ZONA DE IMPACTO

 ISSN                                                                                                 ab irato

 

Vol. 4, Ano VIII, Setembro, 2005

 

            


literatura, movimento, hipertexto

 

alberto lins caldas

 

1

 

*. a palavra que se difunde, que é ouvida, entendida e aceita é unidimensional: faz parte, pertence, se enraíza: faz parte, comunga, é cúmplice.

*. sem a multiplicidade das muitas tradicções convergindo; das infinitas obras se articulando; dos muitos estilos e gêneros; sem o adensamento de citações; sem a folia de fantasmas textuais; sem sombras estilísticas; sem vidas e existências inteiras; sem a polidimensionalidade de leituras e releituras; sem a dimensão alegórica que articula em feixes o desarticulado tudo se torna raso: nada faz soltar a leitura em vários caminhos (por isso que é se corre para o enredo: é sempre o mais fácil: o “bom enredo” esconde o pertencimento, a unilateralidade, o raso: o verdadeiro enredo é nódulo monstruoso).

*. tudo se passa praticamente num mesmo lugar e, se há movimento, é uma volta sempre para onde saiu: minúsculo círculo arrogante: o lócus de inspeção, o mercado, a oligarquia das letras.

*. a literatura seria ou deveria ser o lugar da palavra espessa (aquela que não pode respeitar gramáticas e convenções retóricas: presa dentro de uma língua, de uma tradição, de um povo, de um território, de um tempo, de um grupo, de um mercado): aquela que faz recordar, a que vale a pena, aquela que faz reviver vozes mortas, atiça antigas leituras, livros esquecidos, frases incompletas, brilhos que morreriam sem um alento se não recebessem uma segunda chance: literatura é alegoria grotesca: tudo isso para rearticular “o plano e o campo existencial” que sofremos sem perceber.

*. mas o nosso leitor (o culto, não o médio e semi alfabetizado que encontramos como ratos numa epidemia medieval) não consegue ouvir essas ressonâncias, essas paráfrases, esses ecos, essas alusões, essa vida refeita em suas linhas monstruosas (tem uma meta filosófica clara com a negatividade e com a rearticulação dos vividos). essa polidimensão, o universo das paródias (a palavra unidimensional é burra e séria), essa riqueza aprisionada que somente determinada leitura consegue fazer brilhar e fazer com que realize o escrito.

*. a “oligarquia das letras” lê somente da maneira mais pedestre possível (nada mais pedestre que a erudição usada para esconder relações de poder e os vazios do seu “objeto”); é naturalista, historiográfica e sociológica, jornalística e midiática. A tradicção que lhe deveria servir, é ela mesma (escolha e formação de classes oligarcas e estatais): ocultamento e não mais que isso: sua função não é ler (destravar, desocultar, multiplicar), mas prender, ocultar, impossibilitar, subtrair a diferença, aquilo que não se doma, aquilo que rejeita a palavra comparativa, a palavra dos poderes, a palavra vendida.

*. a palavra que se funda num real (numa tecnologia, em comportamentos, em governos, numa nação e numa língua), num momento, numa história, numa política, é “levada pelo tempo”, fica presa naquele “lugar”: ela se entregou ao movimento que cala e faz calar jogando a palavra, a consciência, o poder de mudar e compreender, no fluxo devastador das mercadorias que se apresentam como tempo, como evolução, como a realidade, mas não passam de “moda”: é abdicar da própria literatura em nome de uma Literatura (lócus de inspeção e palavras de uma oligarquia das letras).

*. não creio em leitores. se eles crêem em mim isso é problema deles. eles procuram sempre sobre-o-que-a-palavra-diz, não o que a palavra é: uma existência densa, confluência e dispersão de tradicções: não ser: palavra desterrada. eles procuram sempre o sobre, jamais o é (aquilo sempre em devires), sempre o igual, jamais a diferença e sua inconformidade. para eles um “texto em prosa” não tem uma poética: não é, além de tudo, significante: materialidade que significa por si mesma, contra si mesma, contra quem lê, contra o mundo: nada ensina a não devires.

*. atingir “onde a alma se revela” (plutarco): a “alma” não é um ponto, não se dá linearmente, não aceita ordenamentos: o lócus da revelação não pode ser na visibilidade jornalística, no real sociológico, na estilística historiográfica, no vivencial das conversas do cotidiano como teima em patinar a literatura brasileira, mas numa espécie de hipertexto alegórico que é o real em sua extensão não percebida mas vivenciada, sofrida, dimensão imperiosa e cheia de mistérios exatamente por não “estar à mão” nem “diante dos olhos” mas comandar grande parte da existência.

*. esse hipertexto alegórico não sacrifica a extensão: sua função não é “não ver”, nem “não fazer ver” o resto do monstro, mas expor esse mais além monstruoso; não apaga a profundidade: não sendo presa dos campos realistas da escrita (jornalismos, historiografismos, sociologismos, antropologismos, literatismos, biografismos, gramaticismos, tradicionalismos) a profundidade é condição de cada momento (não a “profundidade de boca” dos escritores brasileiros na mídia): sem ela não se realiza a condição alegórica nem a extensão; não unidimensionaliza a polidimensão temporal tanto do “real” quanto daquela escrita que deseja deixar de ser escritura, deseja atingir o “real” violentamente, que é o mesmo que atingir a consciência na sua maneira de existir.

*. os bairrismos, os regionalismos e os nacionalismos literários (todos negam fazerem parte de qualquer desses rótulos precisamente porque todos estão incluídos neles: o “universalismo” é a forma mais ingênua de bairrismo), além de serem mercadorias vendáveis (seus clientes foram lentamente produzidos para comerem esta mercadoria), são reduções literárias, reduções de valor filosófico, reduções ilusórias da vida: não atingem o que pretendem atingir, não dizem o que pretendem dizer, não expõem o que querem expor: rotacionam no tom pastoso, professoral, jornalístico, visível, poetastro próprio da literatura brasileira.

*. a vida forte não aparece, não vem numa história simulacro de outras escrituras ou em fantasmas literários reduzidos, mas na alegoria. a radicalidade da literatura, sua vanguarda em ataque de compreensão e corrosão do real, do imediato do presente, não está na forma, na língua, na tradição, na palavra, mas num campo que reúna o espalhado que atua, o invisível que se visibiliza tragicamente, nas forças que agem sem se saber porquê. mas não a alegoria descarnalizada e impotente que se curva diante de qualquer poder, mas aquela que é reunião dos campos do vivido.

*. a busca por uma "fragmentação da linguagem" não é exatamente caminho: ele satisfaz por fazer parte do "espírito da época" (fragmentos quando são uma ação contra a pós-modernidade, contra a fragmentação que não seja, pelo menos nitzschiana, isto é, fragmentos afiados contra o mundo, não na medida do mundo, não com o espírito do mundo: o fragmento nem a totalidade são mais saídas literárias: uma atuação profunda e extensa nas linhas virtuais, fazendo com que elas se adensem em alegorias monstruosas talvez seja uma maneira de enfrentar não somente a pós-modernidade, que não é uma volta “moderna”, mas a dissolução temporal que nos impede de agir, de atuar, de compreender: é nisso onde reside as "possibilidades de significação"). a “estruturação textual” e “uma trama”, “um enredo” são conseqüências dessa rearticulação monstruosa nos campos imaginários em movimento: são nódulos de sentido fundamentais pra consciência, pra literatura que não é uma palavra estabelecida. “tentar construir jogos e labirintos de palavras” é continuar o lúdico do mercado, aceitando a literatura como um pleigraudi, um shopincenter, um prostíbulo: o jogo não faz parte da literatura: o jogo faz parte da imaginação na interpenetração carnal tanto na escrita quanto na leitura.

*. uma transversalização não é “dançar sobre estilhaços”, mas estabelecer um feixe polidimensional de visão: o lugar do texto não é mais como na “modernidade”, um espaço pra dizer o natural e o social, nem como na “pós-modernidade”, uma dança macabra sobre nadas impotentes: transversalizar é encontrar nódulos de sentido no movimento dos infinitos planos monstruosos do existir e nesse lugar im-pôr uma consciência, uma ação, uma interação, um projeto de mudança e compreensão.

por isso o “texto literário” é um lócus onde se guerrilha contra o universo, onde se detona o existente, onde se reúnem os fragmentos e onde se estilhaçam as totalidades: isso é “permanente tensão”.

 

2

 

*. a literatura é jogo solitário, masturbação deliciosa e violenta onde o leitor pode ou não entrar como voaiê, como pervertido olhando por uma brecha imperceptível para o libertino que se masturba vivendo a imaginação com sutil perversidade; ou um pião de madeira com ponta de prego e cordão resistente, sempre em movimento, sempre lançado bruscamente estalando no ar: só é literatura se for aquela masturbação e só é brinquedo se ficar girando sem parar, o jogador brincando sozinho depois da morte do universo.

*. a literatura não constrói coisas, objetos, homens, cidades, ruas, cidades, histórias, geografias, costumes: mas sistemas, relações, mediações, redes: isso é o que produz as coisas e os efeitos de real tanto no literário quanto no imediato do presente. como o real e nada dele existe, mas nos aparece sempre em teia, vibrando, atualizado pelas cordas imaginárias do tempo, a literatura não pode fincar seu gesto num real naturalizado, sociologizado, historicizado, mas um real que vibre como vibra o real: hipertexto monstruoso em gozo de fluxos: hipertexto que devora e vomita os contextos que esqueceram que são somente textos reificados e reificadores.

*. o real literário, sendo rearticulação do disperso nas redes hipertextuais, é, antes de tudo, pontes, linhas, pontos, planos, feixes, contatos: tessituras: tempo. a literatura são essas tessituras que não se localizam, não se definem, não estancam, não são reconhecíveis, não fazem parte do imediato do presente, do midiático, do jornalístico, daquilo que as modas levam, inutilizam, desgastam, jogam fora para nova mercadoria: a literatura é vírus permanente, em permanente mutação exatamente por não fazer “parte do presente”, mas dos devires, dos mutacionares, dos imperativos, daquilo que, mudando, exige mudança e, mudando, muda de novo.

*. a literatura não trata do visível, mas do perceptível, do intuível, daquele universo que não teme os relativismos absolutos, os fluxos. seu mundo se define e se redefine a todo instante: seu lugar é um não-lugar, sua palavra não é a da tribo, sua meta é negativa, instável. não é “dizer o mundo”, mas a existência enquanto devires e nessa medida.

*. é com a leveza do não-lugar que se pode tocar o peso dos lugares; é com a palavra desenraizada que se captura a palavra; é com o sem nome que os nomes se entregam; é com o hipertexto que se toca as relações vivas que em fluxo nos aparece sempre como o real: o solo da literatura é a atmosfera.

*. as lógicas da literatura não são as lógicas do momento, a lógica do grupo, da história, do povo, do estado, da “formação social” (não há correlação: quando há, não temos literatura, mas mercadoria, moda), mas aquela que nega qualquer lógica, qualquer corpo, qualquer forma: a forma da literatura é virótica, é relacional, hipertextual: como não existe, mas se apresenta; como passa e não se finca; como seu ao redor também passa, as relações consigo mesma e com o ao redor estão sempre em mutação, em redefinição, sem nenhum sistema residual, nenhum solo, nenhum conhecimento estabelecido, nenhum texto canônico, nenhum contexto naturalizado e nenhuma cultura de suporte.

 

      

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