livros da infância
“Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robison Crusoé,
comprida história que não acaba mais.”
Carlos Drummond de Andrade
livros, mulheres e cavernas: marcas insubstituíveis. mas os livros estão sempre próximos demais, ao redor, antes e agora, dentro, sob a pele, frutos de um sonho que criam eles antes de chegarem. são intuídos, esperados, buscados. fazem parte íntima da busca, estão ao lado, são os últimos indivíduos de um mundo desertificado. mas não são pra serem lidos, coisa ou lugar onde se aprende, mas necessidade de diálogo, de contradicção, de fluxo vivo de negatividade, lócus de batalhas e de uma guerra sem fim e sem testemunhas: ler é encontrar minha voz dentro de uma floresta perversa de ruídos e interferências, de desestímulo e reprovação, é buscar meu não, esse que é somente meu: buscar o que já sou: ler é reencontrar seu próprio não.
não fazem, os livros, parte de um hábito (o ridículo e estatal “hábito da leitura”: a leitura é uma das armas da grande conflagração pessoal, do grande incêndio onde a carne, os ossos, os músculos, a vida e a alma se inflamam contra o universo e ardem até às cinzas: hábito é ler com certo enfado, rotineiramente seja o que for, o que lhe cair às mãos: é ler aposentado: no aposento de morte): por hábito ninguém realmente lê, ou melhor, a leitura habitual é uma pantomima, uma encenação; não são, os livros, uma aventura (a aventura somos nós nessa busca: é essa busca e seus riscos: a busca como tauromaquia: a aventura não está nos livros, mas na imaginação negativa): a aventura é a criação de mim mesmo; não é passatempo (não faz o tempo passar, mas é brutal enfrentamento e refundição do tempo: é enfrentar o tempo em seu a se fazer tendo sido feito); não é pra aprender (quem aprende lendo é anta de presépio: respeita esse saber que deve ser contraponto, fogo e fagulha na fornalha: diz saber pra “se mostrar”, pra fazer o papel de sabedor, quando na verdade é somente fingimento com algo alheio); não é prazer, como algo fútil, de férias ou fim de semana, mas o prazer, o gozo (o gozar e fazer gozar, o entrechoque de dois ou mais corpos que se desejam e lutam um contra o outro) da luta contra si mesmo, contra os outros, contra o mundo e a vida, contra o horror, a indiferença e a coisificação: ler faz parte da fúria, da imaginação e do rigor.
mas os livros não chegam como instrumentos de uma busca, que se apresenta ainda dispersa na névoa da infância, sendo ainda elementos de inquietude sem fundamento, de movimentos estranhos e formas monstruosas, sem conseqüências, somente indisposição do corpo, dos olhos, dos sonhos, das palavras, das relações: partes de mundos a conhecer, fios de um universo desconhecido, sensação incômoda que precisa se completar, presença inescapável e im-posição dos outros no processo da minha formatação: vozes que não são minhas mas exigem serem a minha voz. isso tudo só se articulará enquanto busca muito depois, no começo da adolescência (a infância aqui considerada vai de 1962 a 1971, quando eu ia completar treze anos e já havia cavernas e mulheres, já havia outros livros, outras vontades, outros sonhos já bem delineados, já havia sobre a minha cama uma prateleira já bem recheada com livros, ossos e pedras: o começo da minha biblioteca). aí os livros deixarão de ser aquela mistura de volúpia, experiência arriscada, espanto, exercício, encontro, pra irem se tornando companheiros de viagem, de luta, de diálogo e discordância, campos de batalha e dimensões voltadas não pra si mesmos ou pro leitor, não pra saber, mas pro mundo, contra o mundo, contra a formatação.
o primeiro, “os mais belos contos de fadas ingleses”, da editora vecchi, um presente de aniversário da minha tia, em 1962. era lido pra mim por todos que eu conseguia arregimentar pra contarem o “cabeça de vento”, o “jack sai à procura de fortuna”, o “nada”, o “carapuça de junco”, o “jack e o feijão”, a “história do pequeno polegar”, “o poço do fim do mundo”, o “senhor de todos os senhores”. era um volume, pra mim naquela idade, imenso, colorido, alto do tamanho de uma folha a4, capa de cartolina grossa, com um cavaleiro em armadura com a longa espada ao lado e uma dama em comprido vestido cor-de-rosa entre seus braços, diante de um duende careca com o dedo em riste. era cheiroso, bom de acariciar o meu primeiro livro, como foi quente e saboroso espanto molhado a primeira mulher e infinita dos cheiros de morcegos, das raposas e jaguatiricas a primeira caverna. anunciava muitos outros livros da coleção, mas jamais vi qualquer daqueles exemplares: ele foi aquela mulher dentro da tarde, dentro da manhã, dentro da tarde e a caverna sob o paredão de pedra branca que odorava a urinas e era pontilhado por ossos de ratos regurgitados por corujas: havia muitos universos por dentro, na imaginação, contra quase tudo ao redor, supurando realidade como uma ferida secreta pus, sangue, dor: havia mais do que aquilo ao redor.
e as histórias em quadrinhos compradas todos os sábados de manhã: “batman”, “super-homem”, “homem submarino”, “príncipe valente”; e os quadrinhos guardados pelo meu pai, pro “filho que se interessasse”, desde a década de quarenta e cinqüenta: o “globo juvenil”, o “gibi mensal” do tempo da segunda guerra; e a “edição maravilhosa”, que eram quadrinizações de “clássicos da literatura”, num reforço pela imagem de muitos livros lidos ou estímulo pra ler. o oceano do “príncipe submarino”; o crime em “dick trace”; a velocidade alucinada de “zaz-traz”; a 2a guerra com muitos super-heróis, todos contra os nazistas que pareciam animais impiedosos; o “espirit” em preto e branco cheio de sombras acentuando o mistério e a profundidade. e as imagens encadeadas, cada uma diferente da outra e por dentro dos olhos, na imaginação, tudo fluía, a história se desenrolava, aparecia. ali fora não havia história: tudo era de dentro, era eu mesmo quem criava aquela história, como no cinema que eu, além de assistir, ia ver a grande máquina na salinha de projeção iluminando o salão através de um quadradinho, a luz vindo do encontro de dois estiletes que queimavam, caiam no chão e eram trocados. cada imagem num quadradinho quase igual ao outro. quem formava o filme eram meus olhos. ali dentro o universo todo se descortinava. o cinema era uma história em quadrinhos mais minuciosa projetada numa tela. diferente dos livros, que eram uma história em quadrinhos em palavras que eu mesmo projetava como num sonho, numa conversa.
e os incontáveis volumes de tarzan, de edgard rice burroughs, a selva, os animais, a leveza, a coragem sobre tudo, a cidade de opar, o leão de ouro, a luta por ser e se impor, a leitura nascendo sozinha, o combate; o “sherlock holmes” de conan doyle com sua lógica perfeita que antecedia o que ia acontecer e o que havia acontecido por vestígios imperceptíveis, e as tramas perfeitas se articulando, o escritor-aranha tecendo suas teias; as delícias de júlio verne, “vinte mil léguas submarinas”, “a ilha misteriosa”, “a volta ao mundo em 80 dias” descortinando uma imaginação e um universo capaz de tudo: envolvido pelo cheiro dos volumes da lello&irmão e suas capas avermelhadas em tecido colado; a “viagem aos impérios do sol e da lua” de cyrano de bergerac, onde a imaginação consegue levar alguém à lua, bem longe de tudo; as destrezas de maurice leblanc com seu arséne lupin, um ladrão perfeito e instigante; o universo insuperável de michel zevaco com seus “pardaillans”, seus “amores de nanico”, a “a ponte dos suspiros” “o pátio dos milagres”, onde cada luta, cada paixão era um acontecimento vital: onde a amizade era um valor superior: e a luta com o pai na escuridão; alexandre dumas, o sem igual, com os “três mosqueteiros”, as “memórias de um médico”, “os irmãos corsos”, “a tulipa negra” e o insuperável “o conde de monte cristo”, onde todos os sentimentos se articulam numa vingança sem igual; e “nossa senhora de paris” que me horrorizou, encantou e abismou chamando “o homem que ri”, marcado pra sempre com o riso das feiras e os labirintos da sorte, e “os trabalhadores do mar”, com a luta monstruosa e, depois, a escolha tranqüila da morte e o amor, sem esquecer “os miseráveis”, o olho do sapo mirando as estrelas, e tudo o mais de victor hugo numa coleção de obra completa encadernada em cor-de-rosa sobre as capas originais; “as mil e uma noites” num único volume pra crianças, sem o erotismo, sem a violência, sem a dimensão literária de labirinto e hipertexto, fragmentos reescritos pra uma infância normalmente idiota; o robert louis stevenson da “ilha do tesouro” e “dr. jekyll e mr. hyde”, com sua sutileza e poder de descrição: quem pode contar uma história tão bem?; lewis carroll e sua “alice no país das maravilhas”, onde a imaginação não somente pode tudo, as palavras podem tudo, mas o escritor também é alguém que não deve ter limite algum em seu delírio; h.g. wells com “o homem invisível”, livro que havia sido do meu avô, numa das traduções de monteiro lobato, um escritor que jamais li; “o vampiro da noite” de bram stoker contribuindo pro devaneio de antes de dormir; o “frankenstein” de mary shelley mostrando como se cria um homem, e que um dia seria um momento fundamental da minha própria escrita; la fontaine e seu universo de animais que são um espelho dos homens: os homens sempre menores que os animais; e os “contos maravilhosos” de muitas literaturas em coletâneas - uma experiência arriscada a travessia de cada livro.
e no alto, bem lá em cima da estante maior da biblioteca, que ia do chão ao teto e era de madeira, alguns livros diferentes, com imagens diferentes. primeiro “os exercícios de devoção” do abbade de voisenon; depois “sensualidade” composto por fragmentos de “obras licenciosas” de júlio ribeiro, pierre louis, rousseau, petrônio, anatole france, pitigrilli; “uma noite com ellas: contos galantes” por rabelais e “contos libertinos” de sade; e muitos outros, cada um melhor do que o outro, com gravuras deliciosas; sem esquecer que junto desses livros estavam algumas “revistas pornográficas” da década de sessenta, num envelope marrom, como se devessem não ser vistas: e as imagens invadiram meu corpo, meus sonhos, minha imaginação: os corpos, o desejo, o gozo e a razão da existência apareceram na minha vida, sem os vazios, sem as tarjas pretas do pudor ditatorial e autoritário, sem a ponta indistinguível dos seios, sem o pelo e quase sem a pele: havia muito mais do que horror cotidiano; mas o principal foi “minha vida, meus amores” de henry spencer ashbee: esse foi uma das maiores confluências da minha vida: nele há uma vida livre, alegre, gozadora, libertina, plástica, imoral, sensual e sexual, uma violência inescapável e cínica, um aprendizado insuperável, uma escrita sem pudores, criativa e múltipla: uma vida que vale a pena ser vivida, uma vida que gera literatura e o conhecimento que a literatura só seria feita com uma vida assim, só haveria inteligência a partir de uma vida daquelas: aquele seria meu labirinto. além da secção de “livros eróticos” e “revistas pornográficas” do meu pai (um momento maravilhoso pra uma criança que escolhe o caminho), esse último livro foi um dos poucos que ainda mantenho como essencial não pra minha formatação, mas pra minha formação (que irá terminar somente em 1988).
e havia a “biblioteca internacional de obras célebres” em vinte e quatro volumes em percalina verde, recheada com fotos e gravuras de escritores e artistas (onde comecei a reconhecer o rosto dos escritores), trazendo textos desde o egito até o começo do século vinte que fui devorando através dos anos com uma fome deliciosa. ali conheci muitos textos que atravessarão minha vida inteira mantendo o sabor e a surpresa do momento. a essa coleção associo sempre a biblioteca do meu pai, à noite, no fundo do quintal, entre árvores, a cidade silenciada, os pássaros dormindo, o sabor travoso de castanholas roxas desabando entre pardais, o odor verde de cróton incluindo, misturando, fundindo tudo, a naftalina, a poeira, os livros, as paredes brancas, a luz amarela do abajur, a fofura densa da poltrona à voltaire ou a cadeira de madeira armada que sempre desabava, a atmosfera daquele momento com a imortalidade, o medo, o desejo e a ânsia com vida que um dia iria se abrir, e não chegava nunca.
e um livro amarelo que eu lia aos poucos sentado nas praças, nas calçadas, em baixo das árvores na casa do meu avô. era o “panorama da literatura brasileira” com “introdução e notas de afrânio peixoto, da academia de letras”. hoje sinto esse livro com horror, mas no tempo ele descortinava textos dispersos da literatura brasileira. no tempo eu gostei de “ainda sou eu”, um poema de domingos caldas barbosa; “pigmalião e galatéia” de antonio pereira de sousa caldas; “no dia do entêrro de ...” de alvares de azevedo; “o beijo” de domingos borges de barros; tudo de casimiro de abreu, desde “meus oito anos”, passando por “minha terra” até “dores”; “adeus meu canto”, “vozes d’áfrica”, “o hóspede” e “horas de saudade”, todos de castro alves que eu sabia de cor; “festa escolar”, um fragmento do “o ateneu” de raul pompéia; “eurico”, de joão napomuceno kubitscheck; trechos de contos e poemas de machado de assis; “lamento das coisas” de augusto dos anjos; “ouvir estrelas” de olavo bilac; e os três volumes das “obras completas de fagundes varela” mais a obra completa de guerra junqueiro: basta! isso pra se ver o quanto a infância pode ser estúpida, sem crítica e sem gosto: a formatação literária de um oligarca das letras seria o horror conradiano se não fosse uma opereta bufa, ou uma bufa sem opereta nenhuma. a Literatura brasileira, numa legítima reunião do pior da oligarquia das letras, posta em séculos, escolas e autores, cumpriu seu papel: aleijou minha consciência por muitos anos. dessa Literatura infeliz (pó de serra da hegemonia) recordo, entre onze e doze anos, apenas com muito carinho graciliano ramos, sendo lido em salvador na casa de uma tia, dentro de uma ravina florestosa diante da sua casa, sobre uma árvore: “vidas secas”, “caetés” e, a minha paixão permanente, “são bernardo”; o resto foram joseresdealencares e camiloscastelosbrancos servidos ao molho de alexandresherculanos e ecasdequeiroz.
tudo isso pra mostrar o quanto essa sopa indigesta de literaturas e livros ao mesmo tempo que exercitou a imaginação, deformou, ou formatou com imensos defeitos, percepções, gostos, sentimentos, olhares, escritas e caminhos. ela impossibilitou a realização da expressão, da voz pessoal, daquele não somente meu.
nessa infância existia a casa do meu pai com sua imensa biblioteca e a casa do meu avô. numa existia os livros, depois da grande árvore do quintal, em grandes estantes de madeira; na outra se desenrolavam, em quintais sucessivos, havia até um porão, aventuras, imaginações do mundo, muros, árvores, corpos, olhares, riachos e os movimentos múltiplos de mundo que não cessa.
mas a escrita, criar novos livros, nasce da ausência viva e cruciante de livros, não nasce de uma formatação infantil, mas das brechas dentro dos livros lidos e sabidos, ausências na cultural e na consciência, faltas significantes na biblioteca, exigências do imediato do presente e do tempo, insurgências contra o mundo e os outros. surge não somente dos livros lidos, da tradição, mas dos livros que gostaríamos de ler, que não existem, que somente podem existir através de mim, da minha específica rede pessoal, das minhas obsessões, é isso que força a escrita; e essa escrita brota, em primeiro lugar, depois que formamos uma biblioteca íntima, um sistema pessoal com certos livros, com determinadas estruturas de conhecimento e experiência, com determinadas recusas e esquecimentos. esses “livros da infância” não criaram a escrita, mas um patamar de superação. sua função é serem esquecidos. o esquecimento desses livros, que não podem nem devem ser mais lidos, é o que resta deles: esse esquecimento é suprido pela imaginação posterior: na verdade eles deixam de existir pra significar, deixam de representar como algo vivo pra atuar como uma coisa que ainda virá.