HISTÓRIA ORAL COM HOMENS
DA COMUNIDADE SANTA MARCELINA - RO
CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE - UFRO
CADERNO DE CAMPO
Esse relato passou por um processo de reescritura ou de transcriação onde retirei dele algumas datas, e episódios repetitivos das visitas que foram feitas de dezembro de 1999 até fevereiro 2002 para que a leitura não ficasse cansativa. Minhas anotações eram feitas a cada visita à Comunidade independente de fazer entrevistas ou não, mas na oficialização da monografia sistematizei as anotações aos momentos de entrevistas, à conferências e observações gerais sobre os colaboradores.
Na primeira visita senti como se nunca houvesse estado naquele lugar, porque as razões que me levaram lá me faziam ver o lugar com a dimensão de uma cidade onde antes eu via apenas um hospital. Fui com a intenção de conhecer moradores como particularidades que eram: ser doentes ou ex-doentes, moradores de casas e pavilhões. Não estava preocupada com o que ia fazer com as entrevistas, queria conhecê-los, saber de onde vieram e saber quem é seu Adálio (à princípio o ponto idealizador do projeto: A CIDADE DOS EXCLUÍDOS). Durante o caminho fomos orientados por Fabíola no sentido do nosso relacionamento com eles, nossa postura diante deles incluindo nossas vestimentas e conversas por se tratar de uma Comunidade fechada.
Assim que chegamos Fabíola entrou na residência das irmãs para conversar e pedir autorização para a pesquisa, depois fomos apresentados e alertados de não interferir-mos na organização rotineira dos moradores, principalmente em se tratando de religião, essa foi uma exigência fundamental para conseguir-mos autorização para visitas. A casa das freiras causou a impressão de ser uma fortaleza e um paraíso: dois portões impedindo a visão da entrada residencial, além de trepadeiras cortinando os muros vi apenas uma parte do telhado e uma câmera na lateral da guarita de recepção. Essa fortaleza só é atribuída ao lugar das freiras, como se não vivessem todos em comunidade, mesmo sendo elas as organizadoras e as representantes do governo. Naquele momento pensei: se são todas respeitadas e queridas pelo trabalho que desenvolvem, então porque tanta segurança? O que escondem, fazem ou desejam por detrás daqueles muros?
Vi crianças uniformizadas carregando refrigerantes para escola, pensei em alguma festividade mas ainda não sabia como se organizavam o comércio nem a escola, na verdade a única coisa que me chamou a atenção naquela visita foi minha impotência diante do misterioso silêncio da casa das freiras. Depois da permissão fomos ao pavilhão procurar seu Adálio e nos disseram que ele foi embora para o Candeias, eu fiquei surpresa, como uma pessoa pode querer sair de um lugar bonito, calmo, da companhia dos amigos ainda mais quando se trata de um idoso e deficiente. O que o diferencia das outras pessoas para não mais ficar ali?
A segunda visita à Comunidade foi nosso primeiro contato com os moradores, então como já havia sido programado entre o grupo eu me dirigi ao pavilhão e Ariana à casa das freiras. Procurei pelo seu Pedro Catolé que já havia sido citado por Fabíola. Seu Antônio Moura me acompanhou até o quarto dele. Quando o encontrei já imaginei que não seria ele meu primeiro colaborador, não por ser muito idoso mas porque depois de minha apresentação ele quase fingiu que não ouviu o que eu disse e quando eu falei que uma pessoa do nosso grupo já havia conversado várias vezes com seu Adálio ele disse que só aceitaria essa conversa depois que seu Adálio confirmasse isso à ele. (depois de 2 anos nos tornamos amigas de seu Pedro Catolé, como de outros moradores, agora ele tem 99 anos, todos dizem que ele é quem tem uma história muito bonita e sofrida pra nos contar, mas infelizmente ele escolheu se esconder antes pelas brincadeiras e piadas agora pelo isolamento causado pela morte do seu Celso, um companheiro de quase vinte anos).
Retornando ao 1º encontro com seu Pedro ou à segunda visita: percebi que deveria pedir ajuda às irmãs e novamente procurei a irmã Inês que por sua vez também estava se justificando com Ariana dizendo que era de pouca conversa nos indicando outras freiras mais desinibidas sempre nos estimulando a tentar com outra pessoa. Conversei com ela sobre a dificuldade em me aproximar dos moradores e ela disse que eles estavam assim porque alguns crentes haviam confundido a cabeça deles, então eles foram avisados para não conversar com estranhos.
No mesmo momento ela telefonou para o vigia dizendo que iríamos encontrá-lo, para que ele nos apresentasse a todos os moradores e que recomendasse a todos que colaborassem no trabalho que iríamos desenvolver porque era muito importante para a Comunidade que eles nos ajudassem. A autorização que as irmãs deram à eles para conversar conosco soou como exigência, daí a dificuldade percebida foi devido ao medo que os moradores tinham de falar. Percebemos um jogo de poder onde inicialmente não se podia falar com estranhos e depois uma "autorização" que intimava os moradores a nos ajudarem nessa pesquisa. Inicialmente os moradores tiveram receio em falar por não saberem qual nosso objetivo, por não nos conhecerem e por não entenderem como nós poderíamos nos interessar por eles. O primeiro morador que conversamos não sabia o que dizer (ou o que era permitido contar?).
Alguns utilizaram o tempo da entrevista para agradecer às irmãs, elogiar o lugar e as pessoas da Comunidade. Isso me preocupou nas primeiras entrevistas então tentei fazer mais visitas do que propriamente entrevistas até que se estabelecesse entre nós uma relação de confiança. Nesse intervalo procurei fazer anotações sobre o cotidiano dos moradores do pavilhão e percebi o desnível de relações entre esses moradores e a comunidade em geral. Os moradores das casas são vistos fazendo limpeza no hospital, na lavanderia, no comércio, e no serviço de enfermagem. A relação dos mesmos com o interior da comunidade é constituída e mantida na maioria por relações de trabalho. Nesse período constantemente éramos barradas no pavilhão por alguma freira que ainda não sabia do nosso trabalho e tivemos que repetir as explicações várias vezes para cada freira diferente que nos aparecia.
Conhecemos seu José Paixão, uma pessoa calma que demorou até para nos olhar nos olhos, não pareceu intimidado, e a cada aproximação eu percebia sua importância dentro da comunidade. Ele estava sentado no restaurante muito bem vestido ao lado de uma porta que pareceu um comércio paralelo ao restaurante, calça creme combinando com a boina, alpargatas pretas e portador de uma sobriedade que o distinguia dos outros moradores que eu já havia conhecido até o momento. Conversamos com ele sobre nosso trabalho e de uma maneira quase indiferente ele se prontificou a nos ajudar, marcamos para sexta feira pela manhã, nos despedimos e fomos ao quarto do seu M. Diogo, um senhor estranhamente simpático me parecendo muito mais um doente mental: uma pessoa extremamente sorridente, não parava de gesticular se mostrando animado para todas as atividades, seu M. Diogo tem um comportamento estranho que aos poucos foi me intrigando através dos comentários dos companheiros do pavilhão como "uma pessoa ociosa e que estava na Comunidade se escondendo da justiça” (seu M. Diogo é uma figura desprezada pelos moradores do pavilhão por se apresentar como um morador que esbanja dinheiro e falação sobre as fazendas e as casas alugadas em Guajará-Mirim se mostrando um morador na Comunidade por satisfação. Sempre recebendo visitas dos filhos bem sucedidos ou conversando com os mesmos, parentes ou empregados pelo celular).
Seu M. Diogo é a expressão contraditória do discurso e do desejo dos moradores do pavilhão, a raiva que todos sentem dele é justificada pelo mesmo estar ocupando o lugar de alguém realmente doente e por ele Ter acesso à família, possuir condições de viver confortavelmente fora dali e renunciar tudo pela vida na Comunidade. Seu Diogo é um dos poucos Soldados da Borracha que realizou o desejo de muitos. É talvez o único morador que ainda tem família e é querido pelos filhos. Na opinião dos moradores seu Diogo tem muito dentro e fora da Comunidade, enquanto muitos gostariam de sair e procurar a família ele prefere vislumbrar tudo à distância.
Na maioria das visitas a Comunidade se apresenta através do desfile diário de pessoas que chegam pela manhã em busca de tratamento, descendo e subindo em ônibus às pressas, funcionários (a maioria moradores das residências) carregando carros da lavanderia, limpando corredores, trabalhando na sapataria e na enfermaria. Alguns moradores do pavilhão cortando gramas, enfileirando dominó na pequena área de lazer, outros sentados nas calçadas e bancos como se aquilo fosse uma grande praça ao redor do hospital, imaginei-os acordando e olhando o dia se esvair dentro de um tipo de silêncio dissolvido em saudosismo.
Depois de nos despedirmos do seu Manoel D. Fomos a uma casinha aberta (área de lazer), parecia um bar, com mesas de sinuca, uma janela de televisão fechada no cadeado. No meio do caminho seu Antônio Moura nos apresentou um senhor baixinho que caminhava em direção oposta com passos lentos e firmes, cabecinha branca escondida sob o boné do flamengo. Foi o único que de longe nos recebeu sorrindo, um riso quase feliz. Ele mudou de direção e nos acompanhou até aquela casinha nos oferecendo acento e de um modo cavalheiro ele só sentou depois de nós.
Com ele foi muito difícil uma confirmação, mesmo explicando os passos do trabalho, ele relutou dizendo que não se lembra de nada, que é analfabeto e que não saberia falar nada interessante. Não acreditei que fosse má vontade dele e dissemos a ele que só queríamos conversar e pedimos que ele falasse sobre o que ele pensa sobre a experiência de vida dele, e sobre tudo que ele tem vontade de falar. Seu nome era Celso, foi na entrevista dele que percebi que existia alguma coisa estranha naquele lugar: No projeto ou na comunidade? comunidade...? acadêmica ou Santa Marcelina? Seu Celso nos contou detalhadamente sua viagem do Ceará para o seringal e mesmo com nossa interferência no segundo momento da entrevista percebi que ele se recusava falar sobre a formação da Comunidade. Interrompi as gravações à seu pedido e continuamos a conversa onde ele chorava contidamente e continuava falando. Sua narrativa me reportou ao personagem Ulisses da Odisséia pelas aventuras no barco, por ter perdido contato com a família há vinte anos e pela intensidade imaginativa de que um dia alguém vai procurar saber o que aconteceu com ele.
Ao mesmo tempo em que ele relatava a saudade da família transpareceu muita mágoa por ter comprado casas e investido a maior parte do dinheiro longe. As entrevistas às vezes chegam a um ponto em que não podemos privilegiar o tema da pesquisa porque a satisfação com que os colaboradores contam suas aventuras acabam por multiplicar os sentidos do tema que nos interessa.
Seu Celso foi meu eixo de questionamentos sobre os procedimentos metodológicos e interpretativos, onde percebi que se a entrevista inicialmente fosse direcionada ao projeto eu estaria perdendo a oportunidade de tirá-lo de seu silêncio e de perceber como o processo de entrevista interfere na interpretação dentro jogo da produção de conhecimento dimensionado por um projeto. Do labirinto das relações de exclusão que eu como pesquisadora estava buscando constatar na Comunidade sem perceber que o meu lugar de discurso é estabelecido por uma relação de exclusão de possibilidades discursivas em torno de um tema, de uma disciplina e de regras que se atualizam no meu limite em propor um discurso que representasse a possibilidade inovadora que eu só percebi pela riqueza da narrativa dos meus colaboradores. Depois da entrevista de seu Celso resolvemos passar o dia na Comunidade, almoçamos na cantina e uma funcionária nos disse que depois do almoço os moradores do pavilhão costumam dormir, e que seria melhor procurá-los "atardinha". Ela nos levou para uma sala onde as funcionárias costumam descansar e nos deu colchonetes onde dormimos por quase duas horas.
A maioria dos moradores das residências elaboraram um novo sentido para o hospital, onde a formação da Comunidade deixa de ser percebida pela exclusão social em torno da doença e a vida em comunidade é percebida como refúgio do inferno na cidade e do desemprego. A exclusão reveste-se em refúgio na fala das mulheres que foram abandonadas pelos filhos, que ficaram viúvas, ou que perderam condições físicas para trabalhar e continuar sustentando seus filhos. Seu Juvenal sente-se seguro na Comunidade mas sofre devido ao isolamento da cidade e seu contado com os rios, com o mercado onde vendia sua produção.
Entre os moradores do pavilhão existem pessoas que além de terem sido hansenianas são consideradas loucas pelos próprios companheiros. Tentei fazer contato com esses "excluídos" mas para esse projeto esse procedimento exige novas propostas de abordagens e leituras mais específicas. Nessas investidas conheci seu Leopoldo, um homem de aproximadamente 57 anos. Seu Leopoldo murmura frases e nos olha sempre sorrindo com a cabeça inclinada para o lado. Os moradores da Comunidade dizem que ele ficou louco de tanto ler, quando pega um jornal lê até os classificados e as vezes passa o dia relendo o mesmo jornal. Adora paquerar as moças que passam e sempre que chegamos no pavilhão ele nos segue à distância até nossa despedida. Uma das vezes que conversamos com ele nos disse seu nome completo, a data de nascimento incluindo as horas e estimulado pelos outros moradores disse também o dia, mês ano e horas da sua chegada à Comunidade.
Os moradores dizem que ele chegou na Comunidade jovem e que até alguns anos atrás recebia visitas, e, que de vez em quando foge para passear em Porto Velho até ser encontrado pela polícia ou pelos carros da Comunidade. Seu Raimundo Oliveira tem a fisionomia típica de um nortista com seus olhos puxados e cabelos lisos e pretos. É outra pessoa interessante: parece mais novo que seu Leopoldo, nunca nos olha a não ser que seja para fotos, só responde aos nossos cumprimentos depois de alguma insistência e sai antes que tenhamos tempo de conversar qualquer coisa, trabalha entregando roupas da lavanderia para o hospital e recebe moedas de valor insignificante dos moradores do pavilhão para fazer o mesmo serviço ou para ajudar na higiene pessoal de alguns.
Seu Raimundo parece uma pessoa extremamente dependente das relações já estabelecidas pela vida na comunidade, especificamente nos pavilhões e nos pequenos serviços de entrega de produtos de limpeza ou roupas de cama do hospital. Todos os moradores do pavilhão têm autoridade sobre ele, embora as vezes eu perceba que seu Raimundo estimula brincadeiras (faz cócegas, simula pegar dinheiro nos bolsos, belisca ou os empurra com o ombro).
Na fala de seu Aldenor transparece uma raiva contida, devido sua solidão, à revolta com o enfermeiro que causou uma queda onde quebrou a bacia e até hoje não consegue andar sem aparelho. Seu Aldenor é uma figura apaixonante, muito sincero e duro em algumas críticas. Me enganei ao ter pressentido que com ele seria uma entrevista descontraída e engraçada por ele está sempre ironizando entre alguns colegas seus tratamentos e os conselhos médicos. Seu Aldenor é o que se pode chamar de insubordinado nas freqüências à missa, ao pagamento de remédios que tem na Comunidade, e às suas economias. Não deixa as irmãs receberem sua aposentadoria, critica seu Celso por ter economizado uma vida dentro da Comunidade como aposentado e ter doado suas economias à Comunidade antes de morrer.
No decorrer das visitas seu Aldenor desabafou muitas injustiças cometidas na Comunidade contra os moradores e contra pessoas que não tem condições de pagar tratamentos. Declara-se muito agradecido às irmãs na entrevista mas assim como seu Romualdo, entre uma visita e outra ele desabafa e diz que aquilo é um inferno e também sonha em sair da Comunidade.
Seu Romário é um senhor muito gentil e extremamente sentimental, anda com a ajuda de muletas e embora tenha as mãos deformadas me surpreendeu pois no dia da entrevista ele me apresentou um caderno onde ele tinha escrito parte de sua narrativa. Seu Romário tem mais de sessenta anos, era do pavilhão, depois que se casou com Dona Pastora, moradora da Comunidade antes de sua chegada. Ela e o 1º marido se trataram de hanseníase, no mesmo período que seu Romário, mas parece que ela ainda não se curou totalmente devido uma ferida no pé que a mais de um ano ela mantém enfaixada. Nós já encontramos dona Pastora queimando de febre e sem condições de andar dentro de casa devido esse ferimento. Já aconselhamos o casal a pedir que alguém faça diariamente a limpeza na ferida, já fizemos curativos algumas vezes mas logo em seguida dona Pastora amarra a ferida e abafa sem ao menos trocar o pano entre os banhos, percebemos que ela tem vergonha de expor o pé. É difícil dar conselhos porque ela é surda seu Romário conversa com ela gritando ao pé do ouvido. É engraçado quando percebemos os dois trocando confidências e namorando aos gritos quando sentam no jardim que eles construíram na casinha que ganharam na vila.
Depois do casamento os dois vivem como um casal de namorados e recebem visitas de moradores que já saíram do pavilhão para morar no Candeias e dos antigos companheiros do pavilhão onde seu Romário morava, e apesar de usar muletas ele trabalha carpindo o quintal de alguns moradores com o apoio de uma cadeira. Depois de quase dois anos de casamento dona Pastora ganhou um aparelho auditivo e por azar agora seu Romário está ficando surdo.
Seu Juvenal é uma pessoa que eu conheci depois que o Pedro saiu da Pesquisa, fiz a textualização e a conferência da entrevista dele. Apaixonei-me pela sua narrativa antes mesmo de conhecê-lo. Seu Juvenal mora na vila junto com dona Raimunda (esposa) e a filha mariazinha. Quando fiz a conferência da entrevista ele e a esposa se emocionaram muito pela saudade que sentem do filho falecido e pela vida que tinham antes de morar na Comunidade, sua esposa é uma pessoa tímida e quando eu li o que ele falou sobre ela na entrevista ela levantou-se chorando para cozinha. Os dois aparentam estar felizes com a vida na Comunidade apesar das dificuldades que são compensadas com a presença de amigos e pelo apoio das irmãs.
Seu Juvenal e sua esposa são extremamente agradecidos às irmãs, contradizendo a imagem que os moradores do pavilhão transmitem. Nas suas conversas as irmãs estão sempre dando apoio nos piores momentos. A imagem da grande mãe também aparece quando conversamos com algumas mulheres da Comunidade. (Judite, Haida, Raimunda).
Às vezes fica difícil definir nossas impressões sobre as irmãs, porque existe um papel administrativo a ser cumprido, onde alguns moradores as colocam como mesquinhas, interesseiras e prepotentes e outros se reportam a elas com a mesma ternura que falariam dos cuidados de uma mãe. Entre alguns comentários existem os que soam artificialmente nos agradecimentos e nos elogios. Seria uma injustiça não reconhecer que embora as irmãs sejam repressoras e intransigentes existe um trabalho árduo se realizando diariamente na Comunidade.
Não é a proposta deste trabalho compreender as relações de internamento a partir da perspectiva de Goffmam, (1996) quando focaliza que o conflito dos internos é causado pela repressão causada pela classe dirigente, isso nos levaria a conceituar a Comunidade nos parâmetros de uma instituição total invalidando Foucault (1999) como o principal referencial teórico para compreender a exclusão e o internamento através das circunstâncias que o criaram. A exclusão é percebida como herança da lepra, a marca dos impuros que deveriam ser expulsos e isolados da sociedade em guetos que no Classicismo tomou a forma de internamento onde eram internos sem diferenciação os sujeitos que não se enquadravam na ordem social. O internamento era aplicado para vagabundos, pobres, libertinos etc.
Nesta Comunidade podemos perceber que existe muitas formas de interpretar essa exclusão sem perder de vista os conceitos protestantes que o mundo católico utiliza para valorizar a vida do interno através da definição do bom e do mau pobre que ao serem aceitos na Comunidade encontram dentro da instituição a vida, a roupa, a comida, uma ocupação e elaboram suas narrativas onde percebe-se como pano de fundo a justificativa do castigo para estarem dependentes dessa condição criando através desses discursos uma práxis da resignação. Seu Aldo é outro senhor que foi entrevistado pelo Pedro, cabendo a mim textualizar e fazer a conferência da sua entrevista. É muito difícil conversar com esse homem, tudo nele parece artificial. Mas o internamento em sua narrativa também apresenta esta imagem sobrecarregada de pessimismo quando fala dos companheiros, das intrigas e das irmãs.
Quando batemos (eu e Ariana) à sua porta ele falou muitos palavrões antes de abrir, pensei até em desistir dele, depois que eu disse do que se tratava ele mudou completamente. Li a entrevista e ele gostou muito, disse que aquilo foi um desabafo, depois mostrou-nos seus desenhos de santos, seus artesanatos e nos deu chocolates. Todas as vezes que vou à Comunidade evito encontrá-lo porque ele sempre me alerta contra o boca de sapo (se referindo à Aldenor) que ele pode me comprometer fazendo fofoca com as irmãs, para eu tomar cuidado. Seu Aldenor fala de todo mundo e da própria vida com altas doses de pessimismo ou ironia mas não maldade. Todos na Comunidade sabem que Aldenor é assim, às vezes ele finge que está bêbado para enganar as irmãs e possivelmente deixá-las constrangidas depois do sermão ao descobrirem que era tudo brincadeira.
Seu Romualdo foi embora da Comunidade em janeiro de 2002, devido à problemas com bebidas e discussões com as irmãs, ele é muito querido pelos médicos que garantem seu retorno porque ele ainda precisa de tratamento e por não ter condições físicas ou financeiras de viver longe da Comunidade. Os moradores do pavilhão do seu Aldenor entendem as razões da revolta de Romualdo mas não aceitam que ele se submeta a um sofrimento maior por orgulho, eles não sabem para onde o amigo foi mas sabem que uma hora terá que voltar.
O momento da conferência dos textos tem se resumido em lágrimas e no pedido da entrega da entrevista às irmãs. Apenas a conferência do Antônio Moura não foi lida por nós devido ao seu plantão no hospital e ao pedido que o mesmo fez de ler em casa, depois de um mês ele nos disse que estava de acordo e não nos deu oportunidade de preenchermos sua ficha de controle do projeto devido sua falta de tempo, tentamos fazer isso na páscoa quando fomos a sua casa entregar um ovo e bolo o enteado dele nos mandou entrar e percebi que seu Antônio não gostou pois não sabíamos que ele não tinha pernas e quando entramos ele estava falando ao telefone sentado no chão de bermuda e suas pernas estavam distantes. Tentamos agir com naturalidade mas a reação dele foi muito evidente, então deixamos o presente sobre a mesa e acenamos uma despida. Desde então ele nos evita ainda mais e não sabemos como nos reaproximar dele. Não interpretei as entrevistas do seu Antônio Moura e do seu M. Diogo por terem sido as primeiras entrevistas do projeto, onde eles procuraram elogiar a caridade das irmãs e agradecer o tratamento e a organização da Comunidade, dificultando minha relação com o texto deles por repetirem pontos apresentados pelos outros moradores com mais intensidade.
Entregamos a todos os colaboradores uma encadernação com fotos e suas entrevistas finalizadas. Percebo que nosso trabalho está sendo finalizado e sinto que a carência desses moradores criaram um vínculo que não chega a ser amizade porque eles não sabem nada sobre nossa vida e a pouco tempo ficaram sabendo sobre o nosso trabalho mas não deram importância. Eles sentem necessidade de alguém que os visite de vez em quando, que converse e leve alguma novidade.