a literatura e o horror
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não há literatura sem projeto filosófico [não a filosofia enquanto História das Idéias, Pedagogia ou Disciplina, certa racionalidade, certa razão, mas projeto ético/político radical, projeto existencial de saber, ação escritural autoconsciente, projeto diferenciado e negativo: estratégias em busca da negatividade].
no entanto a Literatura, normalmente, se funda enquanto perspectiva remodelada da sua própria tradição, da escrita religiosa, dos modelos populares, do jornalismo, da historiografia, da sociologia e até da antropologia sob formas literárias esperadas: conta uma história dentro dos horizontes formais: sua função é contar essa história (sua função é “fabuladora”: contar histórias pra dormir, pra fazer esquecer). o pensamento enquanto negatividade radical não é nem necessário nem possível na Literatura: não é necessário porque são estabelecimentos de formas que existem sem nenhuma radicalidade, nenhuma reflexão perigosa, nenhum pensamento a partir de outra perspectiva; nem é possível porque essa reflexão radical não faz parte da língua, da tradição literária nem da formação do escritor enquanto escrivão da hegemonia, um contador de histórias, um loroteiro vaidoso e letrado da oligarquia das letras, cuja função é reforçar o existente, amortecer o tempo, entorpecer a língua, dar continuidade.
pensar o existente não quer dizer pensar com o existente, mas, necessariamente, contra o existente; não com suas aparências, tropos, tipos, modelos, fôrmas, modas, entonações, mas com uma negatividade que escave além do razoável, além das crenças que sustenta a existência do existente, articulando elementos que construam do real seu horror encalacrado.
pensar contra faz aparecer não só as razões, os fundamentos, os planos e os movimentos do horror, suas redes e nódulos tecidos com os fios do medo, mas a aparência como uma das suas torções perversas: submeter-se à aparência é o mesmo que ser devorado pelo horror e ver que tudo isso é muito bom.
enquanto o que tornou possível a Literatura foi o capitalismo e o universo burguês, o que torna possível a literatura é a pós-modernidade como esse mesmo capitalismo levado ao paroxismo: o fim das utopias, a mundialização radical do capital, a impossibilidade da revolução; o desaparecimento das crenças na história, na natureza em deus e no homem; a onipresença do horror, do sufocamento, da paralisia, do mercado.
há uma relação íntima, carnal, entre o horror, as religiões, a hegemonia, o estatal, o mediano, o mercado, a mídia, a educação e a Literatura: sem esses planos penetrantes e abertos pro sim, pro como-não, pro aceito, pro tou-honrado, a Literatura não poderia representar o papel não apenas explícito, mas o papel subliminar e formativo: seu campo de atuação sendo na linguagem atinge diretamente o existente na medida da sua reprodução, manutenção e elogio.
a literatura não existe como realidade ou como um já-feito, mas sim como projeto de saber (aquilo que, incompleto, busca o conhecimento através da negação: na dobra, na torção, o específico conhecimento literário, que não é conceitual como na filosofia: jamais universal, jamais regional, jamais nacional) que procura a consciência, se torna consciente e faz tornar consciente a radicalidade da sua negação, da sua perspectiva, da sua específica maneira de pensar e enfrentar o existente enquanto teatro do horror. mas não encontra nenhuma consciência reconhecível, mas aquela que se faz ao sabor-saber literário: não é busca pelo já conhecido, mas por aquilo que nasce de uma reconfiguração, de um outro arranjo. seus problemas, suas investigações, seus confrontos não são feitos com os materiais tradicionais da Literatura, da oligarquia das letras ou do lócus de inspeção, mas do enfrentamento com a língua dos planos vivos do horror.
a literatura tem em artaud, bernhard, büchner, céline, genet, beckett, kafka, kavafis, lautréamont, mallarmé, melville, dostoievski, nietzsche, rilke, rimbaud, sade não origens ou genealogias, muito menos os trilhos tradicionais onde foram postos ou um paideuma, mas horizontes de contradição que alimentam as transversais da literatura enquanto enfrentamento do tempo com a linguagem do fundamento.
literatura é o outro. é o encontro com outras vozes. é a expressão maior de individualidades. a resistência dessas individualidades. a manifestação plena dessas vozes e dessas vidas. vidas e vozes, experiências e vivências integrais, principalmente num tempo cada vez mais fascista onde o horror é o cotidiano, as relações, o profundo e o raso, o antes, o agora e o depois.
a literatura não é mimética, é escrita limpa, sem nomes, sem tecnologias, contra a língua, contra as tradições, contra as tradicções, sem experimentalismo, a literatura é guerrilha contra o tempo: poética da negatividade.
a Literatura, com sua tentativa ridícula de mímesis, com sua torção localista e nacional, com seu respeito fascista, não produz a língua senão como reprodução de certo viés, repetindo uma língua estruturada para significar de determinada maneira: a língua na literatura, fragmento, diálogo e enfrentamento, cria sua língua no fluxo do viver, a partir da gramática latejante das coisas, das gentes, das tormentas da existência: sem o mundo enquanto ordem vivencial de resistência e sobrevivência (estar no horror), sem a articulação das experiências essenciais, soltas no viver e presas pelo “texto”, potencializando os poderes da linguagem que se arremessa ao auto-conhecimento contra a loucura do horror, ajustando a interioridade em seu fluxo dialógico com as formas dessa interioridade, a literatura ficaria numa masturbação lingüística e sociológica.
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com o “declínio dos valores éticos e religiosos” (já não são éticos, mas jurídicos e estatais; não são religiosos, mas cientificistas com cobertura mística ou resistências ingênuas e impotentes), assim como a transformação dos “valores estéticos” em “valores industriais e comerciais” (por isso não-estéticos, mas mercantis e expositivos: a arte desapareceu, por desvelamento, pra somente aparecer como “objeto cultural”: ela jamais voltará a ser o que foi): antes de tudo valor-de-troca: todos os valores foram desvendados e superados hegeliana e marxianamente pelo valor-de-troca: ética é somente um código escrito (burocracia sem virtu, indivíduo sem comunidade) e as religiões são crenças entre crenças (o deus dinheiro de shakespeare e balzac como suporte e fim);
com uma reformulação radical da percepção, da cognição e do corpo (o corpo, que não era mais há muito tempo o “túmulo da lama”, não é mais um domínio biológico, sendo esse somente uma das suas “formas históricas”): não há mais dois sexos, cores estabelecidas por colonizações como estigmas do nascimento (desapareceram as raças, restando somente suas lutas políticas num vazio real, mas sobre suportes de sofrimento e discriminação que o sumiço das raças não extinguiu nem pode extinguir por se fundar em limites ontológicos radicais [sociais]: não há o fundamento, ou melhor, o fundamento é imaginariamente doloroso, por isso real: e o real é racista, etnocêntrico, fundamentalista), um só deus, um só corpo, um só olhar, um só desejo: o em cima agora é em baixo, e não há mais em cima nem em baixo (qualquer ponto está em todos os lugares sem estar mais em lugar algum): a percepção voltou-se pra sua matrix, a rede virtual produzida por sua práxis: sabemos agora que o real somos nós, nossa presença, nossa práxis e seus fantasmas, suas dobras e torções, suas sombras e luzes: não se percebe mais um existente pré-estabelecido, natural, universal, dado em-si, mas o existente enquanto produção viva da práxis, lócus social, relações de poder, ideologia, cotidiano, trabalho e desejo;
o belo (agora completamente produto e réplica platônica de um ideal industrial: o mundo das idéias deixando de ser em-cima pra estar por dentro do entre-nós): deixou de ser belo pra ser o mediano (o mediano, que desvelou o belo como algo sempre entregue a quem-pode, deixou de estar no meio pra preencher todos os vazios e esmagar todos os cheios): e não há nada mais que o mediano: que não é mais do-meio, mas do-todo: deixando definitivamente de estar associado ao bem (agora definitivamente o mal, a carnificina, o campo de concentração, o gulag, a política como administração crua de si mesma e proteção dos capitais, a polícia e o exército, a massa, o grotesco, a beligerância, o indiferente e o entorpecido: o bem desnudado, sendo visto como tendo sido sempre o bem-de-alguns, o bem-do-poder) e ao verdadeiro (agora ou indefinido, ou fanático, ou científico: a verdade sendo verdadeira somente dentro do seu lócus, dentro daquele sistema que faz ela ser ao ser considerada e vivida como verdade: a verdade só é verdade com condições, sem contradições: a liberdade deixou de se apresentar como livre porque encontra seus limites objetivos imaginários), assim como ao real (o mercado como único real: o real enquanto o entre-nós e suas crenças polidimensionais: todos os comércios): sem horizonte de legitimidade qualquer verdade torna-se imposição: aquele que diz ser sem posição ao acobertar sua posição: a verdade passou a ser o punho, o braço, os dedos retesados no anus aberto por garrafas de vinho: o sexo escancarado, disponível, dentro somente do prazer da mercadoria, tudo de plástico;
o sublime, como aquilo que se eleva: que está no alto: que é ilustre: nobre: distinto: que é “inexcedível perfeição material, moral ou intelectual”: aquilo que é “esteticamente belo”: o máximo: a perfeição: o que “se eleva no ar”: o “sentimento de espécie mais refinada, assim qualificado quer porque se pode desfrutá-lo mais demoradamente sem saciedade e extenuação ... uma sensibilidade da alma” de kant: o sublime que sidera, esmaga, que apequena diante do monstro, do divino e do natural desaparece: esse mundo cristão, filosófico, aristocrático foi, em dois séculos e centenas de guerras e genocídios depois, depois dos processos de massificação e mídia, carbonizado, permanecendo somente como saudade de letrados cegos: com a dissolução irremediável de tudo, resta somente a luta sem trégua contra o horror [último romantismo ridículo], a negatividade contra a positividade imposta, querida e no poder: tudo que estava em cima agora está em baixo, e o que estava em baixo continua em baixo: esse sublime se transferiu pro empíreo, pro delírio, pro silêncio ou pra uma atividade singular e alienada: pois o sublime perdeu sua condição, seu solo tradicional, religioso, especial: sendo reconhecido como somente mais uma experiência daquele que se alheia ou daquilo que não consegue (talvez chegar ao horror, à diferença e ao radicalmente outro): o sublime, como expressão das artes e sentimentos de algumas classes que se proclamava grande conquista e que era universal, gorou irreversivelmente;
com a palavra deixando de significar enquanto experiência e revolta (é somente mais uma mercadoria: significante monstruoso: pairando sem significado: sem força: com a força da mercadoria): enquanto parte constitutiva do entre-nós, uma das suas matérias constitutivas: a incomunicabilidade se tornando o que antes podia ser um espaço do diálogo e do comercio vivo entre os indivíduos de determinadas classes (a falsidade se escondendo em forma de “conversa”): podia ser o fluxo de conhecimentos e vivências (que se estabelecia numa corrente específica de poder que é o saber): agora é mais um ponto de ativação mercantil, de ativação dos trabalhadores, das crenças gerais e da acomodação paralisante: a palavra é cúmplice quando faz sua parte de matéria viva do existente enquanto tempo: a palavra tornou patente, com seu mutismo, que sua forma de existência é aceitação e tradução, engano e submissão, crença e silêncio: o sentido é o momento da cumplicidade, o momento quando o diálogo cessa e aquilo que o outro disse permanece: o sentido é subordinação e obediência: o senhor adormece e acorda, vive e descansa, cuida e se descuida dentro da inanição da palavra: casulo do senhor;
os indivíduos se tornando massa, cardume, vespeiro, cupinzeiro (na literatura desaparece, ou se pulveriza, o personagem, que não pode mais ser a antiga máscara, a antiga personalidade, o antigo trajeto do herói, a antiga voz narrativa: personagem legítimo agora somente na “Literatura de massas” como pastiche impotente, performático e típico, nas “Literaturas populares” como “sobrevivência” tanto por ignorância como por resistência passiva e festeira, ou na Literatura, como o exercício tradicional [jornalístico, historiográfico, sociológico] da hegemonia: como fonte é manter o antigo, o tradicional, o integrado): o indivíduo como clonização que não se sabe: o igual que pensa que é diferente: a busca pela possibilidade dos indivíduos se vincularem numa busca da liberdade sem esperar por ele na utopia do depois de uma revolução, normalmente depois de purificações em campos de concentrações, gulags, expurgos e cotidianos de medo e terror, cotidianos de trabalho, de exclusão, de shopincenteres e mídias (o campo de concentração agora é o entorpecimento generalizado necessário pro sistema inteiro funcionar): como fazer essa vivência da liberdade aqui e agora, fora de um futuro idealizado e fora de controle, se ordenar na literatura como rearticulação daquilo que aniquila o indivíduo: a busca pela negatividade radical, pelo prazer sem controle, pelo prazer negativo que seja do indivíduo, seja de grupos que voluntariamente se escolhem fora das “hierarquias de opressão e poder”, é uma possibilidade da liberdade fora do olho midiático do estado, do outro monstruoso, do cardume: mas tudo no horror é compulsório e regular (regulamentado), é naturalizado e universalizado, é satisfatório e passageiro, é feito em massa e com permissão [um se abismar: um cair de propósito no turbilhão do abismo]: a literatura é um vírus solto nas redes ou não é nada: não há literatura sem indivíduos livres;
com a intimidade tornando-se coisa de todos: orgia midiática entre aqueles que nunca se viram, jamais se verão e não querem se ver (nem devem se ver: só há grande liberdade na masturbação: a festa, o encontro, a noite, a música são entidades do vespeiro de “classe média” em busca de reproduções e repetições): o íntimo tornando-se, ilogicamente, pura exterioridade escondida: entrecruzamento de imagens que perderam seu corpo e de corpos que perderam sua imagem: bestialidade, pedofilia, fisting, coprofilia, sexo maquínico, sexo cansado e cansativo: esperança de sexo, menos que amor: esperança de roçar, de ver, de ser correspondido, de ser visto, de dizer quem é mesmo não sendo nada: esse sexo imposto: sexo de sade torcendo o prazer até a dor e a dor até o prazer que não se sabe mais, até a destruição do outro e de si mesmo: o olho supremo fora de si: longe: guardado: protegido: o íntimo descobrindo, horrorizado, que sempre foi entre-nós: vítima da própria cumplicidade assassina: incapaz de construir uma formação, um caminho, uma resistência radical ao em-torno;
com a igualdade e a liberdade revelando, antes de tudo, a vontade e o exercício do poder em suas “formas capilares de controle”, o imperium da singularidade camufla em si a comunidade em seu horror, todos os mimetismos tribais que apenas para os mesmos o fazem aparecer. na modernidade, cada vez mais, os relacionamentos devem ser por livre escolha. mas não temos um mundo onde a liberdade e a igualdade substituam os poderes e se imponham nas próprias relações: a liberdade, a livre escolha, se torna dramaticamente um teatro da crueldade eroticamente violento e massacrado. a liberdade se ajoelha diante do poder e se humilha pra gozar, fazendo sempre seu patético jogo erótico: estamos num mundo inaugurado por sade. fora dessa liberdade prostrada diante do poder, nada mais pode ser pensado.
com o desaparecimento da arte, sendo substituída ou superada por sua real forma de existência (objeto cultural): forma pra exposição e venda (sem a cumplicidade e sem a aura religiosa, aristocrática e burguesa tradicionais): estrutura similar ao “objeto mercantil” (que perdeu seu momento religioso ficando somente como matéria artesã: matéria prima de artesãos de várias “classes” cada um trazendo a carne pra seu prato), terminou fazendo as vezes de “expressão da sensibilidade” (singularidade produtora de objetos pra determinado mercado proclamando que é “pela arte”, “pelo povo”, “pelo país”, “pela história”, “pela beleza”, “pelas idéias”: materiais, gêneros, performances, interfaces, tecnologias, repetições: aquilo que precisa dizer o que é, o que significa, “ao que veio”, o que representa [escondendo seu teatro: a lógica da identidade, a solidão do objeto nu, o pertencimento ao sistema dos “objetos industriais”]: seus sentidos estão fora, no capital: significante despolitizado e policiado) num circuito oficial e venal, ao mesmo tempo capaz de desvendar sua forma de existência anterior (que era praticamente a mesma coisa, mas com os véus da sacralidade: a arte desde a primeira metade do século xx perdeu toda a sua especialidade, unicidade e capacidade de dizer mais do que ela mesma enquanto “coisa-mercadoria”: sua forma de existência é a de “representação”: teatro do silêncio e do ridículo): a arte não consegue, nem jamais conseguiu, enfrentar o horror (a não ser fazendo parte sem saber: da igreja, do mecenas, do empresário, do estado, do mercado: sujeito integrado e objeto produzido também integrado): seu horizonte é o das coisas [ritualizar as coisas, reapresentar as coisas, por as coisas no seu devido lugar, de produção, repor tudo no seu devido lugar parecendo ser revolução, revelação: não consegue esconder seus “interesses de classe”, seu lócus viciado, sua parcialidade fragmentada por conivência]: como as coisas perderam seus véus, restou pra arte ser somente coisa, mercadoria e estratégias específicas de convencimento de consumo (a defesa da arte é, na verdade, uma estranha forma de venda, circulação e consumo: a defesa de uma posição, de uma produção, de um consumo);
com o fim das utopias, transformadas objetivamente em todas as formas de genocídios, campos de concentração, totalitarismos, autoritarismos e complementos imaginários, ideológicos, militares e burocráticos do capital, isto é, sem o futuro como meta, havendo se perdido o passado ao se descobrir que a história é uma escrita, um conhecimento, uma experiência praticamente inútil pro presente, agora somente imediato mercantil e midiático com uma política voltada somente pra administrar e proteger o mundo do capital, um processo monstruoso de despolitização tomou conta de tudo (a “esquerda” ficou somente pros “fósseis” ou como substituto da masturbação numa adolescência de “classe média” sem horizontes): o tempo está reduzido ao agora do cotidiano, enquanto toda as suas dimensões e espessuras mergulham pra uma espécie de inconsciente atuante mas impotente pra um além das práticas e teorias naturalizadas, universalizadas e historicizadas (o movimento, as contradições, as mutações reduzidas ao mutacionar das mercadorias): com o desaparecimento da idéia de revolução (substituída pelo conceito de evolução-progresso ou por mudança e modificação), a política voltou a ser manifestação de apaziguamento (os políticos como parasitas do estado, que é um descomunal parasita imaginário da “comunidade” sugando objetivamente os “frutos do trabalho” em “nome de todos”), e a idéia de revolução migrou pra “renovação revolucionária” de mercadorias e serviços:
com tudo isso, e por tudo isso, e sem saudosismo (o “mundo do valor”, mundo religioso, aristocrático e burguês impondo sua natureza, sua universalidade, sua religião, sua história, era tão monstruoso quanto o desse momento: o “mundo do valor” sempre foi mundo pra poucos, aproveitadores e saudosos), mas como “análise” pro enfrentamento, a literatura deve deixar de atuar como sempre atuou na Literatura (suas velhas funções caducaram e persistem somente por uma oligarquia das letras, um cânone, uma hegemonia, um estado, um mercado e uma rede imaginária de “cúmplices” querendo exercer a nova vaidade permitida e exigida pela mídia, que era um pecado cristão e agora uma virtude pra todos: a fama), isto é, como representação da hegemonia (o horror): sua força reside em ser similar à virtualidade, as redes imaginárias que são o real enquanto criação, reprodução e circulação: escapa da individualização imóvel da arte, o objeto, e da função alienante do reprodutor de mercadorias como se fossem “coisas únicas”.
os “valores” destroçados, pulverizados pelo capital não podem servir de base pra literatura;
muito menos os “valores” do capital;
assim como os “valores” utópicos gerados pelos dois primeiros.
a literatura enquanto libertinagem é a perda desses referenciais (tradição [passado], mercado [presente] e utopia [futuro]) impondo suas formas, sua expressividade, sua força e consciência na articulação negativa contra o existente: sem “valores” passados, presentes e futuros.
a impotência do trabalhador: seu respeito cúmplice: a incapacidade dos poderes e dos saberes em convencer e satisfazer (atributos da mercadoria) simbólica e materialmente (que é o mesmo que está fora do mercado, e do presente) suas vidas, que é a de praticamente todo mundo, é o presente horizonte, as possibilidades de forma, de ritmo, de articulação da literatura: a literatura é pôr em forma, enquanto enfrentamento negativo, esse horror. mas essa forma não pode perder sua condição de desmascaramento em busca da consciência (ao tornar patente, ao transformar o disperso em alegoria grotesca, forma-narrativa), não da solução, que pertence às ilusões seja do passado [tradição-ideologia], seja do presente [mercado-ideologia], seja do futuro [utopia-ideologia]: é do horizonte de impotência, incomunicabilidade, solidão e violência que vem as formas da literatura: pura negatividade terrorista sem causa.
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a literatura não pode mais ser contar uma história, mas específica maneira de enfrentar não somente os horrores do passado (aprisionados nos gomos do tempo, na experiência, nas práticas sociais e interindividuais, nas malhas do imaginário em fluxos de atualização), mas os nossos específicos horrores, expondo mais do que sua visível monstruosidade: daí porque o grotesco sem o alegórico é somente Literatura [sociologia jornalística ou jornalismo historiográfico: dimensões da mídia: não mais um contar “os excluídos” (mercado-ideologia: cumplicidades); ou as vozes da elite (tradição-ideologia ou produção-mídia); muito menos as “vozes da revolta” (utopia-ideologia por não estar no mercado, por se ressentir da sua “posição social”): tudo é mercado, tudo é mídia, tudo é mercadoria, tudo é cardume], e o alegórico sem o grotesco é somente “literatura fantástica” [teatro de sombras feito pro riso frouxo ou sonhos realistas da mídia]: o grotesco sem a alegoria é somente a aparência transformada em espetáculo único e principal [qualquer “gênero” da moda: alegoria impotente como algo “em sentido figurado”, ou aquilo que “representa uma coisa pra dar idéia de outra”: fantasmas de papel: a alegoria transformada em imagem, em simulacro, em mediador impotente].
nosso horror, além de carregar os horrores do passado (mais-valias, explorações, tráficos, monopólios, abusos, violências, poderes, pressões, repressões, coações, entorpecimentos, constrangimentos, miséria, influências, sujeições, vassalagens, rendições, cooptações, desproteções, pobreza, selvagerias, torturas, agressões, violações, opressão, proibições, humilhações, aviltamentos, racismos, homofobias, angústias, desesperos, machismos), agora com novas e atualizadas feições, tem que dar conta das teias imaginárias próprias do nosso horror pessoal e grupal, aquele horror que além de estar próximo, está aos pedaços, aos quadradinhos, aos fragmentos, aos pontos numa múltipla rede espácio-temporal que somos nós enquanto “comunidade”, enquanto indivíduos: o horror se espalhou ainda mais do que o antigo horror: hoje é mais fácil ver ele somente enquanto mídia, aparições do mercado, permitidas pelo mercado, mas nunca articulado em seu horror vivencial: o horror é o que se esconde, o encapuçado, o disperso, o invisível de toda realidade: seu exercício monstruoso.
o trabalho do libertino é o mesmo da mítica parteira: trazer a luz, mas luz que é feixe negro de contradições (luz negra que afasta, que não aproxima, que não ilumina, que recusa a luz: faz aparecer novas formas, novos contornos e profundidades), o horror em seu momento [mas esses momentos do horror transformados em literatura dependem do seu lócus articulador: o libertino e seus feixes não podem ser excluídos: o libertino não é “escritor” nem “cientista”, ele não carrega essas ingenuidades ideo-lógicas: seu lócus é o que articula fragmentos do horror: que fazem parte da sua responsabilidade, liberdade e experiências pessoais-coletivas com o horror ou os horrorres: a “verdade” ou a “realidade” não entram em seu universo: a literatura é inútil, e perigosa, pra “cidade”, pra “república”: esse é o seu olhar, o seu ponto, a sua radical individualidade, resultando em individualidades do horror: é essa individualidade quem “unifica” o desarticulado-pra-ele, não a “verdade”: nessa articulação o libertino encontra o que sentia e ainda não sabia completamente: a escrita reúne o disperso e se transforma numa experiência pessoal: numa consciência maior sobre o horror e sua vida enquanto horror no horror]. seu papel é ampliar feridas, aceitar e expor os monstros desses partos, evocando e provocando, reunindo e espalhando. em vez de acalmar as dores (seu papel não é o de fazer cesarianas), fazer ver a própria dor, as muitas dores que a ilusão produz, que o viver por viver esconde: o sofrimento que articula o viver e que desaparece como justificativa. o libertino faz, com a literatura, o parto da descoberta de si mesmo e do mundo em seu horror: interroga o horror em sua forma dispersa, pulverizada, triturada em múltiplos patamares e dimensões (sempre em movimento, sempre mudando de lugar: a literatura dá um lócus pra esse predador insaciável e território onde ele pode se desenvolver, se expor e se soltar), em transversais inumeráveis e imperceptíveis: a literatura torna visível, abstrai e fixa pontos, articulações, torções, planos soltos do horror, de modo a agrupar sob uma mesma forma/movimento uma multidão dispersa de vivências, experiências, inquietações: a literatura é o lugar, a jaula, onde foram aprisionados hologramas fragmentários do horror: como veio da dispersão não é representação, não está no lugar de nada, não é signo, não é vivenciável (pré-sentido como unidade), mas enjaulamento de atmos-feras.
o horror está sempre trabalhando.
a literatura não nos liberta do horror, não nos libera em “descargas catárticas” [é preciso deixar de estar leitor: nada mais imbecil do que um leitor]: não supera no espelho como a Literatura, o teatro, o cinema, a arte e a mídia: atravessando depois dela e com ela o horror seremos, enfim, nós mesmos e o horror será, finalmente, ele mesmo pra nós [literatura é algo íntimo que só a depravação faz tornar pública]: nenhum dos dois se esconderá mais: os dois terão seus corpos, seus órgãos, suas práticas, seus rituais, suas crenças ex-postas minuciosamente por seus fantasmas [esses mesmos que não cessam de nos mastigar, devorar, engolir, assimilar e cagar].
4
a palavra tomando o caminho da Literatura (a palavra do mercado, da hegemonia, da tradição e da mímesis: palavra que não se desdobra, não flui, não se multiplica nem nega: mantida imóvel e na repetição) perde seu poder desestabilizador, sua condição instável de pôr em crise, em limites os planos imaginários do real; seu poder de inquirir o horror (a palavra não representa nada: ela se cola a palavra de ordem e ao envoltório das mercadorias).
a literatura ao não se conformar ao conforme, ao não ser verdadeira por não ser mimética, interfere na consciência do horror. enquanto a Literatura se entrega ao horror, ao mundo da identidade [princípio, meio e fim; ordem; reconhecimento; imitação; reprodução] e do aparecer estável (antigo mundo religioso e dos poderes medusantes), a literatura precede o horror, por dentro, ao articular o desarticulado, ao criar o seu disperso nos pontos da sua atuação monstruosa: a literatura corporifica o incorporal do horror em seus momentos separados, intocáveis, incompreensíveis, impunes, incompreensíveis [prende os estilos, os picos do horror numa malha inesperada que ex-põe].
a literatura ex-põe as línguas, os corpos, os poderes, as relações de crenças do horror na medida mesma da dispersão do horror, aquela que apresenta como ordem, história, cotidiano, trabalho, família, natureza: a normalidade.
a literatura re-apresenta (refaz o teatro do horror sabendo que é teatro, fazendo ver que é teatro) os fragmentos do horror “fisgados” das redes hipertextuais do horror, retirando o “esquecimento” que nos faz não-ver, no fragmento, o conjunto monstruoso, a harmonia dolorosa.
só a literatura pode dar conta do horror por sua capacidade em dramatizar em linguagem os dramas da linguagem que é o horror da linguagem que se esconde e se dispersa nas gramáticas, nas lógicas, nos conceitos, nos conhecimentos, nas tecnologias e nas memórias. uma das forças da literatura é não-crer e atingir a crença no horror como a própria realidade: seu limite é o caos: sem estar cega com o que se formata com ele.
a literatura, ao não ser a palavra mimética, deve reconhecer a impossibilidade de se definir: sua função guerrilheira impede parar pra se integrar: impasse do pensamento em busca do pensar: uma literatura que pensa contra leva à in-conclusão: mas seu caminho é sem saída, inexpugnável: os impasses, os paradoxos da doxa tornada princípio, olho e solução: ao seu solo e sua meta não poderem ser determinados, é uma articulação arbitrária (pedaços do horror), toda mímesis afunda, suas palavras não concordam com nada, sequer com os fragmentos de si mesma: suas contradicções não se resolvem, não aceitam mediações, finalizações, superações: e os sentidos jorram sempre diferentes, sempre sem polaridades (mesmo que se tente impor um centro e periferias), sem terreno, sem que os sentidos se satisfaçam: escapando sempre da leitura, que é aquilo que quer se reproduzir, se espelhar, afundar em sua própria imagem: as “portas da significação” estão sempre fechadas demais ou abertas demais: nada respira ali dentro, ou de tão aberto não há nada.
5
a literatura não é mimética, isto é, ela não gera uma crença ingênua, mas perigosa, que existe um real que ela copia, imita, representa, recria, simula, ecoa (a literatura ao não ser reprodução, modelo, plágio de um real, o real enquanto casca imaginária, não pode ser “avaliada” segundo esse critério): a literatura cria radicalmente seu real (enfrentamento): a relação entre o “real literário” e um pretenso real (que é sempre em discursos: o “real mesmo”, além de não existir, é impressão e proposição do imediato do presente, o estar vivendo que some ao ser vivido, que “pensa” poder ser traduzido e transposto “em palavras”: no fundo o respeito religioso pela “palavra escrita”, que vem do senhor ou do real, mas deve ser verdadeira: deve representar: o escritor como bobo da corte): que o “real literário”, ou qualquer escrita, pode ser uma réplica, um reviver, reprodução que pode ser avaliada em sua verossimilhança: como se o viver fosse palavras, e as palavras o viver: a relação é sempre “literária”, “discursiva”: entre palavras: presunção de tradução.
o poeta platônico, tratado como imitador (por isso julgado e expulso da república), é impossibilidade: criação de um sistema que acredita que as “sombras”, o real, de uma maneira ou de outra, são reais e imitáveis; que outro mundo ideal e de idéias também pode ser reproduzido (pelos filósofos), ficando uma parte como erro e a outra como verdade. sem coincidência com o verdadeiro, a mímesis é sempre inferior, incompleta e deformante: ponto cego.
a literatura seria um duplo inválido: a modernidade aceitou esse duplo em sua pretensa positividade (científica?), mas ainda assim duplo: a Literatura brasileira (o lócus de inspeção) é duplo subalterno da hegemonia: cópia do “ideal europeu” e do imaginário das “elites letradas”: realista, naturalista, jornalística, historiográfica, sociológica e memorialística: a Literatura brasileira luta pra ser mimética, pra representar, pra reapresentar um real que é, na verdade, simulacro não só do “conjunto da sociedade” imbecil, submissa e castrada, mas projeção ideológica da hegemonia tornada o real.
o horror (a virtualidade, a hegemonia) não é o real (aquele que é apresentado “textualmente” como se fosse o imediato do presente), mas fragmentos pulverizados do real enquanto dimensões da “totalidade” dentro das redes polidimensionais imaginárias, vivenciais, simbólicas, oralizantes, “literárias”, que são o tempo em seus desdobrares (contextos): a literatura é um dos enfrentamentos, não a imitação, a representação, a cópia, a “memória”, a expressão literária (historiográficas, sociológicas, jornalísticas: ficções esquecidas que são escritas: que reproduzem apenas mais escritas que não se sabem) de exterioridades.
literatura não é mímesis: mas a Literatura faz questão de ser mímesis. de acreditar (como jornalistas, que são “testemunhas da história”: como historiadores que “contam o que aconteceu”: como memorialistas que crêem piamente que “aquilo aconteceu comigo”, que sua escrita não é escolha, invenção: como sociólogos, antropólogos, economistas que apresentam, sem saber, sua escritura como se fosse o real, aquele que é pastiche do imediato do presente): a marca platônica e aristotélica, que atravessa a ocidentalidade inteira (estranhamente sendo aceita “inconscientemente” pela ciência) se põe a julgar o “literário” e o “artístico” pelo “real”, sendo aqueles a cópia e este a verdade.
o horror não é manifesto nem aparente (não é, normalmente, fenomênico): seu aparecer se dá fragmentariamente em situações normalmente não percebidas como o horror por ser escondido por crenças e justificações; por se apresentar como “normalidade”: mesmo que doa muito, humilhe mais do que o suficiente, torture mais do que o necessário, esteja entranhado nas “práticas sociais” e nas suas justificativas, no trabalho, no cotidiano, nas festas e nos rituais, nas técnicas e nas tecnologias, nas mercadorias e nas “relações humanas”: a literatura junta esses pontos soltos, mas atuantes como constitutivos e necessários pra hegemonia, num feixe articulado, mas não verossímil: no entanto nada mais vero que esse estranho símile do horror, não do real.
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uma escrita limpa de lugares conhecidos, definidos, geográficos, regionais, urbanos ou “universais”: não é o lugar visível (esse passa mais rápido do que uma vida de mosca: dizer esse lugar que passa é, na verdade, se eximir de dizer ele profundamente, de analisar ele de maneira realmente contundente e eficaz, de agarrar ele pelo pescoço: radicalmente), mas o lócus do horror, que está espalhado em todos os lugares e tempos desses lugares: as histórias tradicionais e seus lugares contam somente o específico que se desgasta em localismo, em reconhecimento, em tentativa de solução, em denúncia ou literatice (sempre se dizendo “universal”, isto é, uma das formas ridículas de localismo camuflado, de regionalismo envergonhado e de nacionalismos medrosos);
sem nomes aceitáveis, normais, tradicionais ou imitados: o nome é deformação a ser desmascarada, armadilha a ser desmontada, artifício hegemônico que faz parecer que tudo está normal, que faz parte por ser próximo, que começa na pia batismal, no cartório (jamais no crematório), nos costumes caseiros, na morte: ser contra o nome é uma das guerrilhas da literatura: nome é um papel, costume, sistema, transmissão, poder, posição, cânone, oligarquia, língua, nação (aquilo que nasce pelo poder e se reproduz pelo poder e pelas crenças imbecis e perigosas de uma manada produtora): a literatura é uma espécie de compreensão disso tudo enquanto intervenção: ou o nome é ironia ou se caiu numa naturalização do nome, que é o mesmo que entrar num circuito sem fim de naturalizações e crenças não superadas [o nome do “autor” também faz parte dessa luta: além das inescapáveis relações jurídicas, o nome do “autor” não deve significar a partir de fora, impondo sua existência viciada: mais um nome de um letrado da oligarquia: o nome do “autor” não pode reduzir (com sua língua, nacionalidade, sexo, história, raça, idéias, política) a multiplicidade, o jorro incessante da literatura: por isso ele significa tanto na Literatura: que esse nome seja engolido pelo texto e se torne “figura literária”: o “autor” ao se tornar a “origem” do texto (“origem” que marca o texto sempre com um contexto limitante: texto domado pelo institucional, pela crença que o texto tem origem, tem contexto, tem nome), pobre e ridículo deus de teatro, transforma o texto em “documento”, em “expressão de um tempo”, em “marco definitivo”: assim o horror escapa sempre ileso, deixando o texto afundado num tempo, num espaço, numa palavra: escritura falsa];
sem tecnologias específicas, mas genéricas, secundárias ou inexistentes: a moda tecnológica, como qualquer moda, não é enfrentamento do tempo (literatura), mas afundar no imediato: na Literatura (lócus de inspeção) a tecnologia deixa de ser enfrentada em suas funções coisificantes, nadificadora e animalizante dos indivíduos, pra ser deslocada pro “fundo”, fazendo o papel de cenário ou de “objetos da cena”: estão ali pra dar credibilidade, não pra ser desvendada sua produção, sua interferência e seu comercio entre nós [ou se torna “conceito”, “idéia”, “opinião”, o que faz o texto se transformar em parte dos mecanismos discursivos da tecnologia];
contra a língua: coisa genérica, língua do senhor (sempre posse dos “letrados” [oligarquia das letras: a “fina flor” que cuida diuturnamente pro bem-estar da “língua e da nação”], que desde o “escravismo colonial”, e “antes”, na península ibérica, eram serviçais da corte, da religião, dos ricos e do estado), campo de gramáticas, palavras de ordem, políticas e orto-grafias: a literatura deve ser a constituição de uma língua profundamente singular (o “meu” horror), particular, íntima, intransferível: somente assim o horror coletivo, o horror da massa e da colméia, se entrega, se dissolve, se deixa ver, se deixa sentir: essa língua não é “portuguesa” nem “brasileira” (muito menos qualquer dessas outras “línguas estrangeiras” que se fazem passar por “melhores”, “tradicionais”, “cultas” [“filosóficas” ou “literárias”] ou “práticas” [como a infantil, ridícula e caipira “língua inglesa”]): isso seria aceitar um quadro externo que me diria, código que deveria seguir, ciência que deveria obedecer (pra isso seria preciso que o mundo, a natureza, a história, deus e o homem existissem!): essa língua que nasce da literatura, que nasce do mais profundo de mim e de mim no e contra o mundo, que é a própria literatura, não é o que parece: só podemos dizer que é “portuguesa” ou “brasileira” porque aceitamos apenas sua “igualdade”, sua “similaridade”, sua “proximidade”, sua “comparatividade”, sua “legibilidade”, e deixamos de ver, por uma espécie de má-fé e ideologia, sua estranha diferença, sua mais radical singularidade, seu desvio perigoso, sua articulação negativa, sua instabilidade, sua condição estrangeira, migrante, antinatural, guerrilheira: deixamos de ver sua situação terrorista simplesmente pra trazer ela pra “dentro de casa”: o familiar como aquilo que não me desespera, não me desestabiliza: a crítica literária faz esse papel de tornar familiar o que não é, comparar o incomparável, pôr numa ordem o que nasce pra desordem: canonizar, explicar ou esquecer é não querer reconhecer a diferença terrorista ou essa possibilidade;
contra as tradições / contra as tradicções: o horror é a tradição (que é sempre tradicção) porque ela jamais foi enfrentamento do horror: ela é o horror canonizado: pode e deve ser canibalizada somente naquilo que possa ser transformada em literatura, em negatividade, em inversão: mais que canibalizada a tradição deve ser sodomizada: ela tem pavor de qualquer forma diferente do desejo, da “natureza”, da lei, do que ela gosta mas nega: a tradição sodomizada, bem sodomizada, perde o juízo, o controle, e grita feito uma louca no cio, uma cadela entre cães (e devoramos seus gritos): a tradição deve ser sodomizada profundamente: essa é a primeira coisa que devemos fazer com a tradição: depois podemos começar realmente sua refundição completa: pois a tradição deve ser posta fora da sua temporalidade pra significar pra literatura: ela deve ser desdobrada: posta na temporalidade da literatura: retirada do passado e do passado-pra-nós e exposta enquanto imediato do presente estirada pro futuro: o passado só significa enquanto imediato pro futuro: enquanto enfrentamento, enquanto horror enfrentado;
sem experimentalismo, ou melhor, o experimentalismo a serviço da negatividade e da ironia (ironicamente o experimentalismo nunca é genuíno: pra ser experimentalismo é preciso que o produtor e o consumidor acreditem piamente nisso, que isso realmente tem valor): o experimentalismo, a novidade, o “moderno”, o “atual”, são apresentações da mercadoria (representação inconsciente, que pode ser chamada também de má-fé): como-ela é triturada, produzida, circulada e consumida.
a publicação da literatura difere da publicação da Literatura: enquanto uma é negatividade, empreendimento da consciência contra o horror, não tendo o “leitor” (consumidor) em nenhum momento, importância alguma: sua ação se faz no tempo, longe do consumidor, mas com fragmentos negativos que irão tomar corpo contra a hegemonia; a outra é mercadoria (faz parte, é gênero, é sexo, é cor, é posição, é nome, é oligarquia), ou, no máximo, “documento/monumento”: exige ser mercadoria, exige e proclama o consumo e o consumidor: se entrega e exige se integrar, vender, se vender: fazer parte da mídia, da história, da cidade, do estado, do país, da língua.
quem faz uma é o libertino (aquele que liberta); quem faz a outra é o escritor (o escrivão da hegemonia, membro da oligarquia das letras).
a história, a estrutura narrativa, o sistema-tema, o encadeado, é efeito secundário da articulação em feixes dos horrores do horror: os elementos soltos no tempo, no espaço e na vivência, quando se articulam em outra consciência, criam um espelho-isca que é a história: essa miragem mira e faz mirar a virtualidade: esse é o meu olho, esta é minha face, eis a minha vida.
a literatura é guerrilha contra o tempo: poética da negatividade.
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quando o leitor começa a ler um “texto ficcional” que não comunga com o acordo (pacto, combinação, contrato, compromisso, ajuste, consenso, convenção, transação: formativos como um “inconsciente lingüístico” e cultural, um inconsciente cognitivo da leitura e da escrita) ficção-nacionalidade (acordo familiar, pedagógico, lingüístico, histórico, sociológico, semântico) a sensação é de “desacordo” (“fui traído!: isso não é o que eu esperava. isso não pode ser assim.”), de incompreensão, de inaceitabilidade, de erro, de engano, de coisa-falha (“que é isso?”).
como as linguagens aceitas (jornalismo, coloquialismo, sociologismos, memorialismos, historicismos) não estão presentes; como não estão presentes lugares, nomes, datas, técnicas e tecnologias, políticas do momento e fatos, geografias, cartografias e história; como maneiras de sentir, pensar, comportar, se expressar não aparecem; como as imagens parecem transversais; como não há uma língua padrão nem uma língua coloquial aceita praquele exercício ficcional (a línguas pedem licença pra se exporem: pra se dizerem: pra se porem num lugar depende dos acordos firmados), o conjunto inteiro não é aceito, não é apreendido como “valor literário”, mas como engano (“não escreve bem!”; “obra falha!”): e o texto não é lido: não consegue se fazer ser lido.
o letrado da oligarquia das letras ficando sem seu solo tradicional (aquela rede “inconsciente” que possibilita sua leitura: ele acha que lê porque é capaz, não porque é permitido ler, sentir, entender o que já está prefigurado no pacto inicial-formativo: é o pacto que faz a leitura), sem esses pactos, que são lingüísticos-gramaticais, ideológicos, artísticos e literários, pactos hegemônicos, ele derrapa feio na avaliação: o valor máximo da literatura (o enfrentamento do horror) não é sequer pressentido, logo, enfrentado, posto no seu arsenal: não há leitura, mas um breque, quase um choque, um asco-nojo, um arrepio, uma repulsa, um abandonar logo no princípio: essas sensações se tornam “teoria”, “opinião” sobre o texto, que perde sua dimensão literária, sua perspectiva de palavra em luta pra se tornar apenas “coisa mal escrita”, “mal alinhavada”, “aborto”, “confusão”, “chatice”.
se o “mesmo” texto fosse uma “obra traduzida” (sem levar em consideração do porquê da escolha do texto pra publicação e o desvio necessário pro ritmo, pra ordem, pra classificação portuguesa) todos os pactos da oligarquia das letras cessariam: a obra pode e deve ser lida: com certeza é um exemplo a ser incorporado (talvez a razão da publicação) aos pactos (o “pacto dos lobos”): assim ela não será “diferente”, mas elemento agora assimilado, apaziguado por “teóricos”, “professores”, “articulistas”, “leitores”, “escolas”, “seminários”: todo o poder contra o horror, seu poder ofensivo, será assumido “por baixo”, como um “livro”, uma “obra” a mais colocada no “seu lugar”, “obra celebre”, “obra mais vendida”. imitada ou não “fará parte” porque sendo “estrangeira” recebeu seu momento de louvou e leitura, seguido por sua colocação no cânone (normalmente a “descoberta” de um oligarca), no seu devido lugar como mais uma palavra respeitável (deslize dos “outros”, não nosso!: não diz respeito “à nossa história literária”: mais um documento: a “obra” agora é um “monumento”), posta numa “história”, num determinado momento, numa classificação-zooliterológica, numa jaula onde não atinge, não ofende, não modifica: é olhada, sabida, visitada, estudada: sendo dissolvida como manual de guerrilha, guerrilheiro, arsenal contra o horror: deixa de poder-fazer o mal.
a Literatura brasileira enquanto lócus de inspeção é o lugar que aprisiona, redimensiona, seleciona, exclui e inclui, domestica e transforma, alimenta e reeduca, aquilo que torna “pedagogia” (“agora pode ser falada”) todas as obras que podem “fazer parte”, as de “dentro” e as de “fora”: a língua e a nacionalidade saem incólumes e fortalecidas.
o “diferente”, vindo de “fora” (o que se recebe “de braços e pernas abertas”: coisas do senhor!: o senhor tudo pode!, tudo deve poder! ele sabe o que faz ou deve fazer!), faz parte de outro mundo, de outra série (não abala, é de “outro”, do “outro”); vindo “de dentro” não é “reconhecido”, não deve fazer parte, não significa: não comunga como um “produto da evolução interna” (o normal, o natural, a série, o incluído, o já e a vida-em-comum é susperado): é sentido, lido, como anomalia.
fora do pacto formativo (mito-brasil, projeto-letrado, projeto-língua-portuguesa, projeto literário imperial-republicano) familiar-escolar, pacto de ensino-leitura-escrita na língua portuguesa, pacto semântico com e na hegemonia, não há compreensão, aceitação (como é uma transversal o olhar hegemônico perde a direção, se descuida, se atrapalha, deixa escapar a multiplicidade, a polifonia, o horror em suas malhas literárias: vê somente o “erro”: o que não combina: e elimina, para, se distancia, proíbe). fora do lócus é um lugar que não existe: o que não é incorporado não existe. a “linguagem contratual”, traída, deformada, dissolvida, desmoralizada, impede a fruição, a incorporação, a sistematização como aquilo que põe num lugar, num fichário, num museu, numa biblioteca, num arquivo, numa história: a obra é ilegível (diferente de um “ilegível” concreto ou rosiano, que fazem parte e sempre fizeram parte da “evolução interna” da Literatura brasileira: nascem do cânone pro cânone, do regional pro regional mentindo sobre uma “universalidade” que apenas mimetiza o senhor sem enfrentar o horror). como a linguagem literária só se realiza quando atinge o leitor, e como esse leitor pra ser atingido exige o cumprimento de acordos que não serão cumpridos, a linguagem literária não se realiza, não é percebida como tal (não é lida em voz alta por críticos em cds, discos e programas de televisão: não é comemorado). pondo em crise, em cheque ou simplesmente existindo fora dos pactos (a literatura é uma palavra em greve, no piquete, na rebelião, no não intransigente), dos códigos, das relações da oligarquia das letras, fora do lócus de inspeção, fora do campo de força da nacionalidade enquanto hegemonia e tecido lingüístico secundário, a “obra” deixa de existir, seja enquanto leitura, seja enquanto publicação, seja enquanto enfrentamento eficaz: é somente um aborto, uma não-obra, o que não chega a ser: o que promete enquanto engodo.
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reunir teatro (diálogo socrático modificado pra ser diálogo do mesmo consigo mesmo, em estremo conflito pessoal-coletivo expondo o horror: monólogo dialógico: estrutura teatral de dramatização dialógica, sem a tradicional apresentação das falas), poesia (na forma, forma-poema; no corte imagético, respiratório, ôntico, anatômico; nas aliterações internas; em certo ritmo da fala, do dizer, do ler e do ser de cada um: criação poética da prosa: concisão, precisão, densidade, rigor e paixão) e prosa (romance, novela, conto: a história de alguém que se diz dizendo, se faz refazendo seus conflitos, que não se resolvem, mas se expõem, se combatem, se iluminam, nessa exposição o narrador, seu entorno, a história e a própria fala: uma fatia de ser, do ser): criar um discurso-estria: discurso rompendo a pele dos discursos: sulco finíssimo, aresta, traço fino a seguir, seguido, voz no ar, dela tudo nascendo, se fechando e se abrindo em si-mesma; a ação, a imagem, a voz vindo no diálogo (consigo mesmo, com um ouvinte, com seus outros, com outros tempos, com fantasmas, com a loucura), com o diálogo, do diálogo.
consciência medindo forças consigo mesma (para sair de si, saber-se mais, descobrir-se e descobrir o porquê e o como da sua vida e daqueles ao redor: cápsula narrativa), com o mundo, com os outros internos e externos, se modificando a si mesma, iluminando-se mas sem escapatória (a impotência da consciência em fugir mesmo depois que sabe, que descobre, que se ilumina).
exercício de uma interioridade e suas relações com o horror (fusão de formas e movimentos para dar conta dessa relação monstruosa, desse momento especial de fala e enfrentamento): expressão de uma trajetória final de consciência; os últimos trajetos depois de um percurso e a volta sobre esse percurso para o momento em que se fala.
é essa interioridade em batalha consigo mesma, contra os outros e contra o mundo (às vezes até sem saber: não saber inicia a dor de dizer), por haver se separado, que leva, como no teatro, a ação dialógica aos seus momentos, aos seus movimentos. essa consciência que fala, dividida e em conflito, não é mais agida, mas começa a agir tentando iluminar com a fala, com o falar (a fala enfrentando a existência e as forças que esmagam o existir), sua trajetória, entendendo-a por já haver uma inquietação anterior, incompletude ainda não dita que faz a fala iniciar. mas esse entendimento não liberta essa voz: clarifica sem mover para uma resolução, para uma superação objetiva: finais felizes pertencem a uma forma literária parasita das hegemonias. num momento crítico, de crise aguda inicia o monólogo-dialógico enquanto uma seqüência de pequenas crises, histórias, poemas, diálogos consigo mesmo, fulgurâncias (aquilo que é imediato enquanto articulação de vivências e queima, deixando uma cicatriz de consciência), com o passado, com os outros: estria formal formatada pelas pressões externas, pelas torções internas: a dor, o sofrimento interno força a forma, deforma; o monólogo-dialógico, esmagado, toma a forma-poema sem suas tradicionais exigências: a “prosa” chupa os limites lineares das palavras na página para um centro de força e significado, para um movimento de fala e escuta, de escrita e leitura; para um momento de achatamento na página; o texto além de fragmentado se desloca para um dos cantos ou para o centro da página fazendo parecer um poema (e uma forma, mesmo falsa, sempre atrai as tradições, os costumes, os tiques da forma verdadeira; para terminar sendo quase verdadeira): uma forma em busca da verdade: a forma se torna o corpo da fala, corpo esmagado daquele que fala, daquela vida esmagada.
ação e conflito, crise e mudança são projetos da fala: a unidade dos opostos se dá no mesmo, na mesma voz mesmo quando se multiplica explicitamente: a voz se opõe a ela mesma como a um outro: processo negativo que se contorce em forma.
casazul-sobre-o-madeira,
25 a 30/09/2005.