a Literatura brasileira e o mercado

 

 

“(...) um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica de prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses. (...) Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas, muito bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias na redação, o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro. (...) Com os nomes novos não havia hesitações; calava-se, ou dava-se uma notícia anônima, ‘recebemos, etc’, quando não se descompunha. Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis e dignas de castigo. (...) Fora deles, ninguém pode ter talento e escrever, e, por pensarem assim, hostilizam a todos que não querem aderir à sua grei, impedem com a sua crítica hostil o advento de talentos e obras, açambarcam as livrarias, os teatros, as revistas, desacreditando a nossa provável capacidade de fazer alguma coisa digna com as suas obras ligeiras e mercantis. Por acaso, se o trabalho consegue vencer a hostilidade de semelhante gente, sempre cheia de preconceitos, eles ficam a matutar, pois não admitem esforço e honestidade intelectual em ninguém: de quem o autor copiou? Os mais hábeis daqueles que estão de fora, porém, quando premeditam a infame ousadia de publicar, arranjam preliminarmente relações de amizade nos jornais, de modo a obter um bom acolhimento para o seu trabalho.”

Lima Barreto

“Recordações do Escrivão Isaías Caminha”,

Obras Completas, vol. I, Brasiliense, São Paulo, 1956,

p.174/237/238.

 

incipit: não há exceções: a língua, como uma das articulações monstruosas da hegemonia (a totalidade desde dentro: a singularidade curvada à manada: o que submete a periferia e as fronteiras ao eixo: todos os domínios do sentido), é um campo de força que preda, tortura, abocanha, roí, devora, engole, incorpora as exceções. dentro dela tudo faz parte, como no e pro mercado tudo é mercadoria, dinheiro, trabalho, lucro. a órbita da língua é equivalente à órbita do mercado: nada se faz fora dele e, feito, eles anexam, fazem fazer parte, reposicionam até resignificar, deixando de estar onde devia estar, ser o que devia ser, recusar o que recusa: tornam doce o amargo, leve o ácido, suave e aceitável a negatividade, tornam sublime o ridículo, tornam minúscula e conveniente a forma que não cabe. e todo criador termina como produtor.

 

tomamos aqui um texto base (bourdieu, pierre. o mercado dos bens simbólicos. in a economia das trocas simbólicas. perspectiva, são paulo, 1974) e sobre ele inscrevemos outra perspectiva, outro campo, outro lugar, outra destinação, outra negatividade, fora do simples citacionismo. o texto anterior permanece como suporte, indicador de sentido que se esgarça, se transforma, diz outra coisa, perde a respeitabilidade, a autoridade, o lócus privilegiado. os pedaços que permanecem (manchas, ossos, cartilagens, cabelos, unhas, dentes do outro texto), entre aspas, não é pra garantir sentido, posição, respeito, mas pra reverter, pra negar, pra resimbolizar, ser artifício pra outra coisa. vermes sobre um corpo, espalhando esse corpo, transversalizando, hipertextualizando, inseminando, disseminando. isso mesmo, esse mesmo método, é feito inversamente pela crítica, pelos leitores e, principalmente, pelo mercado com as divergências, as oposições, as negativas radicais: tudo posto na forma re-querida.

a história do “sistema de produção de bens simbólicos literários no brasil sempre esteve ligada a uma específica oligarquia, a determinadas posições sociais, sempre pertencendo, no todos e em cada parte, à hegemonia. esse “campo intelectual e artístico” se formou dentro da oligarquia das letras, sob essas posições e por suas necessidades. esse sistema não separava e nem separa sua própria constituição e exercício da fundação e da manutenção da nacionalidade verde-amarelo (“fascista”, muitas vezes “nazista” e, o tempo inteiro, autoritário e excludente), das mentalidades cientificistas, historiográficas, sociológicas e, principalmente, jornalísticas via crônica, crítica e contos, uma atividade entre o jornalista, a notícia e o “leitor amigo”, sem contar com uma poesia recitativa, bacharelesca, eclesiástica e estudantil (carlos drumonnd de andrade é, muito longe de um rilke, um poeta provinciano, integrado e um oligarca das letras, muito bem articulado e sempre ao lado e dentro do poder). o “sistema de produção de bens simbólicos” em geral sempre esteve intimamente articulado e produzindo as ideologias que consolidassem campos da hegemonia (fechando buracos, completando discursos, fazendo ver políticas, apoiando perspectivas), sem jamais dizerem não, sem jamais atuarem acidamente ou tentarem uma vida independente (na teoria, nas entrevistas e nas memórias é tudo muito diferente: o escritor brasileiro parece sempre outro, nunca a vaca de presépio, o bedel, o funcionário e o jornalista de apoio: a negatividade, ou a vida negativa, é sempre um pastiche que esconde integração e conformismo).

no brasil a chamada “vida intelectual e artística” se mantém sob tutela do estado, da igreja (quando não é penitente é católica sem saber, sem ir à igreja) e da própria oligarquia das letras, que não se distancia muito dos lugares de poder extraindo e difundindo suas “demandas éticas e estéticas”, demandas geográficas e gramaticais, exatamente desse lócus periculoso (a Literatura brasileira é a dimensão “inocente” desses lugares).

não há uma “libertação progressiva”, um “processo de autonomização” da Literatura brasileira com relação à hegemonia na medida em que vai se constituindo como segmento, como “categoria socialmente distinta” porque os escritores (os escrivões da escritura falsa) levam em “conta exclusivamente às regras firmadas pela tradição” e essa tradição é de constituição da própria hegemonia via idéias engajadas no sistema simbólico e imaginário da nação (por trás de todos os lugares de narrar estão instituições, mitos, nacionalidades, empregos, classes). por isso a oligarquia das letras nunca esteve propensa a “liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social” ou “dos controles acadêmicos e das encomendas” dos vários poderes em circulação. essa dependência, esse controle, esses poderes não são forças externas, mas dimensão inescapável da oligarquia das letras e do seu “produto”. não há Literatura brasileira sem esses poderes, sem as específicas ilusões dos membros da oligarquia das letras, sem suas posições de capacho geral diante da hegemonia e da própria oligarquia das letras, o que é uma posição diante da educação, da política, das mídias e, principalmente, frente à negatividade necessária pra se realizar uma literatura (a Literatura brasileira é uma extensão ridícula e monstruosa de “jeca tatu”).

a constituição da Literatura brasileira é paralela à criação do estado e suas matrizes ideológicas, ao mesmo tempo da íntima relação que os escritores mantém com a oligarquia das letras e seus membros, inclusive com a desculpa da relação com os leitores que, pro sistema literário brasileiro, existe somente no imaginário, não servindo pra impor uma dimensão de valor, de reforma ou de revolução, mas de dependência conceitual, sentimental, mercantil: os leitores existem somente como algo que deve ser servido, não como dimensão inexistente e ao mesmo tempo exigente dos valores realmente literários, ou seja, aqueles que devem ser formados por uma literatura, não satisfeitos em suas necessidades. a má-fé dos leitores exigem a má-fé da oligarquia das letras, a má-fé das editoras e de cada escritor em particular: o que a má-fé não reconhece como verdadeiro é eliminado. o leitor enquanto consumidor ou alguém para quem se escreve é uma aberração ridícula. ele transforma o texto em marmelada, em produto de limpeza, em algo que se gasta no uso e é feito para se diluir ao ser usado, exigindo reposição. enquanto “alguém para quem se escreve” o escritor é anulado, isto é, se processa um apagamento. o escritor é aquele produtor que produz a mercadoria necessária, re-querida. nos dois processos há uma dissolução: a do leitor e a do escritor. resta o produtor, a mercadoria e o consumidor. e, sem querer, se saiu da arena própria da Literatura, do escritor, do leitor e do texto, todos agora travestidos em entidades econômicas, sociais e históricas. o leitor da Literatura brasileira, cria da oligarquia das letras, jamais deixou de ser “... esse amigo velho a quem sempre prometemos algum prazer na primeira página, cumprindo a nossa palavra, bem ou mal, nas páginas seguintes” (dumas, alexandre. a tulipa negra. lello & irmão, lisboa, 1945, p. 6). o escritor também segue este mesmo leitor. ele é o mesmo idiota de sempre, aquele que produz má-fé escrita, estando sempre numa posição afirmativa.

daí porque não há uma “nova definição da função” do escritor e da Literatura brasileira, mas mais uma dimensão do país, do povo, do território, da língua, do mercado, do estado. tal processo inicia com a criação da “idéia de brasil”, com o império e seus projetos, quando o lócus de inspeção é lentamente projetado e a oligarquia das letras consegue uma feição definitiva (não somente uma posição social e econômica, mas uma posição na produção, reprodução e manutenção ideológica da hegemonia, um lugar policialesco), com um tipo específico de “afirmação” e “legitimidade” que retira do escritor a possibilidade de “legislar com exclusividade em seu próprio campo” (o lócus de inspeção se faz com variações específicas entre os modelos jornalísticos, historiográficos e sociológicos tornados literários: o escritor brasileiro é um boneco de ventríloquo que tem certeza absoluta que fala por si mesmo), passando esse campo antes pelas estruturas consagradas (língua, gramática, companheiros, o bem escrever, o estilo: eles escrevem com a gramática, jamais com a língua, com a consciência e a violência).

o pretenso “movimento do campo artístico” literário não foi “em direção à autonomia”, mas a da relação camuflada, o que se realiza plenamente já com machado de assis. não há uma “sucessão” dos escritores no sentido de mudança, consciência ou complexificação, mas de sujeição integrada impossibilitando ver outra coisa (o mercado agradece!). o “medalhão” de machado de assis é o mesmo pulha de “famigerado” de guimarães rosa, e todos os dois fazem parte, naturalmente, do lócus de inspeção: seus autores foram pulhas da mesma maneira, por isso disseram tão bem suas castrações como se não pensassem assim, o que seria confirmado por outra ala importante da oligarquia das letras, os críticos, os professores, os resenhistas, os leitores: escritor pulha, texto pulha, crítico pulha, leitor pulha (todos não passam de “bentinhos”, de “donas plácidas” e os escritores todos são imagens perfeitas de “josé dias”, todos alardeando sua independência, sua plácida autonomia, mas jamais pra mudar, pra levar e elevar a consciência a um lugar de negatividade: a Literatura brasileira diz sem se comprometer, sem levar nada longe demais).

o “desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos” literário no brasil não é paralelo a um “processo de diferenciação”, que residiria na “diversidade dos públicos” e nas “diferentes categorias de produtores”. não há “desenvolvimento” no sentido de complexificação, de modificação, de revolução, de mutação, de algo que foi desenrolado, desdobrado, de aumento de capacidade, crescimento, progresso, mais consciência, clareza e negatividade, mas do funcionamento circular do modelo estabelecido ainda no século xix (o lócus de inspeção) e no fortalecimento da oligarquia das letras via universidade e jornalismo (não ser jornalista ou estar ligado a eles é um afastamento brutal da oligarquia) sob o jugo de editoras que poderiam muito bem vender bananas se descobrissem que o lucro é maior; a “diferenciação” é aparente, pois é somente a mudança de nomes (mas ocupando os mesmos lugares imaginários) e os mesmos livros, escritos de outra maneira (“dom casmurro” é “são bernardo”, e por aí vai!), o diferente pra reforçar o mesmo; o público, estranhamente, também não é diferente, mas moldado ao bel esforço da oligarquia das letras via mercado, mídias e educação. os bens literários foram valorizados enquanto mercadoria não por trazerem novos valores, mas por reforçarem os velhos de outra maneira. o “caráter mercantil” da “obra literária” não subsiste independente dos “mitos de fundação”, da hegemonia, não são obras que se insiram nas feridas espinhos e venenos, vírus e bactérias, mas obras que tentam completar os vazios, curar as feridas, expor os excessos, respeitar os limites, fazer moda, repetir estilos e formas, escorar visões de mundo, conseguir um lugar pra si mesma enquanto mercadoria e enquanto lugar de poder pra seu produtor (se esse lugar for um emprego, um lugar na mídia ou a garantia no emprego, perfeito!).

tanto na fundação da Literatura brasileira no século xix quanto no processo de constituição dela enquanto produtora de mercadoria, e os escritores como seus produtores, não se afirmou, nem se poderia ter afirmado, “a irredutibilidade da obra” na sua relação ao mercado, mesmo sendo “coisa vendida” (de macedo e seus escravos vendedores de livro a paulo coelho mundializado não há diferença a não ser na amplitude e nas estratégias de venda: a tapioca, a cocada e o pão-doce são os mesmos), assim como “a singularidade da condição” do escritor, livre da hegemonia, da tradição, da língua, das alianças, dos jeitinhos, do estado, das instituições, da igreja, das oligarquias e da própria oligarquia das letras. em vez de autonomia (do escritor e da obra) o que se fez, o que se consolidou foram as relações, as formas e estilos básicos transformados em modelos, padrões, gosto e suas variáveis aceitáveis ao mesmo tempo em que a oligarquia das letras se tornava a única visibilidade (invisível) e o horizonte da nação o limite do lócus de inspeção.

a “constituição da obra” como mercadoria e a existência de escritores como produtores singulares e reconhecidos (“uma categoria particular de produtores de bens simbólicos destinados ao mercado”), se fez na e com a constituição das ideologias nacionalistas e não no e pro “surgimento de uma teoria” da literatura, mas no fortalecimento de uma Literatura brasileira, equivalente ao fortalecimento do brasil enquanto país, língua, povo, território (o mesmo processo brutal de exclusão, eliminação e tortura pra estabelecer o país se deu com a língua e a Literatura brasileira). não há uma “dissociação” entre a Literatura “como simples mercadoria” e a hegemonia, mas complementação, relacionamento de apoio arquitetônico e funcional. essa relação íntima não realiza a “ruptura dos vínculos de dependência” dos escritores em relação ao estado, aos governos, aos patrões, aos mecenas, ao mercado, ao “recinto da repartição”, aos amigos e familiares, às classes médias, aos agregados e funcionários, a uma oligarquia intelectual e seus modelos evolutivos (plasticidade que transforma o mesmo em formas falsas, isto é, formas que escondem sua configuração), transformando sua liberdade em algo formal, escondendo suas dependências, sua submissão não somente ao mercado mas, antes de tudo, a hegemonia e a oligarquia das letras enquanto produtora dos “bens simbólicos” ligados a escrita, a educação, as mídias e ao nacionalismo verde-amarelo. o lugar do escritor é ditado não pelo mercado, não pelo valor literário, mas por sua posição diante dos dois sistemas (hegemonia e oligarquia das letras). o escritor não se afasta “de seu público”, mas escreve no mesmo diapasão dele, mesmo quando se considera e todos consideram ele um “gênio autônomo e criador independente”. o leitor, ou o público, ou o espectador, aparecem como “reflexo” apaziguado desses sistemas em movimento: sua função é de claque, não de fluxo que leve a uma autonomia do escritor, o que seria ir contra a oligarquia das letras, o que é quase o mesmo que ir contra o brasil (a hegemonia): sua função básica é a de pastar o capim servido como caviar. o escritor e o leitor são modalidades do mesmo diapasão, sambas de uma nota só.

 

coda: a figura do leitor é invenção de mercado, de autores miseráveis prontos pra produzirem uma mercadoria específica (o livro) pra minorarem sua desgraça de não ter mecenas, não ter o rei, a corte, os clérigos, a ordem; um comprador (o leitor), saído do lixo industrial e do desastre da servidão, ávido por se mostrar à altura da sua nova posição; tudo através de uma espécie recente e híbrida de atravessador e comerciante (o editor), aquele que produz, divulga e distribui a mercadoria segundo os ditames da sua formação e gosto mais os ditames e gostos dos consumidores.

antes da figura do leitor (produção do mercado) aqueles que liam não eram leitores, mas elementos internos e escolhidos, integrados numa ordem: sua leitura era a leitura da ordem. sua leitura se fazia no mesmo num diapasão entre o livro e o leitor. o livro não era mercadoria, mas valor de uso, algo próximo e íntimo, algo que fazia parte do corpo, das mãos, das crenças. essa forma de leitor, abusivamente elitista, desapareceu dando lugar ao leitor simples, difundido e comprador dos seus livros ou leitor de bibliotecas. esse também praticamente desapareceu ou está em franco desaparecimento. é um fóssil. esse leitor deu lugar ao público. não há mais em nenhuma instância esse ser singular, mas o público. tudo é feito desde o começo (feitura do livro) pensando nele. seu interesse não está mais em ler, mas em comprar. o próprio autor já desapareceu, transformado em produtor e o antigo editor, fase do leitor simples, é agora o comerciante, enquanto o livro é somente mercadoria. todos perderam sua força negativa, singular e violenta. a questão não é voltar a uma situação anterior, mas redirecionar a ação geral contra a reificação da negatividade.

como todas as forças que geraram a Literatura ocidental desde o século xvii foram mercantis, ou foram se estabelecendo e fortalecendo graças ao mercado, a Literatura tem se tornado o espaço escrito do mercado, a dimensão controlada do capital, uma das ideologias nacionalistas, um dos cimentos da hegemonia, um dos lugares de fabulação, de produção mitológica. interioridade enquanto sistema de crenças num exercício educacional para o trabalho e o descanso do trabalho.