O MITO DO HERÓI I

HISTÓRIA ORAL COM HOMENS

DA COMUNIDADE SANTA MARCELINA - RO

 

 

EDNÉIA BENTO DE SOUZA

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE - UFRO

ESCOLA DO LEGISLATIVO - RO

 

RELATOS DO PROJETO

 

            Este artigo é fruto de uma pesquisa financiada pelo CNPq, sob o título de: “A Cidade dos Excluídos: História Oral com Moradores da Comunidade Santa Marcelina”, orientada pela professora Fabíola Lins Caldas. Tive como plano de atividades compreender a visão de mundo dos Homens que moram nos pavilhões e nas residências da Comunidade Santa Marcelina, percebendo como se estabeleceram as novas relações em uma Comunidade formada através de um processo de exclusão social. O objetivo geral desta pesquisa foi compreender os modos de vida de pessoas que vivem numa Comunidade formada inicialmente por hansenianos, ex-hansenianos e seus familiares, numa formação forçada em torno de uma doença historicamente conhecida como a doença dos impuros, daqueles que deveriam ser apartados do convívio social.

            Meu interesse pessoal pela pesquisa deu-se pela vontade de analisar narrativas de homens a partir das mitologias que narram a construção do herói através dos rituais iniciatórios, das aventuras e do sucesso representado pelo retorno ao lar. Por esse motivo escolhi o pavilhão onde moram homens solitários, pois apesar de poucos possuírem parentes em Porto Velho o retorno ao lar é uma possibilidade desejada por muitos. No decorrer da pesquisa senti que deveria repensar esse interesse pessoal e os objetivos do projeto, não para negá-los ou mudá-los mas para ter consciência de que foram elementos constituídos inicialmente na academia; lugar onde a vontade de saber parte de um Olhar revestido de poderes que podem interferir na relação com o outro, nos fazendo perder a oportunidade de perceber o sentido de cada entrevista, das imagens nelas contidas ou mesmo de uma única imagem em cada entrevista.

            Cada entrevista com esses moradores nos deram uma visão muito mais ampla sobre um dos nossos objetivos: compreender a exclusão causada pelo estigma através das leituras de Foucault (1988a, 1998b, 1999) porque percebemos que o estigma se enraíza nos discursos como regras e como normatizações sociais reguladas e distribuídas pelos discursos de poder (família, igreja, escola, hospitais..). E o estigma da doença é apenas uma parte visível no corpo que atualiza os discursos que presentificam o imaginário sobre a marca dos impuros e dos feridos por Deus. O estigma percebido através da pesquisa presentifica sensações imaginárias mas também está dentro de uma historicidade médica e hospitalar, assim como suas experiências individuais estão sendo apreendidas em forma de discurso, narrativa e expressão de singularidade, daí a vontade de pensar uma abordagem do texto onde o tema seja realizado sem prejudicar o sentido de cada narrativa através de uma homogeneização interpretativa.

            O respeito e a importância de cada indivíduo é portanto uma das premissas do trabalho em História Oral. Cada conversa-entrevista é importante por ser diferente de todas as outras, não por confirmar alguma regra, lei ou método. Caldas (I), 2001: 44).

            Os textos dos colaboradores e o Caderno de Campo são a garantia das possibilidades de repensarmos a nossa interferência enquanto instauradora de existências. Ou seja, a presença de um pesquisador em uma "Comunidade" não se dá para esclarecer inocências pessoais e está longe de ser simplesmente uma busca de conhecimento sobre o outro. Segundo Geertz (1989: 141) a relação eu-outro e eu-texto se complexificaram pois a sensação de propriedade: “... (soy yo quien los describiré...) ...El fin del colonialismo alteró radicalmente la naturaleza de las relaciones sociales entre los que preguntan y miran y aquellos que son preguntados y mirados.”

            O casamento da História Oral com práticas antropológicas nessa pesquisa se dá pela importância do Caderno de Campo enquanto princípio de que o projeto, a atividade descritiva sobre essa Comunidade e seus moradores juntamente com as entrevistas e os resultados dessa pesquisa jamais poderá ser objetivamente a experiência (presença) do pesquisador diante do vivido (relato) dos indivíduos. A objetividade científica perdeu-se no fluxo das experiências compartilhadas, são fragmentos perdidos nas intenções do foi dito, do compreendido e ao que se quis fazer sentido ou distorcido no silêncio das vontades e dos poderes estabelecidos entre os participantes deste trabalho. A escrita é agora a presença que dimensiona os passos da pesquisa.

            Nossa vivência nesta pesquisa realizou-se através de uma metodologia que se desdobrou em textos, narrativas e experiências que em momento algum se julgam ou confundem-se com os colaboradores, mas expressam fragmentos de aventuras, decepções, medos e desejos através das narrativas sobre suas experiências de vida. A objetividade desta História Oral está no reconhecimento de sua ficcionalidade textual, da flexibilidade oscilante entre Oralista-colaboradores e textos-leitores. O equilíbrio de poderes e liberdades migram no devido momento a cada sujeito envolvido nessa relação sem que haja prejuízo ao oralista enquanto pesquisador pela possibilidade de diálogo e posteriormente de um texto ou ao colaborador enquanto expressão de singularidade.

            Sabemos que o trabalho de campo é importante para todas as Ciências Sociais, mas a História Oral é por definição impossível sem ele. O significado e a ética dos contatos humanos diretos na experiência do trabalho, são imprescindíveis ao significado e à ética no exercício de nossa profissão (Portelli, 1997: 23). Pensar a História Oral como profissão é para mim um recurso norteador que diferencia o Oralista dentre outros pesquisadores que trabalham com a História Oral. Primeiro: O termo Oralista me aproximou do modo como Portelli definiu em uma entrevista que; a naturalidade com que os entrevistados colaboraram com suas pesquisas deu-se por que o mesmo não se mostrou aos entrevistados como alguém que tinha um saber ou como alguém que vinha do poder. Segundo: porque o resultado dessa relação não é carregado pela necessidade de comprovar um acontecimento ou algo exterior ao texto e aos sujeitos participantes da pesquisa. A relação que o oralista mantêm como o outro e com o texto o diferencia os trabalhos realizados pelos intelectuais da academia, devido ao fato de que cada trabalho é uma vertente para que outros temas e formas de interpretação sejam pensadas a partir do material constituído em uma pesquisa.

            Caldas (I) (2001: 43-45) ao analisar os conceitos lembrados por Portelli sobre Individualidade, Igualdade e Diferença sente a necessidade de distânciá-lo das convenções acadêmicas onde a ética é, antes de tudo, a maneira ocidental de, às vezes educadamente, universalizarmos alguns valores, algumas condutas, algumas regras de viver, alguns preconceitos, algumas idéias que são ditas que devem ser para todos. Levada as últimas consequências, ao invés de garantir respeito, pode tornar-se campo de tortura, de castração e sofrimento para o pesquisador... Então, não temos uma ética, temos um modo de ver onde a liberdade luta desesperadamente para ser a regra fundante e fundamental, possibilitando que o outro estabeleça seus próprios limites e tome suas próprias decisões, conquistando tanto a palavra quanto a sua palavra. E a liberdade ao pesquisador de se adaptar teórica e metodológicamente às situações que lhe são postas.

            Apesar da releitura do Caderno de Campo e dos textos terem me dado a sensação de que todo o percurso metodológico e teórico não mais aponta para a comunidade "pré-visualizada" no projeto, ou para os heróis que tanto me motivaram iniciar a pesquisa, os mesmos são a abertura para adaptarmos novas possibilidades de respostas e novos posicionamentos sobre os mesmos temas, pois continuar pretendendo compreender a formação da Comunidade pela exclusão social, ou pelos discursos médicos, políticos ou religiosos é negar os nódulos existenciais que cada colaborador nos confiou. Ter consciência de que esse olhar está dentro de uma perspectiva e de possibilidades criadas antes do primeiro contato com os moradores dessa Comunidade faz parte de uma postura metodológica onde a História Oral desdobra-se na hibridez da própria identidade, definindo-se pelos procedimentos e pela flexibilidade às novas adaptações de abordagens que não deformem o modo de ser e ver do outro.

            Nossa forma de abordagem está dentro de uma perspectiva em História Oral onde aquele que era ritualisticamente considerado depoente, confesso, paciente ou fonte documental, teve uma constituição ontológica dentro de um jogo de saberes, vontades e poderes. Em primeiro lugar tivemos as implicações institucionais do desenvolvimento de um projeto de pesquisa, segundo a finalidade de percebermos as implicações interpretativas decorrentes dos conceitos de Nascimento Voluntário e Cápsula Narrativa em um processo de transcriação (Caldas (II), 1999: 107-109). Retomando e conservando a noção de colaborador no sentido de dar ao outro o lugar de centro das atenções através de sua narratividade (Meihy, 1996a: 107).

            A percepção de que uma "comunidade" venha a ter sobre nós, oralistas depende dessa aproximação, do modo como expressamos nosso interesse sobre ela, sem delimitar suas existências como referencias a um acontecimento, a um tempo e muito menos ao nosso tema de pesquisa. Essa aproximação foi a garantia fundamental das nossas pesquisas em História Oral, pois vão muito além da simples educação, simpatia e negociação com o outro. No momento da aproximação tivemos o cuidado de não identificar-mos o tema da pesquisa e muito menos qual nosso interesse em "estar ali".

            1º- esse estar alí não significa que essa Comunidade continue representando os pressupostos do projeto, devemos ter claro que o projeto é inicialmente um pretexto para o "conhecimento" e principalmente pelo diálogo e a troca de experiências.

            2º- embora a autoria do trabalho e a leitura final seja do pesquisador é dado ao colaborador autonomia sobre seu texto e é garantida a apresentação integral do seu discurso.

            Estruturar um conhecimento em que essa "comunidade" se forma através de um discurso que, em alguns aspectos poderia apontar para o internamento de leprosos na idade média, perceber semelhanças estereotipadas nos heróis mitológicos e até mesmo estabelecer um discurso sobre a História das migrações para a Amazônia, ou seja, fazer com que os textos apontem para o passado, para uma unidade e uma História seria negar a identidade dessa História Oral enquanto procedimento armado, ambiente de diálogo e criação de singularidades.

            Distanciar a interferência causada pelo encanto das narrativas constituídas no processo de entrevistas de nossa própria existência através de um discurso sobre um mundo e um tempo como se fossem os únicos seria negar o objetivo e a tragetória de uma História Oral que tem o presente enquanto matéria criadora de singularidades. Perder a dimensão dessa proposta metodológica seria apagar a singularidade do próprio oralista.

            A escrita em Caderno de Campo segundo Geertz (1989) é uma criação textual para traduzir os efeitos criados pela presença do pesquisador a partir da perspectiva do mesmo, pois no momento da escrita, o vivido, o visto e o percebido pelo pesquisador não devem confundir-se com o relato sobre o mesmo, o trabalho etnográfico difere do discurso da história onde o homem se confunde com a própria escrita. Daí a importância da reflexão sobre Caderno de Campo e a interpretação de textos em História Oral, entender um agrupamento de pessoas impõe a busca pela igualdade, por um tempo exterior à existência dos indivíduos, colocando todas as vivências em fôrmas mais castradoras do que as regularidades das formatações sociais.

            Poderíamos encenar várias definições para aquele agrupamento e justificar seus princípios; "Comunidade de hansenianos", "Comunidade religiosa", Hospital e Clínica "Comunidade" Santa Marcelina e ainda assim estaríamos restabelecendo um discurso oficial e um tempo naturalizado pela História, aceitando a generalização como se desejássemos a garantia de algum resultado científico.

            Depois das entrevistas me convenci de que não existe "Comunidade" nem mesmo como recorte metodológico dentro da perpectiva elaborada por Meihy onde a “colônia é delimitada pelos padrões gerais da sua comunidade de destino isto é, dados preponderantes que ligam a trajetória de pessoas" (Meihy, 1996a: 166). Conversamos com moradores de uma Comunidade onde projetamos a idéia de colônia para percebermos a exclusão e o resultado foi que os textos ou a essência dos mesmos extrapolaram os limites da "Comunidade" e do projeto inicial. São narrativas que se cruzam formando sub-colônias de garimpeiros, soldados da borracha, nordestinos, pescadores, apaixonados e revoltados, trazendo os cheiros, os desejos e a saudade de mundos que se fazem existir pelo sentimento e pela imaginação.

            São vivências (que, se assim o quisermos) de internos que se odeiam, de amizades interrompidas pela morte, de conflitos com funcionários e administradores nos fazendo sentir raiva, angustia, satisfação e ao mesmo tempo nos chamando a compreensão dos índivíduos que compõem essas relações mas estaríamos caindo na ilusão de harmonizar uma unidade que não percebemos nessa Comunidade. O que me fascina nos textos não é o internamento ou o cotidiano e a organização de instituições totais, a adaptação ou as diferenças entre internos e classe dirigente; trabalho já realizado por Goffmam (1996) onde o que percebemos é o esfacelamento da individualidade em prol de uma visão global da instituição e da institucionalização dos sujeitos. Daí a necessidade de pensar num outro percurso de interpretação a partir dos detalhes que pretindiam algo mais próximo do meu mundo do que as leituras de Foucault podiam localizar.

            Durante o desenvolvimento da pesquisa percebi que os textos / discursos dos moradores possibilitavam leituras diferenciadas dentre as que estávamos realizando no PIBIC, então aproveitando as entrevistas, retomei a mesma pesquisa no momento que percebi que podia aprofundar-me diante dos textos no sentido de buscar a partir das imagens carregadas de emoção a numinosidade das imagens simbólicas através da narrativa mitológica.

            A importância desse relato deve-se a um ajustamento teórico iniciado com Foucault durante a iniciação cientifica onde através da História da Loucura (1999) e do Nascimento da Clínica (1998) buscamos perceber a formação da Comunidade através da exclusão. Onde analisamos as entrevistas conjuntamente dentro de esquemas que demonstrassem a estrutura segregação atualizado os medos imaginários sobre a doença, relacionando-a com o ambiente onde os bichos devoravam pessoas pelo abandono dos dirigentes da sociedade até o momento da hospitalização definindo a chegada das irmãs, a construção do hospital e a descoberta do tratamento da doença onde o internamento perdeu o aspecto terrificante do imaginário sobre a lepra e definiu-se através do imaginário religioso da construção da cidade perfeita como representação do paraíso celeste na terra.

            A ruptura com Foucault (1999) se deu pela vontade de adotar uma leitura mítica através de Duran (1993, 1997), Eliade (1972; 1983; 1998) e Campbell (1949, 1990) e principalmente contribuir para os questionamentos do Centro de Hermenêutica em torno da leitura de textos em História Oral, por pretendermos partir da idéia de pontuação de textos designando uma ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo... um detalhe, um objeto parcial (Barthes, 1984: 69) lugar eleito para projetarmos outros textos. Essa escolha deu-se por entendermos que os procedimentos que nos levaram à elaboração dos textos extrapolaram os objetivos institucionais do projeto e da "Comunidade" Santa Marcelina entendida como Colônia (Meihy, 1991: 61). O modo como escolhemos realizar a pesquisa levou-nos valorizar a diversidade e a multiplicidade presente nessa "Comunidade".

            A História Oral que praticamos tem o presente enquanto campo de pesquisa, portanto a oralidade é a linguagem que inicialmente dimensiona o vivido em forma de experiência narrativa. Nossa busca inicial foi pelo mundo do outro, não sendo o imediato do presente ou esse vivendo enquanto mercadoria, sem espessura interior. Estamos buscando a espessura do presente em forma de interioridade descristalizando aquilo que os historiadores entendem como passado.

            A narrativa ou a experiência precisa materializar-se em texto para nos possibilitar uma ''sondagem do e no presente''. Para a apreensão desta experiência narrativa dialogamos com a História Oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy (1990, 1991, 1996a, 1996b) onde retomamos alguns procedimentos dentro de um processo geral de transcriação. Onde a experiência narrativa denominada por Benjamim será materializada como texto resultante do diálogo e da vivência compartilhada do primeiro contato até a constituição do texto final.