que rejeita o Dom da vida observa o valor a ação, porque o amigo preparou-se dignamente, interpreta-se a situação do enforcado dizendo que não vive a vida desta terra, mas vive num sonho de idealismo mistico. Erguido por uma estranha forca... quer dizer pensamento fixo, com esta expressão se diz que o enforcado pende de sua própria doutrina, a qual se liga ao ponto extremo de dependurar nela toda sua pessoa. (Cirlot, 1984: 222).
Aldo escolheu as armas erradas para lutar contra a morte e por não harmonizar-se com a origem: a mãe, a mulher e a terra todos os desafios são tenebrosos. Ele não consegue protejer-se da morte porque escolheu a metáfora que inibe a experiência de estar vivo, e não consegue fazer a passagem eufemizante onde o antídoto do tempo já não será procurado no sobre-humano da transcendência e da pureza das essências, mas na segura e quente intimidade da substância, (Duran, 1997: 194).
Aldo não conhecia a proteção e a segurança da intimidade pelas metáforas maternas por que foi chamado pelo Pai, também assimilado ao Grande Pai Cobra. O encantamento de Aldo é anulado por temor ao pai, símbolo da geração, da posse, da dominação, do valor. Nesse sentido, ele é uma figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Ele é uma representação de toda forma de autoridade; chefe, patrão, professor, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador dos esforços de emancipação... ele mantém a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos” (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 678).
A proteção de Aldo é ameaçada pelo sentimento de culpa, de queda moral tornando-o dependente da “pura vontade de Deus” que busca esconder do filho o mistério da vida, “o paradoxo da criação, do surgir das formas temporais a partir da eternidade, é o segredo germinal do pai. Ele jamais pode ser efetivamente explicado. Em consequência, há em todo sistema teológico um ponto umbilical, um calcanhar – de – aquíles que o dedo da mãe – vida tocou e onde a possibilidade do perfeito conhecimento foi comprometida. O problema do herói consiste em penetrar em si mesmo (e por conseguinte penetrar no seu mundo) precisamente através desse ponto, em abalar e aniquilar esse nó essencial de sua limitada existência. (Campbell, 1949: 142).
Aldo não arrisca sair em busca de sua origem receoso do castigo e acredita que seu medo o protegerá da fecha, da torrente e das chamas... necessitando constantemente da “misericórdia divina” ...o arco não é senão a pura Vontade de Deus, e de um Deus raivoso, sem nenhuma Promessa ou Obrigação, que impede o Arco a todo Momento, de se embeber no vosso Sangue. (Campbell, 1949: 126).
4 Nossa casa era grande com aquelas portas de ferrolho de empurrar pra cima...
“Diz-me que casa imaginas e dir-te-ei quem és.” Es as confidências sobre o habitat são mais fáceis de fazer do que sobre o corpo ou sobre um elemento objetivamente pessoal. (Duran, 1997: 243). Celso é o herói que narra os perigos da guerra, seu retorno ao lar e os perigos da mata, mas não conseguiu substituir o ventre da mãe pelo sentimento de aventura embora se apresente como vencedor de batalhas terrificantes, existe em sua narrativa imagens que eufemizam alguns perigos, não apenas para protegê-lo, mas para torná-lo prisioneiro da lembrança de casa, da viscosidade íntima da mãe. Celso narra a experiência de todos os que vinham com ele, mas o medo do navio ser bombardeado e o silêncio não são os mesmos, pois enquanto todos vinham atracados com salva vidas a imaginação do narrador era duplamente embalada pelo movimento do barco e pelo aconchego da rede.
A alegria de navegar é sempre ameaçada pelo medo de “soçobrar”, mas são os valores da intimidade que triunfam e “salvam” Moisés das vicissitudes da viagem. É o que nos permite negligenciar de momento o caráter dramático da embarcação, a peripécia da viagem que confunde barca lunar e carro solar, para apenas fixarmos o arquétipo tranquilizador do invólucro protetor, do navio fechado, do habitáculo... o gosto pelo navio é sempre alegria em fechar-se perfeitamente... Gostar de navios é a acima de tudo gostar de uma casa superlativa, porque fechada sem remissão... o navio é um fato de hábitat antes de ser meio de transporte, (Duran, 1997: 251).
Celso é um herói não iniciado, despreparado e temeroso devido ao prolongamento da função de sua alimentadora, protetora e guia, justificando assim sua saída tardia aos trinta e um anos de idade. A imagem de sua casa é sempre povoada de figuras femininas dominando o lado de fora: a mãe que fecha a porta obstruindo o local de passagem dos dois mundos conhecido e desconhecido, a irmã que perfura os olhos da casa com a cabeça para dizer que depois de oitos anos fora de casa ele ainda é o mesmo filho e o irmão querido carente de proteção “mamãe é o Celso”. O desejo do narrador era chegar em casa sem ser reconhecido por elas, mas mesmo com a mudança da casa e sua viagem ele ainda é prisioneiro do ventre materno. A mãe que é ao mesmo tempo desejada pela ternura, pelo calor e pelo abrigo alimentador é também devoradora por Ter projetado no filho o medo do desconhecido localizado do lado de fora. A mãe sempre o esperava preocupada interrogando-o sobre os acontecimento da rua e depois fechando a porta.
Porta em psicanálise, é um símbolo feminino que por outro lado implica o significado do buraco, do que permite a passagem e é, conseqüentemente, contrário ao muro, (Cirlot, 1984: 472). Esse era o desejo do herói, emancipar-se e tornar-se homem, mas a mãe sempre fechava a porta. Nas litanias da Imaculada Conceição, a Igreja dá a virgem os epítetos de Porta fechada de Ezequiel, Porta do Oriente e Porta do céu. Maria é as vezes, representada na iconografia medieval sob a forma de um porta fechada, ”(Chevalier; Gheerbrant, 1992: 736). Por isso ele nunca quis se casar: Celso já havia sido devorado pela influência da mãe aproximando-o do limiar e fechando-lhe a porta, abrigando-o sempre que o filho reconhecesse os perigos da mulher, da noite e da floresta e fugisse buscando pelo colo materno. O inimigo estava oculto no seio materno, esse era o lugar de onde Celso deveria fugir guiado por um mestre ou uma entidade sagrada que o alertasse dos perigos que a mãe pode representar fora dos limites da casa, domesticando seus mistérios ele estaria liberto da sedução malévola da figura feminina.
Segundo Jung a anima é uma figura interior na qual o homem descobre a personificação feminina de suas tendências psicológicas. Nas suas manifestações individuais o caráter da anima de um homem é, em geral, determinado por sua mãe. Se o homem sente que a mãe teve sobre ele uma influência negativa, sua anima vai expressar-se, muitas vezes, de maneira irritada, depressiva, incerta, insegura e susceptível. (No entanto, se ele for capaz de dominar estas investidas de cunho negativa, elas poderão, ao contrário, servir para fortalecer-lhe a masculinidade.), (Jung, sd: 177). A mãe é a representação da insegurança diante das promessas femininas de salvação que sempre estiveram presentes na vida do herói: a figura negativa da mãe pode aparecer de várias formas: mulher ou barca, os homens projetam a anima em objetos como em mulheres. Por exemplo, uma embarcação é sempre chamada de “ela”... (Jung, sd: 183).
O mar, os oceanos são considerados assim como a fonte da vida e o final da mesma “voltar ao mar” é como “retornar à mãe” morrer, a ilha tem a mesma ambivalência o mar e a terra são símbolos do corpo materno. A floresta corresponde ao princípio feminino, como lugar onde floresce abundante a vida vegetal, não dominada nem cultivada, e que oculta a luz do sol, torna-se potência contraposta a este. A selva fechada ao sol. A simbologia feminina havia cercado Celso por todos os lados a ponto do mesmo não conseguir dominar seus medos e aventurar-se em outros caminhos em busca da harmonia que lhe restituíssem a possibilidade de uma aventura sem medo.
5 A vida do nordestino que entra aqui na primeira vez é sofrida...
A narrativa de José Paixão é marcada pelo nordeste enquanto experiência anterior à sua chegada à Amazônia transformando-a em limiar. O herói nordestino é recebido na Amazônia como estranho devido à sua origem. A sequidão é o clima da espiritualidade pura e ascética, o narrador sai da terra e da proteção do sol para responder ao chamado da floresta negra, a fonte úmida que murmura os segredos da vida e da morte. A floresta assume neste momento a imagem do deserto como o mundo afastado de Deus, o covil dos demônios (Mateus, 12: 43), (Lucas, 8: 29) é o lugar onde o narrador será iniciado e provado até que seja servido pela grande mãe. Esse primeiro estágio da jornada mitológica – que denominamos aqui “o chamado da aventura” – significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região dos tesouros e dos perigos, pode ser representado sob várias formas: como uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, a parte inferior das ondas, a parte superior do céu, uma ilha secreta...(Campbell, 1949: 66), não sendo apenas estes os indícios de uma aventura heróica, pois outros receberam sua provação por mofas e por acoites, deveras, mais do que isso, por laços e prisões... e o mundo não era digno deles, vagueavam pelos desertos, e pelas montanhas, e pelas cavernas e pelas covas da terra, (Hebreus, 11: 36-38)
O narrador sai de casa e permanece protegido pela lembrança do pai, pois só este pode confortá-lo na solidão traindo o sentimento da ausência quando seu filho encontra-se preso no seringal da floresta, no ventre da mãe terra, no fim do mundo como ele mesmo diz. É através dessa iniciação que ele enfrenta os desafios impostos pelos guardiões da grande mãe, segundo Jung a floresta é o local onde são projetados os medos e os terrores da infância presentes nos contos de fadas. A provação é um aprofundamento do problema do primeiro limiar e a questão ainda está em jogo: pode o ego entregar-se à morte? ... a partida original para a terra das provas representou tão somente, o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos momentos de iluminação. (Campbell, 1949: 110).
José Paixão enfrentou os desafios da floresta para que a metáfora do pai não prevalecesse em sua mitologia, sua missão é manter o equilíbrio e humildade diante das leis do pai e da natureza humana representada pela mãe. Nessa provação o herói deve depositar a esperança num sentimento que o isole do aspecto ogro do pai quando este estiver diante dos mistérios da mãe. Na maioria das mitologias, as imagens da misericórdia e da graça apresentam-se tão vívidas quanto as da justiça e da ira, mantendo-se, portanto o equilíbrio; e o coração em vez de entregue à destruição, é protegido. “Não temas, pois tudo está nas mãos de Deus. Todas as formas que nascem e fenecem – das quais vosso corpo não é senão uma – são as chamas dos meus membros que dançam. Conheceis-Me em tudo – a que deveríeis temer? (Campbell, 1949: 128).
É pela fé que José Paixão se assemelha à Jó, o herói leproso que mesmo sentindo a fragilidade de sua força e de sua segurança a culpa não bate à sua consciência, o abandono não diminui sua relação com o sagrado. Devemos Ter fé que o pai é misericordioso... com isso, o centro da crença é afastado da tenaz apertada e escamosa do deus atormentador, e os ogros ameaçadores desaparecem. Ele é protegido ao longo de todas as assustadoras experiências da iniciação, fragilizadora do ego, do pai. Pois, se for impossível confiar na terrível face do pai, nossa fé deve concentrar-se em algum outro lugar (Mulher Aranha, Mãe Abençoada); e, com essa confiança necessária ao apoio, suportamos a crise – apenas para descobrir, no final de tudo, que o pai e a mãe se refletem um ao outro e são, em essência, a mesma coisa, (Campbell, 1949: 128).
6 Pra dividir a vida a beleza não importa...
A aventura de Juvenal é compreender que a triste verdade consiste de um complexo de fatores antagônicos inexoráveis: O dia e a noite, o nascimento e a morte a felicidade e o sofrimento, o bem e o mal. Não nos resta nem a certeza de que um dia um destes fatores vai prevalecer sobre o outro, que o bem vai se transformar em mal, ou que a alegria há de derrotar a dor. (Jung, sd: 85). Daí a importância do casamento, não como um simples caso de amor, é uma provação... é o sacrifício do ego em benefício da relação por meio da qual dois se tornam um (Campbell 1990: 148). O casamento será a armadura contra a perseguição do tempo apresentando-se como o temor da vida, destruição e morte.
O matrimônio é o reconhecimento de uma identidade espiritual, serão os dois uma só carne, e assim já não serão dois, mas uma só carne (S. Marcos, 10:8). Segundo Campbell o primeiro estágio do casamento é guiado pelo impulso concedido pela natureza, da inter-relação dos sexos para produzir crianças, esse período é compreendido quando Juvenal embebido no sentimento de perda percebe sua situação no cosmos ao lembrar nostalgicamente da ilha onde nasceu, do lugar onde criou os filhos e da sua relação com a mãe natureza
Que vantagem tem o homem, de todo seu trabalho, que ele faz debaixo do sol? Uma geração vai, e outra geração vem: mas a terra sempre permanece... todos os ribeiros vão para o mar e contudo o mar não se enche; o lugar para onde os ribeiros vão, para aí tornam eles a ir... o que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: de modo que nada há de novo de baixo do sol. (Eclesiastes, I: 4, 7, 9). Juvenal não percebia o privilégio da vida que tinha e é através da lembrança que ele avalia que o lugar onde vivia tinha a imagem arquetípica da ilha repleta de prazeres secretos aquecidos pela casa na beira do rio largo e arejado, recriando desta forma o mito das Ilhas Afortunadas ou do Paraíso Terrestre, que não só perturbou a imaginação dos profanos mas também a ciência náutica até a gloriosa época dos grandes descobrimentos marítimos... essas ilhas e terras novas conservaram o seu caráter mítico muito tempo depois de a geografia se Ter tornado científica. “A ilha dos Bem- Aventurados” sobreviveu a Camões, atravessou o século das luzes, a época do romantismo e não perdeu seu lugar no nosso tempo. Mas a ilha mítica já não significa, para o futuro, o Paraíso Terrestre: ela é a ilha dos amores (Camões), a ilha do “bom selvagem” (Daniel de Foe) ... uma região de sonho com belezas secretas, a ilha da liberdade, do jazz, do repouso perfeito... (Eliade, 1998: 353-354) é pela imaginação que podemos nos aproximar da vivência de Juvenal para que esta ilha possa apresentar a multiplicidade de suas promessas e de suas ameaças. A ilha tem assim como a lua uma ligação muito próxima da mulher e da mãe e ambas tem ambivalência com o símbolo da morte, a visão desse paraíso representa a jovialidade da esposa diante dos mistérios da vida e a constante ameaça de Cronos: tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu, (Eclesiastes, 3: 1) no fim o tempo vencerá a todos, levando pelos braços da morte cada um há seu tempo.
7 eu não tenho nada, mas olhe pra mim e veja que sou um homem de vergonha...
As pernas de ferro: os seus pés em parte ferro e em parte de barro... E como os dedos dos pés eram em parte de ferro e em parte barro, assim por uma parte o reino será forte e por outra será fraco. (Daniel, 2: 33, 42). A perna mecânica anuncia o fim da segurança que a força física do homem representa, a união do casal precisa ser resignificada pois o tempo está cumprindo sua ameaça: as crianças emancipam-se evidenciando o envelhecimento quando o casal é deixado para trás. É chegada a hora da provação, onde o sacrifício não é feito em nome de um e de outro, mas em nome da unidade da relação.
A morte precoce do filho mais próximo e mais amado é o teste na unidade do casal, o tempo aterroriza a díade contrariando a lei da própria natureza humana, a dor de ver um filho morrer antes do pai se iguala ao lamento pela morte de Aquiles de grande glória e vida curta e ao mesmo tempo assimila a dor de Juvenal ao sofrimento de Priámo, pai de Heitor, nas dificuldades encontradas para dar ao filho um retorno sagrado ao leito da mãe terra. Em meio ao desespero é melhor serem dois do que um... porque se um cair o outro levanta o seu companheiro: mas ai do que estiver só ... também se dois dormirem juntos, eles se aquentarão; mas um só como se aquentará? (Eclesiastes, 4: 9-11).
Nas trevas a mulher é o amparo que subtrai o desespero de Juvenal. Diante da terrível verdade que emana do abismo da vida, é ela quem, na intimidade dos cômodos da casa, dos alimentos quentes e frescos servidos à mesa ainda mantém a ordem das coisas contra a exterioridade dos acontecimentos. A mulher representa na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende... ela jamais pode ser maior do que ele... Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto, serão libertados de todas as limitações. Vista por olhos inferiores, é reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é condenada à banalidade e à feiura. Mas é redimida pelos olhos da compreensão. O herói que puder considerá-la tal como ela é, sem comoção indevida, mas com gentileza e a segurança que ela requer traz em si o potencial do rei. (Campbell, 1949: 117).
8 Ai vamos sofrer de tudo sem recursos pois nada tínhamos de valor, só uma máquina de costura...
A costureira é a mulher que protege o herói do destino eminentemente determinado após a morte do pai, utilizando para isso a única preciosidade que tinha em casa. Segundo Duran (1997: 322-323) os instrumentos e os produtos da tecedura e da fiação são universalmente símbolos do devir. Onde o ato de costurar com agulha e fio ou tecido leva-nos ao simbolismo do tempo. A narrativa de Romário é dominada pela tentativa de proteção pelos valores femininos criando a harmonia familiar para que a mãe consiga suprir a ausência do pai. A aventura de Romário consiste em dominar a maior parcela de tempo necessária para o cumprimento de sua aventura, para isso o auxílio da mãe enquanto portadora de conhecimentos divinos transforma sua jornada em dobras sobrepostas de aventuras vividas por personagens de histórias fabulosas evitando que o filho seja tragado pelo destino antes de fazer sua iniciação e de completar sua jornada.
As lavadeiras e fiandeiras são personagens que surgem nos contos de fadas para beneficiar o destino dos personagens em troca de favores, a mãe de Romário é a manipuladora da arte de tecer podendo também ser assimilada ao trabalhador da lavoura associando-se à obra criadora, onde o discurso de Romário é o campo cultivado devido à fecundidade dos símbolos que multiplicam as imagens de sua experiência, o fio da mitologia de Romário é orientado passo a passo pelos enlaces da tecelã.
A mãe não pode evitar o destino do filho, mas ao enfiar o fio na agulha ela sai do cosmo e participa de seus variados níveis (infernal, celeste e terrestre) e conhece através das deusas do destino (moiras), a parcela de sorte que toca a cada um neste mundo. Cada ser humano tem sua parte, seu quinhão de vida, de felicidade e de desgraça. (Brandão, 1997: 232) mesmo não tendo forças para lutar contra o destino individual do filho a tecelã segura o fuso, vai puxando o fio da vida e tecendo. Existe igualmente uma sobredeterminação benéfica do tecido. O tecido, tal como o fio, é antes de mais um ligador (lien), mas é também ligação tranqüilizante, é símbolo de continuidade, sobredeterminado no inconsciente coletivo pela técnica “circular” ou rítmica da sua produção. O tecido é o que se opõe à descontinuidade, ao rasgo e à ruptura. É a trama... pode-se mesmo encarar uma revalorização completa do ligador com o que “junta” duas partes separadas, o que repara um hiato. (Duran, 1997: 322).
Diferente do ciclo de Penélope que tecia durante o dia e desfazia o trabalho à noite para adiar a promessa, a mãe de Romário compõe a mitologia do filho através de destinos alheios, pensando assim poder confundir a morte ou retardar a desgraça que acompanhava o destino do filho. Os dois trabalhos estão ligados pela simbologia da noite, universo imaginário onde uma desfaz e outra redobra a aparência do filho com o pequeno polegar dos contos de fadas: Romário é aceito como filho, na família de um carpinteiro por ser um menino habilidoso e trabalhador. Através da sua dedicação consegue proteger a mãe do trabalho pesado sem perceber que tudo foi obra da própria tecelã para, através do carpinteiro assimilá-lo ao pequeno filho da fiandeira e do lenhador da floresta, onde o filho revelou-se uma criança vivaz e esperta, sabendo sair-se bem em todos os empreendimentos... (Grim, sd: 223).
O carpinteiro não determina a iniciação de Romário, ele apenas aparece para confundir o destino desastroso que o persegue, ele faz parte da porção de fio que tapa as evidências do momento prometido, fazendo com que o herói ganhe tempo até passar pela iniciação e poder enfrentar os desafios. Esse tempo de trabalho com o senhor Urbano era o mesmo tempo em que Romário não sentia nada, apenas via aquela mancha sem saber o que o destino lhe reservara.
No mito de Romário a grande heroína é a mãe, é ela quem se recolhe durante o dia para proteger a casa e a roda de fiar, evitando que essa roda tome a forma do destino terrificante da carruagem e do carro de fogo. É um trabalho realizado pela reclusão diurna e pelas suas misteriosas visitas noturnas ao universo desconhecido até mesmo pelo próprio filho. A casa de Romário só é visitada à noite por figuras bondosas masculinas: o carpinteiro e o futuro marido, e ambos sempre esperam a mãe de Romário chegar de um lugar impreciso justificado pelo trabalho de costura nunca presenciado ou procurado pelos supostos clientes. Diversas iniciações femininas, principalmente na China, incluíam um trabalho de tecelagem ritual associado à reclusão, à noite e ao inverno, pois sua participação na tecedura cósmica torna esse trabalho perigoso, e por isso tem de ser mantido em segredo, pois é um trabalho de criação, um parto: tecer não significa reunir realidades diversas (com relação ao plano cosmológico), mas também criar, fazer sair da própria substância, exatamente como faz a aranha, que tira de si a própria teia (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 872).
Os dois: mãe e filho diferenciam-se dos trabalhos ditos masculinos: trabalhos diurnos e do verão. Romário às vezes era acordado para trabalhar no mesmo universo fantasioso dos contos de fadas, propício aos perigos imaginados dentro da floresta e pelas criaturas das trevas e, assim como o Pequeno Polegar fazia todo empenho para ser sempre recompensado em dinheiro. A hipérbole dos mistérios da noite é apresentada por Romário a partir do elemento engolidor, que se define pelo redobramento da imagem pela qual se apresenta o personagem: órfão de pai, meninote e magrinho que trabalha a noite toda, essa inicial atitude indefesa de Romário consegue assegurar a identificação com o Pequeno Polegar, que, ao ser vendido pelo pai também entra no universo noturno ao ser engolido por animais até retornar para casa na barriga de um lobo. A noite não se apresenta para Romário com apenas um aspecto terrificante do tempo ou da sacralidade feminina, quando ele diz que trabalhava a noite toda ele traz a representação do espaço noturno, do lugar fechado da mata onde mesmo durante o dia os raios do sol são reprimidos deixando o herói a mercê de monstros e feras maléficas. Assim como o Pequeno Polegar Romário foi engolido e ameaçado pela possibilidade de ser devorado.
O engolimento não é entendido aqui como um desafio a ser enfrentado pelo herói é uma metáfora para miniaturizar o personagem ao extremo, talvez para dar-lhes um valor mágico e misterioso diante das vitórias e, por algum motivo a semelhança dos dois pequeninos é redobrada pela ausência de um prêmio que represente uma princesa agradecida e conquistada ou um casamento sagrado levando-nos à imaginar que a não realização amorosa deve-se à deformidade: um por ser do tamanho de um polegar: um anão e outro por ter a viuvez marcada pela mesma doença que o deixou com rosto de velho. Toda deformidade é sinal de mistério. Seja maléfico, seja benéfico. Como qualquer anomalia, ela comporta uma primeira reação de repulsa; mas é o lugar ou o signo da predileção para esconder coisas muito preciosas, que exigem um esforço para serem conquistadas... os cegos têm capacidade de ver a outra face das coisas... é sabido, tem fama de vidente, no sentido de clarividente. Da mesma forma que o surdo pode ouvir o inaudível (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 328).
A assimilação entre os dois personagens é a porção de fio que a tecelã utilizou para ocultar o filho do momento desastroso, mantendo-o sempre atento aos valores da casa, às necessidades íntimas do lar, sem saber que, assim como Aquíles seu filho tinha um ponto fraco: a mancha que o mesmo ocultava da mãe e do padrasto. Mancha é um símbolo de degradação, de uma anomalia ou de uma desordem: é no seu gênero, algo antinatural e monstruoso. Seja o efeito do envelhecimento das coisas que se desgastam, ou o resultado de um acidente, a mancha revela a contingência do ser, cuja perfeição quando atingida, tem pouca duração. É a marca da fraquesa e da morte, (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 585). A mancha é a parcela do tecido que a tecelã não encobriu e que por ironia do destino sembre esteve ligada à anomalia do Pequeno Polegar, a proteção do pequeno herói é passageira como as projeções que fazemos com as nuvens do céu. Romário não poderia ludibriar o destino para sempre, um dia teria que sair de casa mesmo contra a vontada da mãe.
Romário foi iniciado nos segredos da mata, o gosto que ele diz ter tomado das matas é sua pertença ao ciclo da Mãe-Terra, protegendo-o da exterioridade do tempo de guerra, seu trabalho torna-se a proteção contra os malefícios do destino por ser executado com boa fé, constância e consciência de colaboração na obra geral: tempo da seringa, da castanha e da poalha, esse elemento reveste-se de um sentido místico ou simbólico. O trabalho assimila-se ao labor lento e paciente do Alquimista, que espera menos a transmutação de suas operações e muito mais de sua atitude espiritual em relação a elas e da doação de si mesmo à empresa que realiza, (Cirlot, 1984: 577).
Essa é a experiência que vai proteger o herói da fome e do abandono quando o mesmo encontrar-se expulso da cidade em meio à sua tragédia pessoal. Romário só sente o tormento da mancha quando entra na mata, o aspecto negro e terrível do universo maléfico da noite se apresenta quando ele percebe que caiu no lugar onde existem pessoas em condições piores que ele, a mutilação aparece na maior parte das vezes como desqualificação, mas essa – consequência – totalmente social – de mutilação não afeta verdadeiramente o sentido simbólico dessa palavra. Para compreender isso é necessário lembrar que a ordem da cidade é par. O homem fica de pé sobre duas pernas, trabalha com os dois braços, vê a realidade visível com dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, a ordem oculta, noturna, transcedental é, por princípio, una e se apoia sobre um vértice, como a dançaria ou a pirâmide invertida. O deformado, o amputado, o estropiado têm isso em comum: acham-se colocados à margem da sociedade humana – ou diurna – pelo fato de que a paridade, entre eles, é atingida. Eles participam, pois daqui para frente da outra ordem, a da noite, infernal ou celeste, (Chevalier; Gheerbrant, 1992: 628).
Demorou muito tempo para que Romário percebesse que havia caído na mesma trajetória de Dante, pelo sentimento de perdição e pelo pavor do inferno mas, diferente do herói da Divina Comédia ele não estava de passagem, ele participava do mesmo horror que inicialmente percebia nos outros, até que esta mutilação revestiu-se em um valor simbólico do sacrifício iniciático. Através desse sacrifício Romário utiliza o aspecto inteligível do Pequeno Polegar para conseguir uma ferramenta de trabalho e proteger-se da fome quando se encontra distante de casa. Em o Pequeno Polegar estão misturados dois temas folclóricos, num tipo raro de contaminação: o tema das crianças abandonadas na floresta e o da pequenez do personagem. O primeiro está em João e Maria, o tema do personagem pequenino como um polegar ou como um grão de milho está presente na tradição oral de vários povos. Na Grécia é um grão – de – pimenta e na África um pequeno – cabeça- grande... (Mendes, 2000: 103). Na experiência de Romário essas imagens são redobradas pelo caminho de casa e pela mesma euforia que os heróis do conto de fadas sentiam diante do banquete, dos três desejos, da casa de chocolate repleta de tortas e bolos, suas vitórias sempre estavam relacionados com os alimentos. A mesa farta é sinal de segurança de calor e harmonia. É por falta de comida que as crianças são abandonadas pelo pai, para que sejam devoradas na floresta; O Pequeno Polegar para sair da barriga do lobo promete ao mesmo um lugar repleto de comida e chegando em casa é salvo pelos pais. Romário também sai de casa por falta de comida, sua missão é trazer conforto ao lar, ele é o responsável pela segurança e por isso seu prêmio é recebido com satisfação.
9 Eu sei que tenho andado demais e sofrido muito mesmo... Eu peço a Deus que me tire dessa terra...
Bem sei, ó Jeová, que não é do homem terreno o teu caminho. Não é do homem que anda o dirigir seu passo, (Jeremias, 10: 23). Romualdo acredita que seu destino é a não realização dos seus trabalhos e não compreende porque não consegue realizar o desejo de rever sua casa. Romualdo revoltou-se contra a vontade divina que tirou a vida de sua mãe, não conseguindo aceitar esse acontecimento depois da morte da esposa abandonou seus filhos e murmurou continuamente contra as resoluções do pai, sem imaginar que seu castigo seria um caminho de lamentações. O sentimento de perda vem ligado ao de culpa e também ao pressentimento de purificação, à idéia de peregrinação e de viagem. Por outro lado, o tema de perder-se e tornar a encontrar-se ou do objeto perdido que angustia ao extremo, é paralelo ao da morte e da ressurreição, (Cirlot, 1984: 457).
As longas e dolorosas viagens são muitas vezes determinadas por algum deus em fúria contra o filho desobediente, como fez o Deus de Israel: Nenhum único homem dentre estes homens desta geração má verá a boa terra que jurei aos vossos pais, (Deuteronômio, 4: 35) e por alguma coincidência a punição está relacionada ao distanciamento da Mãe-Terra simbolizando a Pátria, a casa de origem. Seja ela Israel para os hebreus seja Ítaca para Ulisses. Essa aventura transforma o viajante num peregrino, concordando com o grande mito da origem celeste do homem, sua ‘queda’ e sua aspiração a retornar à pátria celestial, tudo isto dando ao ser humano um caráter de estrangeiro na morada terrena, o homem parte e regressa.
Romualdo não recebe chamado e nem tão pouco é iniciado, quando entra no garimpo ou quando trabalha na agricultura, sua atividade não é reconhecida através dos modelos míticos, por essa razão ele não consegue manter-se em um mesmo ritmo de trabalho por melhor que este lhe pareça, o sentimento de falta sempre o levará para longe, não importa onde esteja seus recomeços serão interrompidos pela não iniciação. Então eu da minha parte, vos farei o seguinte, e certamente trarei sobre vós como punição a perturbação com tuberculose e a febre ardente, fazendo os olhos falharem e a alma definhar-se. E semeareis simplesmente em vão a vossa semente, visto que os vossos inimigos certamente a comerão... e se com isso, porém, não me escutardes e simplesmente tiverdes de andar em oposição a mim, então eu terei de andar em oposição a vós. (Levítico, 16: 27). Porém, depois de terdes sofrido por um pouco, o próprio Deus de toda benignidade imerecida, que vos chamou à sua eterna glória... completará o vosso treinamento; ele vos fará firmes, ele vos fará fortes (I Pedro, 5: 10).
Por falta de uma relação sagrada Romualdo transforma sua vida em autopunição pagando parte de sua penitência no garimpo, sua experiência é assimilada à chegada de Aldenor assim como a de muitos aventureiros que saem para terras estrangeiras pensando dominá-las sem Ter de reconhecer seus deuses incorrendo desta forma em compressões errôneas e criando através do erro ilusões desastrosas. Romualdo lembra que quando foi ao garimpo simplesmente desprezou a vida por um sonho irreal de riqueza; evidenciando o destino de muitos aventureiros que acreditaram nas derivações errôneas que os conquistadores que saiam em busca de riquezas através de saques de terras estrangeiras fizeram sobre o mito do Eldorado ou El Dorado, o mito deriva do costume, entre as tribos da Colômbia ao Equador, pelo qual o monarca, filho do Sol, recobria-se de pó de ouro antes de banhar-se no lago sagrado. Muitos buscaram, lutaram e morreram por esta terra sem saber que estavam depositando suas vidas em ilusões perdidas.
10 o barco ia correndo e eu agachei pra beber àgua
No garimpo o que diferenciou Aldenor dos outros foi sua iniciação nas cavernas e na escavação da terra, e o que identifica Romualdo não é um simples desprezo pela vida, estar vivo ou morto não garante o fim do sofrimento daqueles que se perderam do caminho abençoado, a morte só é desejada quando perde seu aspecto tenebroso e apresenta-se como a oferta do caminho e da trilha para o paraíso, pois assim como as almas que peregrinam, ele quer ser levado por Deus para longe da terra que lhe causa tanto sofrimento. O desejo de libertar-se da prisão de estar vivo sendo estrangeiro onde quer que esteja e do destino de lamentações é percebido quando o herói fica em posição de intimidade diante de um atributo que, antes de ser sagrado é pertencente à sacralidade feminina. A terra é percebida tanto por Eliade como por Campbell como a mãe dos homens enquanto a água é a mãe do Cosmo e ambas estão ligadas ao mundo noturno dos mistérios da vida e da morte, o herói precisa enfrentar os desafios noturnos reconhecendo e respeitando sua origem aprendendo dessa forma a harmonizar os desejos, obrigações e desafios entre o céu e a terra.
Romualdo inclina-se e, no curso desse movimento as águas tomam formas noturnas ...e que pode desempenhar o papel de motivação subalterna: as lágrimas. Lágrimas que podem introduzir indiretamente no tema do afogamento... A água estaria ligada às lágrimas por um caráter íntimo, seriam umas e outras a matéria do desespero. (Duran, 1997: 99). O agachamento de Romualdo não resulta de um afogamento, por isso sai da hipérbole de um ato de desespero causado pela sensação de perda total, mas nem por isso deixa de simbolizar um encerramento e um fim para o reencontro com os irmãos e os filhos, o rio levou embora essa possibilidade de reconstruir a intimidade através do acolhimento da família, restando apenas a intimidade que as almas necessitam, essa intimidade é simbolizada pelo descanso e como libertação de sua peregrinação.
E eu estava esperando que alguém se compadecesse de mim, mas não havia ninguém. E consoladores mas não achei nenhum (Salmos, 69: 20). O abandono faz com que a sede de Romualdo tome formas específicas diferenciando-se da sede de vida e do impulso cego de gozo, diminuindo assim a face terrificante da morte que é enviada para castigar o filho indigno. Nas diversas concepções da morte, o defunto não morre definitivamente, mas adquire apenas um modo elementar de existência; é uma regressão, não uma extinção final. Na expectativa de retorno ao circuito cósmico (transmigração) ou de libertação definitiva, a alma do morto sofre e este sofrimento exprime-se habitualmente pela sede. (Eliade, 1998: 98). A morte é esperada com ansiedade como libertadora do inferno que prolonga a vida de Romualdo.
O complexo de regresso à mãe vem inverter e sobredeterminar a valorização da própria morte e do sepulcro... a vida não é mais que a separação das entranhas da terra, a morte reduz-se a um retorno à casa... em numerosas culturas, na Escandinávia, por exemplo, o doente ou o moribundo é revigorado pelo enterramento ou pela simples passagem na fenda de uma rocha. Por fim muitos povos enterram os mortos na postura fetal, marcando assim nitidamente a vontade de ver na morte a inversão do terror naturalmente experimentado em um símbolo de repouso primordial. (Duran, 1997: 237). Segundo Duran essa inversão permite o isomorfismo do sepulcro-berço. A terra torna-se berço mágico onde o herói será recebido e aquecido não porque morreu mas para que descanse no côncavo seguro do seio materno. O próprio fato de desejar e de imaginar a morte como um repouso, um sono, eufemiza-se e destrói-a (Duran, 1993: 100).
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