UMA LEITURA EM HISTÓRIA ORAL

 

 

MÁRCIA NUNES MACIEL

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE -UFRO

 

                O presente texto tem como base as formulações de algumas idéias a serem desenvolvidas em minha dissertação de mestrado em Ciências Humanas, na qual me proponho a trabalhar com as experiências de vida de ex-seringueiros indígenas e não indígenas, buscando compreender não o sistema de seringal em si, mas as visões de mundo dessas pessoas e a maneira que a vivência no seringal se torna parte do modo de ser dessas pessoas. Essas experiências de vida serão trabalhadas por meio da História Oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy (1991) a partir dos desdobramentos feitos por Alberto Lins Caldas (1998, 1999, 2001).

                Apresento neste trabalho o processo de constituição textual resultante da entrevista realizada com Francisca Nunes Maciel; primeira colaboradora desse projeto de pesquisa, trazendo presente o contexto da realização da entrevista como reflexão metodológica correspondente às etapas de construção do texto e os primeiros impulsos de uma leitura do texto resultante.

 

O CONTEXTO DA REALIZAÇÃO DA ENTREVISTA

 

                Quando pensei em desenvolver o projeto As Visões de Mundo Do Seringal – História Oral Com Ex-seringueiros Indígenas e Não Indígenas, não me havia dado conta do quanto minha avó estará participando de todo o projeto, da idealização à realização. Desde criança, ouço suas histórias do tempo em que vivia no seringal e sempre me senti envolvida emocionalmente em suas histórias sobre os festejos dos santos, tanto a celebração religiosa como a animação das festas, trechos como a briga de meu bisavô com a onça, a própria luta pela sobrevivência, o trabalho na coleta de castanha e nas estradas de seringa, o processo de socialização com os indígenas que viviam próximos da comunidade em que morava. Todo esse processo do contar e recontar de minha avó faz parte do meu imaginário.

                Continuo ouvindo suas histórias e hoje percebo que o mundo do seringal se constrói no conjunto de suas histórias, a maneira de pensar e viver das pessoas que fazem parte desse mundo narrado por minha avó.

                Uma das histórias que mais chamou a atenção do meu olhar acadêmico, atravessado pelas teorias que nos fazem enxergar a partir de um saber institucionalizado, fundamentando a elaboração do projeto de pesquisa, foi o processo de socialização entre seringueiros e indígenas, transparecidos no medo que minha avó conta ter sentido na primeira vez que viu os indígenas chegando no lugar onde morava, a reação das outras pessoas de entrarem para suas casas guardando tudo para não ser levado pelos indígenas; conta que os “índios” eram “brabos” e quando chegavam na comunidade onde morava iam levando tudo, se encontrassem uma mulher com brinco na orelha arrancavam e levavam, não podia deixar bacia nem roupa na prancha na beira do rio porque eles levavam... “Mas depois de um tempo começaram a dar roupa para eles vestirem e a gente já ia nas festas na casa deles”... Por meio dessa narrativa transparece-se o olhar dos moradores daquela comunidade sobre os indígenas, vistos como “selvagens” que, aos poucos, foram deixando de ser tão “selvagens” (numa perspectiva do olhar “civilizado”) tornando-se amigáveis. Dentro destes discursos é possível pensar o movimento feito entre os indígenas e seringueiros, de “deixarem-se” envolver pela cultura do outro, o quanto os indígenas e os moradores daquela comunidade tornaram-se parte do modo de viver um do outro.

                Impulsionada por essas questões, realizei a entrevista com minha avó no dia 3/7/2002 na ilusão de que ela iria trazer em sua narrativa sua experiência de vida para mim tão preciosa. Frustrei-me. Minha frustração não decorreu tão somente do esperado pelas narrativas conhecidas, mas por esperar que ela colocasse-se em seu transe narrativo em que todas as histórias fluem sem precisar necessariamente apontar sua experiência específica do seringal.

                Deixei que falasse o que quisesse mesmo querendo muito que ela falasse de suas lembranças do seringal. Optei a dar ouvido à aventura que pudesse ser disponibilizada naquele momento. Pedi que falasse de sua vida e que começasse por onde achasse melhor, apesar de ela ter me perguntado o que eu queria que ela falasse.

                Essa posição é tomada por nós que desenvolvemos uma específica História Oral onde a temporalidade do outro deve ser mantida, dispensando a aplicação de questionários ou alguma questão temática para estimular o início de uma narrativa.

                Temos como construção teórica os conceitos de nascimento voluntário e cápsula narrativa pensados por Caldas (1998, 1999) tomados como passo metodológico mas antes como uma posição do oralista, posição essa que nos possibilita o diálogo com o outro sem interferir no início e no decorrer do fluxo narrativo. O modo de iniciar o diálogo com nosso interlocutor resultou no conceito de nascimento voluntário ou origem voluntária. Antes de realizarmos a entrevista, assumimos o procedimento de explicar o projeto no que diz respeito ao processo de construção das entrevistas esclarecendo a posição do entrevistado no conjunto do trabalho. Somente depois de ter explicado todo o processo perguntamos: Agora que sabe o que queremos por onde quer começar? (Caldas, 1999, p.101).

                Essa pergunta é tomada como referência; não é uma repetição mecânica como talvez possa parecer. Cada um de nós que assumimos esse procedimento coloca-o em prática de forma particular, mantendo apenas o cuidado de não falar num primeiro momento da intenção temática do projeto de pesquisa, como por exemplo, O Sistema do Seringal. Deixamos claro nosso interesse pela experiência de suas vidas e de nosso objetivo de tornar suas narrativas em texto, (isso varia de oralista para oralista). Nessa primeira fase, constitui-se no diálogo com o outro o meio que instaura a cumplicidade entre o oralista e o entrevistado.

                A partir do conceito de nascimento voluntário e cápsula narrativa é possível que o outro se diga sem a interferência cronológica estabelecida pela temporalidade ocidental. O que chamamos de temporalidade ocidental é o tempo histórico-social estabelecido linearmente, mecânico, capitalista, tempo do relógio. Existem vários tempos dentro de uma temporalidade ocidental, dentre eles o tempo mítico, o tempo do calendário são variações dessa temporalidade. Manter a temporalidade do outro (que pode ser uma variação da temporalidade ocidental) na estruturação do texto é não impor uma cronologia linear. Se o “eu nasci” estiver no meio ou no final de uma narrativa será mantido, se for essa a maneira que o narrador estruturar o seu tempo narrativo.

                O resultado que temos dessas posturas metodológicas é o aparecimento do

 

... eixo narrativo do próprio entrevistado, a sua temporalidade pessoal; principio, meio e fim que dirigirá nosso trabalho de transcriação, sem precisarmos mais refazer os eixos á nossa revelia. Temos, então, uma origem voluntária para o inicio de uma fala, sem  interferência do oralista, sem a condicionante de um nome, data de nascimento, uma filiação: tudo isso virá como decorrência: teremos uma cápsula narrativa onde poderemos, depois, inserir o restante da fala (...) Uma cápsula narrativa tem uma estrutura única, uma temporalidade específica; o depois da cápsula, onde, em sentido estrito, começa a entrevista será, no processo posterior de textualização, incluindo na cápsula narrativa, devendo fazer parte da sua temporalidade, estrutura e narratividade. O “antes” e o “depois”, naquilo que “aconteceu” antes ou depois do nascimento voluntário e do esgotamento da cápsula pela proximidade do imediato do presente, (o que podemos chamar do agora constantemente acontecendo) deverão ganhar sentido somente dentro da cápsula, somente quando refizer as ligações simbólicas internas, onde tempos aparentemente dispares, coisas, homens e fatos, se organizam segundo o sentido e o significado singular pretendido. É o nascimento voluntário que dará sentido ao antes e não o contrário.(Caldas, 1998, p.39-40)

 

                Durante a semana em que realizei a entrevista com minha avó, não estimulei nenhuma conversa referente a sua vida no seringal, conversamos sobre outros assuntos cotidianos da vida familiar.

                No momento da entrevista com minha avó, quando pedi que falasse de sua vida, fez-se um grande silêncio e a tristeza estampou-se em sua face, sorrindo timidamente, disse que não tinha nada para falar. Disse a ela que gostaria de gravar as coisas que quisesse contar de sua vida. O quarto encheu-se de silêncio...

                Com a realização da entrevista pensei em fazer outra na possibilidade de conseguir um fluxo narrativo mais prolongado e com maior dimensão de sua vida, mas pensando a concepção de cápsula narrativa como uma constituição do momento narrativo em que o outro se diz, afirmando todas as suas redes vivenciais, até esgotar o seu fluxo narrativo, percebi que não havia necessidade de refazer a entrevista. Mesmo que o fluxo narrativo de Francisca tenha logo se esgotado, a maneira e a medida do que quis dizer foram garantidas.

                Após ter adquirido a cápsula narrativa, se o oralista achar que há necessidade de realizar o aprofundamento da cápsula, perguntando questões relacionadas à própria construção narrativa, acontece uma segunda etapa da entrevista. Nesse sentido, resolvi realizar o aprofundamento da cápsula retomando a partir de seu esgotamento. Etapa que ainda não realizei.

                Desenvolver História Oral com alguém da família exige procedimentos específicos; ao entrevistar alguém da família com quem compartilhamos uma vivência, a relação oralista/colaborador se dá de forma diferente; a fase de aproximação em que o oralista e o entrevistado se dão a conhecer não é necessária, pois a intimidade entre as duas partes já está constituída. Um dos motivos da entrevista que realizei com minha avó não ter correspondido as minhas expectativas foi por ela saber que eu já sei “tudo” sobre sua vida.

                Agora não mais me importa se falou ou não de sua vida no seringal, trilharei o caminho de seus sonhos.

 

CONSTRUÇÃO DO TEXTO

 

                O texto resultante da entrevista realizada é uma construção colaborativa entre o oralista e o entrevistado. Em nossa ótica, este passa por uma transposição de papel, deixando de ser considerado apenas como o entrevistado para tornar-se colaborador, pois é somente ele que poderá respaldar as interferências no texto que não será mais o colaborador nem o oralista, mas seres, mundos, linguagens que se fundem.

                A concepção de colaborador vem-se constituindo no decorrer da prática de uma certa História Oral desenvolvida por meio dos trabalhos dos oralistas Viezzer (1984) Burgos (1987) e Meihy (1991,1996).

                Nos trabalhos realizados por Burgos e Viezzer já se vislumbravam alguns passos metodológicos de criação textual, apresentando uma relação entre oralista e colaborador, mas só vai ganhar corpo metodológico com Meihy: colaborador é um termo importante na definição do relacionamento entre o entrevistador e o entrevistado. É fundamentalmente porque estabelece uma relação de afinidade entre as partes (1996, p.36)

                É a partir de Meihy que os procedimentos dessa História Oral específica que praticamos se tornam melhor definidos. Temos assim como passos metodológicos: entrevista, transcrição, textualização e transcriação, redimensionados por Caldas, passando a ser entendidos desde o início dos trabalhos até a leitura do texto como processo de transcriação dando maior amplitude ao fazer textual, o que garante a individualidade da voz, o poder de recriar uma vida, o sentido ficcional tanto do texto que lemos quanto da vida, matéria desse texto (Caldas, 2001, p.33).

                O texto “Francisca” passou por um processo de textualização, a partir da transcrição integral da fala, dos gestos e emoções... Os recursos literários são fundamentais na passagem do oral para a grafia.

                Na obra literária de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas há uma quebra nos estilos tradicionais da literatura, quebra-se o padrão de parágrafos, há uma explosão de recursos literários que expressam imagens e sentimentos que diz o indizível em palavras\escritas. O estilo de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas aproxima-se do estilo de Laurence Sterne na obra A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy: conversa com o leitor puxando para o texto, ironizando, situando, questionando. Especificamente em Tristam Shandy o narrador remete e, ao mesmo tempo instiga textualmente a leituras de outras obras.

                Os estilos literários vêm sendo utilizados pelos oralistas no processo de textualização. Em particular, tomo como referência a obra de Laurence Sterne para o processo de construção do texto “Francisca”, buscando expressar os vazios, os silêncios que são os elementos predominantes na constituição narrativa de Francisca. A marca mais forte em sua narrativa é o silêncio que não pode ser apagado no texto aparecendo nas páginas em branco, que não são apenas páginas em branco, mas sentido narrativo tecido pelo não querer falar, pelos esquecimentos acompanhados do lembrável. A idéia de expressar o silêncio nas páginas em branco veio por meio de Sterne que coloca uma página preta no meio da narrativa sobre a morte de Yoric como recurso para expressar a imagem de morte ou passagem da vida para morte ou ainda a escuridão solitária do morto (1998, p. 69/70).

                Ao tornar texto uma narrativa há uma ficcionalização do sujeito. Francisca torna-se ficcional, não é mais da vida de Francisca que estamos tratando mas da ficcionalização de sua vida. Em Roland Barthes (1991) ganhamos força para afirmar que a constituição textual do sujeito é ficcional.

                Barthes, ao escrever sobre Michelet criou outro Michelet; no Michelet de Barthes há a ficcionalização do sujeito. Essa ficcionalização não está no sentido do irreal, mas também não é entendida como representação do real; é criação de outra realidade tendo como base a “própria realidade”. Essa ficcionalidade pode ser entendida como uma visão/interpretação/ maneira de entender o “real”. Michelet de Barthes não é o mesmo Michelet historiador, é uma maneira de Barthes interpretar, perceber um Michelet que só existe para Barthes. Na escrita de Barthes está a multiplicidade de ser do sujeito, em que Michelet e Barthes se fundem tornando-se um mesmo tecido.

 

TEXTO

 

FRANCISCA NUNES MACIEL

 

                Nasceu dia 09 de Abril de 1918 no Município do Amazonas, Uruopiara. Viveu no seringal, tirando castanha e cortando seringa. Atualmente, é aposentada e vive em Porto Velho - Rondônia.

 

                Eu não tenho nada o que falar sobre minha vida....

                Minha vida é ficar andando pra cima e pra baixo de casa em casa ...

                Tenho medo de ficar sozinha em casa...

                Ah ... não consigo falar da minha vida ... eu nem me lembro bem.

                Perguntei do meu filho mais novo como estava minha casa .... eu não sei o que ele fala. Tem que limpar o quintal, ele disse que está cerrado ... eu vou resolver ir lá.

                A vida velha ... tem que ficar velha mesmo ... a minha é ... a gente pode viver bem, mas se não for na casa da gente .... Parece que não é como na casa da gente, como era do primeiro ... assim ... que eu vivia em casa ... fazia minhas coisinhas ...

                Urfummm ...

                Não tenho mais o que falar ... minha vida é isso mesmo ...

                O que vou falar?

                Minha vida é essa mesmo ... andar assim ... pra um lado e pra outro ...

                Foi só essa mesmo... a minha vida.

                Eu não me lembro mais de nada ... o que já se passou não lembro mais ...

                Já se passaram muitas coisas ... eu nem me lembro ... de nada ... só o que estava contando agora ...

                Ainda me lembro das coisas que acontecem de um dia para outro.

                Como dizia a mamãe o que passou o vento já levou ...

                Eu vou pensar... Ai meu Deus... tá bom ... o que eu sonhar eu conto.

 

LEITURA

 

                Compreendendo o texto como ficcionalidade, permito-me uma leitura como imagens produzidas por linguagens de mundos que se atravessam no texto.

                Participo das figuras, das caras, dos gestos, dos cenários das ações (Barthes, 1984, p.46) que constituem o texto, não em sua natureza, mas como imagens que foram se construindo a partir do meu olhar.

 

IMAGENS

 

                Francisca diz não ter nada para dizer... mas diz... os silêncios dizem mais que suas palavras. Em seu silêncio está a saudade, a dor e o grande desejo de voltar para casa. Como não está em sua casa não vive, alimenta-se, dorme e espera os dias passarem. Sua presença não está materializada nos atos do dia a dia, mas na lembrança de sua casa. Encontra-se sempre na solidão, é como se não fizesse mais parte desse mundo, isso se transparece em seu olhar melancólico e distante, no modo de caminhar lento apoiado em seu bastão. Em seu caminhar o corpo parece não estar materializado, e sim vagando em seu próprio vazio solitário ... quebrado cada vez que alguém a faz materializar-se com o gesto mágico da palavra dirigida a ela ... O desejo de retorno ao seu lugar\mundo não permite reviver em seu imaginário as múltiplas dimensões de sua experiência vivenciada. Esse espaço imaginário passa a ser ocupado por seu desejo de retorno ao espaço íntimo.

                A memória não é a coisa em si, mas atualização e recriação do vivido no vivendo. A própria recordação constitui-se pelo constante ato de recordar a recordação resultante dos disciplinamentos do lembrar. Ao atualizar-se, o vivido torna-se o vivendo (o constante acontecer). O esquecimento pode ser funcional para o lembrar, mas a recordação é também ritual, ficcional, onírica, simbólica. É a maneira como Francisca recorda que se torna o conteúdo\memória\narrativa\texto.

                No campo do disciplinamento da recordação podemos analisar os lugares de discurso: o lugar de discurso ocupado por Francisca e o do sujeito imaginário para quem se dirige o discurso construído por Francisca.

                Partindo da concepção de que a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirigi-se a um interlocutor: ela é a função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais estreitos (Bakhtin, 2002, p.112), é possível perceber a posição ocupada por Francisca no papel de locutor e as condições discursivas que se desenvolvem na interação locutor e interlocutor.

                O lugar de discurso que Francisca assume é o da anciã impedida de realizar seu movimento de interiorização, uma vez que a impossibilidade de viver em sua casa lhe tirou a intimidade. As enunciações são dirigidas para um “interlocutor” com ligações sociais estreitas ao sujeito Francisca. Na figuração desse interlocutor está a sua família; nesse sentido, na hierarquia familiar, ao mesmo tempo em que pode ocupar o poder do mais velho garantido pela experiência de vida, ou poder de mãe e avó, é destituída desse poder, pois não lhe é dado mais o direito de fazer suas próprias escolhas. Na ordem dos discursos, a família desempenha a autoridade institucional. Essa situação social determina as condições reais da enunciação em questão; comportando aí as duas faces da palavra orientada em função do interlocutor, determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém, constituindo o produto da interação do locutor e do ouvinte (Bakhtin, 2002, p.113).

                Na interação locutor/ouvinte reverte-se os lugares de poder: Francisca enquanto locutor tem suas palavras como sua propriedade inalienável mesmo que não seja unicamente sua pois ela só se efetiva na interação com o outro; ao dirigi-las ao interlocutor-família, revela-se a situação social imediata do drama de sua vida, prevalecendo na forma enunciativa apresentando da ressonância ao lamento, o ocultamento da mágoa, do sofrimento, da insatisfação revelados nas lacunas e nos silêncios.

                A tomada de consciência de uma sensação de inutilidade e da condição de subordinação à decisão de sua família expressa-se nos silêncios que podem ser entendidos como um momento em que seu discurso interior deixa de se expressar em palavras para expressar-se como ressentimento e dor. Tomando como referência Bakhtin (2002), vale ressaltar que esse discurso interno se forma pela própria relação com o que está externo, dirige-se sempre a uma coletividade pois nunca estamos sozinhos. Mesmo havendo a resistência em se expressar por meio das palavras, essa tomada de consciência também se revela em seu ato de falar tornando-se o eixo narrativo de Francisca que, se não fosse identificado, poderia ser tomado de maneira equivocada como meras repetições. Ao contrário, é a ritualização do falar, na qual define como é sua vida, como é viver fora do seu lugar, para chegar no ponto central: sua vida não tem mais o mesmo sentido de antes, o antes é marca da experiência em seu próprio espaço ...

                ... fazia minhas coisinhas é a distinção temporal antes/depois da maneira de viver de Francisca. Esse é o fator fundamental e diferenciador de sua existência.

                A recordação do antes é imaginária, mas é atualizada no agora como discursividade. Na construção discursiva do “não vivo” está a dimensão do “como eu vivia”. É no discurso do agora que se revela o antes que só existe como discurso atualizado.

                A natureza da casa que Francisca recorda é imaginária mesmo com os disciplinamentos; a casa é o espaço percebido pela imaginação como construção a partir de um “vivido”. Essa concepção ganha força em Bachelard (200, p.19) ao entender que O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço independente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Nesse sentido compreendemos que a imaginação não está desligada de uma vivência, é nela que é gerada, mas como imagem ficcional, onírica, simbólica, não como o próprio vivido em si. A infância que recordamos não é mais nossa infância como foi vivida mas imagem construída por nós a partir do nosso olhar do presente.

                A casa é o centro do mundo de quem a habita, desligar-se dessa casa é desligar-se de seu próprio mundo existencial. Eu vivia em casa. A vida e a casa estão interligadas enquanto sentido. As imagens que se transparecem por intermédio da casa são carregadas de sentimentos ligados intimamente a sua vida; quando se refere a sua casa, demonstra as representações de si com o mundo; sua casa, ao mesmo tempo em que é o lugar íntimo, é também o elo de ligação com o mundo, o desejo de voltar para casa é persistência em não abrir mão de sua intimidade e de ligação com o seu mundo, o retorno para casa é voltar a ter sentido existencial, viver como antes, sentir-se novamente viva.

                Tem que limpar o quintal ... o quintal é dimensão da casa, a casa recordada foi abandonada, está vazia, sem cuidados, é preciso limpar o quintal, é preciso voltar a habitar a casa. Na ligação apaixonada entre o corpo e a casa, a casa torna-se objeto de desejo do corpo que não esquece a casa que habitou, a gente pode viver bem mas se não for na casa da gente ... O desejo de retorno é projetado na casa como pertença, o canto próprio que pertenceu ao sujeito que se enraizou dia a dia num canto do mundo (Bachelard, 200, p.24).

                A imagem predominante no texto Francisca é a imagem da casa em três dimensões simbólicas: intimidade, o lugar de regresso e no sentido mais profundo ganha a significação de reconstrução de si. A reconstrução da casa é reconstrução de si mesma.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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