REVISTA ZONA DE IMPACTO. ISSN 1982-9108, VOL. 11, JAN-JUN, ANO XI, 2009. 

 

AS NARRATIVAS EM HISTÓRIA ORAL

A CÁPSULA NARRATIVA E OS CONCEITOS DE NASCIMENTO E ORIGEM VOLUNTÁRIA



JOSÉ JOACI BARBOZA


Resumo: Este artigo se propõe a elucidar alguns aspectos da História Oral, iniciando o debate por Cápsula Narrativa e seus usos. Neste, consta um processo de repensar a prática de um certo tipo de História Oral desenvolvida pelo Centro de Hermenêutica do Presente, que tem como ponto de partida a História Oral de José Carlos Sebe Bom Meihy e, ao mesmo tempo, o prosseguimento e a superação da mesma.

Palavras-Chave: História Oral, Cápsula Narrativa e Origem Voluntária.

Abstract: This article intends to elucidate some aspects of the Oral History, beginning the debate for Narrative Capsule and your uses. In this, it consists a process of rethinking the practice of a certain type of Oral History developed by the Center of Hermenêutica of the Present, that has as starting point Oral History of the José Carlos Sebe Meihy and, at the same time, the pursuit and the superaction of the same.

Key-words: Oral History, Narrative Capsule and Voluntary Origin.



            Iniciei em um artigo publicado no Caderno de Criação, um debate sobre a Cápsula Narrativa e seus usos, lá, apesar de vários artigos sobre o mesmo assunto, consta um processo de repensar a prática de um certo tipo de História Oral desenvolvida pelo Centro de Hermenêutica do Presente, que tem como ponto de partida a História Oral do Professor José Carlos Sebe Bom Meihy, e é ao mesmo tempo o prosseguimento e a superação da mesma.
            Penso que é chegado o momento de retomar alguns pontos contido naquele artigo elucidando-o a partir das entrevistas por mim realizadas e pelos problemas que elas me remeteram, além de incluir comentários de outro trabalho desenvolvido por Nilson Santos em sua tese de doutorado. Essa retomada se fez necessária em virtude do processo de construção de uma prática de História Oral que está em contínuo movimento de reflexão.
            A cada artigo publicado sinto-me na obrigação de elucidar alguns aspectos da História Oral, já que os leitores que não acompanham o debate sentem-se deslocados e sem muita compreensão do tema. Desde a década de setenta, quando surge no Brasil o primeiro movimento pela criação de uma História Oral, iniciado pelo CPDOC/FGV, tem surgido várias tendências , sendo que as que mais se destacam são as desenvolvidas pelo próprio CPDOC, uma segunda vertente é desenvolvida pelo professor Antônio Torres Montenegro da Universidade Federal de Pernambuco e a mais importante no meu entendimento a desenvolvida pelo professor José Carlos Sebe Bom Meihy professor da USP, a qual o Centro de Hermenêutica do Presente vem desenvolvendo, e como disse anteriormente ampliando e até mesmo superando.
            Para situar melhor o debate, faz-se necessário esclarecer a especificidades da oralidade desenvolvida por Meihy; as categorias desenvolvidas por ele e que dão à História Oral uma outra dimensão são: os conceitos de colônia e rede, a textualização e a transcriação, e o tratamento ético dispensado aos entrevistados, que mudam de estatuto, passando de depoentes para colaboradores. Mais o mais importante são as possibilidades abertas com a textualização/transcriação, pois inaugura uma dimensão textual nas entrevistas.
            Uma grande limitação no desenvolvimento desse tipo de História Oral, é a manutenção de um olhar objetificador, na medida em que persiste a noção de questionários ou estímulos aos entrevistados, que respondem exatamente aquilo que o entrevistador quer, ou seja, não é possibilitado ao colaborador se constituir como ele se vê e pensa, os eixos são construídos externamente pelo oralista, que os reconstitui conforme os interesses manifestados no projeto, e o resultado tem sido o aparecimento de pré noções e preconceitos que não se situam nos colaboradores e sim no pesquisador.
            Buscando construir uma alternativa a essa deficiência, o Centro de Hermenêutica do Presente vem desenvolvendo um novo conceito: Cápsula Narrativa, que compreende a necessidade do colaborador se constituir livremente, não que seja um ato de concessão ou piedade pequena burguesa, mas por entendermos que esse é um momento específico do colaborador e que se agirmos de maneira diferente, estaríamos incorrendo no mal ao qual pretendemos combater que é a coisificação das pessoas inerente ao modo de produção capitalista, que ao transformar todos em números e consumidores, elimina a possibilidade do sonho e da criação transformadora.
            Nesse artigo pretendo discutir a construção dessa alternativa, demonstrando as várias características que ela foi assumindo no decorrer do desenvolvimento de uma prática instaurada pelo Centro de Hermenêutica do Presente, e propondo o resgate de um conceito que originariamente era tratado como sinônimo de outro e que posteriormente acabou desaparecendo, e que pretendo restaura-lo com outras dimensões.
            O problema situa-se em duas categorias construídas por Alberto Lins Caldas e desenvolvidas pelos pesquisadores acima citados, denominadas de: “Cápsula Narrativa”, “Nascimento Voluntário” e “Origem Voluntária”, conceitos que foram sendo construídos na medida em que as entrevistas e o trabalhamento delas foram exigindo maior reflexão.
            Os conceitos apareceram pela primeira vez em 1998, no Caderno de Criação número 15, e a primeira preocupação é não domar o colaborador/entrevistado “A missão não é a de domá-lo, transformá-lo em conhecimento, mas ambos nos tornarmos mais conscientes de nós mesmos e do mundo que nos formata” (Caldas, 1998: 39).
            Ainda na mesma página o autor apresenta uma definição para a Cápsula Narrativa e usa dois conceitos que nos parece sinônimo que são: Origem Voluntária e Nascimento Voluntário. Deixemos, então, ele falar:
            Inicialmente, para tanto, temos, depois de explicado o projeto, as questões da entrevista, etc., dito ao entrevistado como primeira `pergunta`: agora que sabe o que queremos, por onde quer começar? O resultado tem sido de aparecer o eixo narrativo do próprio entrevistado; a sua temporalidade pessoal; princípio, meio e fim que dirigirá nosso trabalho de transcriação, sem precisarmos mais refazer os eixos à nossa revelia. Temos, então, uma origem voluntária para o início de uma fala, sem a interferência do oralista, sem a condicionante de um nome, data de nascimento, uma filiação: tudo isso virá como decorrência: teremos uma cápsula narrativa onde poderemos, depois, inserir o restante da fala, escapando ao início de todo interrogatório, tradicionalmente de toda instrução policial ou jurídica: Onde nasceu? Qual o seu nome? Qual a sua idade? O ano do seu nascimento? Qual o nome dos seus pais?. Uma cápsula narrativa tem uma estrutura única, uma temporalidade específica; o depois da cápsula onde em sentido estrito, começa a entrevista será, no processo posterior de textualização, incluído na cápsula narrativa, devendo fazer parte da sua temporalidade, estrutura e narratividade. O `antes` e o `depois`, aquilo que `aconteceu antes ou depois do nascimento voluntário e do esgotamento da cápsula pela proximidade do imediato do presente, deverão ganhar sentido somente dentro da cápsula, somente quando refizer as ligações simbólicas internas, onde não há estrutura, sistema ou ordem preestabelecida, mas uma organização narrativa onde tempos aparentemente dispares, coisas, homens e fatos se organizam segundo o sentido e o significado singular pretendido. É o nascimento voluntário que dará sentido ao antes e não o contrário (Caldas, 1998: 39 -40).
           Fica mais do que evidente os motivos da criação da Cápsula Narrativa, ou seja, o intuito é de não formatar ou (de)formar a colaborador/entrevistado, além de facilitar, ou melhor, eliminar o dificultoso trabalho de transcriação, que consistia basicamente em construir os eixos narrativos a revelia do entrevistado e na ocultação da voz do entrevistador. Isso, é claro, elimina de antemão as intenções do hermeneuta/pesquisador em estabelecer uma temática ou uma delimitação do tema antes e até mesmo depois do encerramento/esgotamento da Cápsula, isso explica as dificuldades que encontramos para delimitar um título antecipado, já que ao estabelecer um tema o hermeneuta/oralista se coloca a meio caminho entre uma história de vida e uma história temática.
            Nesse fragmento aparecem os dois termos que serão utilizados como sinônimos e, tudo indica que não o são, pois uma origem não está vinculada, necessariamente, a um ponto da narrativa que servirá para orientar o posterior e mesmo o anterior a este ponto, dizendo em outras palavras, não é o início da fala que servirá como regra para orientar todo o momento narrativo do colaborador, tudo indica que esse ponto norteador é o nascimento voluntário, e que pode aparecer em qualquer momento da entrevista e não necessariamente no início.
            No ano de 1999 três publicações do mesmo autor, voltam a abordar a temática. No Caderno de Criação número 19 o autor afirma:
“Dizemos ao nosso interlocutor como primeira `pergunta`: Agora que sabe por que estamos aqui, pode começar. O resultado tem sido o de aparecer o eixo narrativo do próprio entrevistado ... sem a interferência do hermeneuta, sem a condicionante de um nome, data de nascimento, uma filiação ...” (Caldas, 1999a: 45)
            Observem que a preocupação permanece a mesma: não formatar o colaborador, preocupação que é evidenciada no que é denominado de pergunta, que é colocado sob suspeição já que se encontra entre aspas, indicando que na realidade não é uma pergunta e sim o verdadeiro início de um diálogo, início que é constitutivo de toda a nossa prática de hermeneutas/oralistas. Analisando as coisas friamente, podemos dizer que o que determina que a estrutura narrativa seja desse jeito e não de qualquer outro é, antes de mais nada, um compromisso ético do hermeneuta em não objetificar o outro em deixá-lo se constituir enquanto momento narrativo e constituir-se enquanto praticante de um outro tipo de abordagem que quer colocar em movimento, desdobrar e fazer desdobrar os múltiplos significados do eu e do tu.
            Na página seguinte Caldas retoma a definição de Cápsula e afirma que
“É o nascimento voluntário que dará sentido ao antes e não o contrário. O conceito de nascimento voluntário é tanto uma origem da separação entre dois momentos reais da vida ... quanto de uma vida vivida e contada como uma escolha narrativa” (1999a : 46).
            Nesse texto só aparece o termo nascimento voluntário, sendo que “origem” não é citado uma única vez. O termo nascimento voluntário é então, utilizado para demarcar o início de uma narração, e de uma vida vivida ou não, o que demonstra uma despreocupação com a idéia de se extrair da narrativa uma verdade, já que assumimos toda narrativa como verdadeira, mas o que efetivamente me interessa é o início de uma confusão, que é chamar a origem ou o início da narração com um nascimento voluntário.
            Ainda no mesmo ano, Caldas lança um novo artigo no Caderno de Criação número 20, onde se dedica exclusivamente à definição da Cápsula Narrativa, além de conjurar todos os conceitos e noções subjacentes a Cápsula, o autor vai dando uma melhor formatação ao conceito e ao uso que dele pode ser feito. Afirma, por exemplo, que a utilização da Cápsula se deve ao desejo de termos contato com o imediato do presente e não constituir um documento, uma entrevista, um corpus; serve também para demarcar provisoriamente uma aproximação e um distanciamento com a História Oral; não é para reconstituir o real tampouco o vivido, mas estamos interessados nas narrativas etc.
            No tocante ao Nascimento Voluntário, o autor reafirma que:
“Temos, então, um nascimento voluntário para o início de uma fala, sem a interferência do hermeneuta, sem a condicionante de um nome, data de nascimento, uma filiação ou um momento qualquer de escolha do hermeneuta” (199b: 55),
            Aqui, percebo claramente, um equivoco, apontado mesmo que precariamente em um artigo publicado no Caderno de Criação número 22, onde afirmamos que: “.. a utilização da cápsula narrativa não é garantia de imparcialidade ...” (Barboza; Peixoto, 2000: 44/45), reafirmo que toda a narrativa do colaborador se deve, inclusive, à interferência do hermeneuta/oralista, já que seria absurdo imaginar alguém gritando no meio da rua: me entreviste! É o hermeneuta que seleciona e realiza a pré-entrevista, é ele quem informa o porque de ambos estarem ali, também é ele que diz: pode começar. Ao afirmar isso, não estou atribuindo nenhum valor negativo a esta prática, que é condição sine qua non para a constituição desse imediato do presente que só a narrativa pode nos colocar em contato.
            Mais adiante Caldas afirma que: “É o nascimento voluntário que dará sentido ao antes e não o contrário” (1999b: 56), aqui percebemos claramente uma distinção entre nascimento e origem voluntária, a origem é então uma forma, um jeito e uma decisão de iniciar uma narrativa, onde o colaborador inicia seu relato a partir de um ponto por ele selecionado, e o que estou denominado de nascimento voluntário é a formação de uma interioridade diálogante e significativa. Quando o autor fala em depois do esvaziamento da Cápsula, sei que está falando de casos onde se fez necessário a elaboração de perguntas, o que estou questionando é exatamente essa necessidade; pois se faço perguntas elas podem se dar quando percebo que o narrador utilizou gestos, que sem palavra, não teriam como ser evidenciados para o leitor, e existem as perguntas que se constituem enquanto aquilo que eu, o hermeneuta/oralista estou querendo saber e que o narrador não falou durante o desenvolvimento da Cápsula, mas adiante pretendo desenvolver este aspecto.
            Mais uma vez nesse artigo, o autor não faz nenhuma menção a Origem Voluntária, o que ocorrerá, também, no livro publicado no mesmo ano. Nesse opúsculo o autor reafirma mais uma vez a necessidade da não intervenção, penso que aqui essa preocupação migra em relação ao foco, ou seja, a preocupação primeira não é a não intervenção em si, já que sem a mesma não existiria a entrevista/diálogo, mas principalmente, em não formatar a temporalidade: “... porque é com ela e a partir dela que as singularidades ordenam a narrativa” (1999c: 100/101).
            Mais adiante o autor reafirma a preocupação com a elaboração das perguntas, definindo melhor, preocupa-se em não estabelecer um inquérito com os colaboradores que seriam transformados em depoentes, ou seja, a preocupação do hermeneuta/oralista deve ser o de estabelecer o diálogo:
            Dependendo da pergunta, o eixo da vida imediatamente muda de sentido e de significado. Ao iniciar com perguntas sobre a origem, os pais, o nascimento, estamos não só direcionando (o que não seria grande coisa devido à concepção mais geral de transcriação e ficcionalidade), mas, o que é pior, pondo no outro nossa temporalidade ocidental, cristã, histórica, unilinear, encadeada e evolutiva, sem haver percebido antes que a naturalização universalizante dos tempos da physis leva, obviamente, a tempos de determinada formação social e é inútil fora dos seus quadrantes, apesar de ter o poder de deformar outras temporalidades. Essa temporalidade dominante não é a única na ocidentalidade, mas o pesquisador age como se fosse. (1999c: 101).
            Vejam que a preocupação se delineia de forma mais nítida, não se trata de qualquer deformação, mas sim com a deformação da temporalidade, o que implica necessariamente a deformação da narrativa, o outro não será o outro como ele quer se constituir, mais o outro-eu ou o eu-outro que se impõe através das minhas temporalidades, dos meus desejos de poder (do oralista). Isso não implica que não exista uma intervenção do hermeneuta/oralista na constituição da entrevista, é sempre bom ter presente que a entrevista é sempre um processo determinado pelo entrevistador, se é que isso ainda pode ser denominado de entrevista.
            Vejamos agora como tem sido utilizado esses conceitos, e para tal vamos utilizar a tese de doutoramento do Nilson Santos, que na parte teórico/metodológica fala dos usos dado por ele dessas categorias em seu trabalho. Nilson Santos inicia a discussão teórica falando de um recuo necessário, recuo ao não estabelecer blocos, ou dividir a vida do colaborador em fases: nascimento, adolescência, juventude casamento etc., recuo fundador de uma determinada forma de fazer entrevistas e se contrapor a prática muito comum ao exercício da História Oral:
“Para tanto, alguns pesquisadores em História Oral optam por procurar facilitar o trabalho do narrador sugerindo a ele dividir sua vida por etapas em origem, infância, adolescência, juventude, casamento, trabalho, filhos, viagens. O resultado acaba sendo a reconfiguração (desfiguração) do narrador de acordo com o tipo de interferência” (Santos, 2000: 39).

            Partindo desse recuo inicial, Santos optou por trabalhar com a Cápsula Narrativa como instrumento facilitador da transcriação e de não formatação da temporalidade dos colaboradores. O autor aplicou, em alguns casos, o uso de perguntas:

“As intervenções ou solicitação de algum tipo ou esclarecimentos aconteceram num momento posterior, quando essa primeira unidade narrativa (Cápsula Narrativa) já havia se configurado” (2000: 42).
            Segundo o próprio autor, ocorreram dois tipos de perguntas as primeiras se deram durante o desenvolvimento da Cápsula, quando o colaborador se utilizava de gestos, por exemplo, para mensurar ou quantificar algo ao qual se referia; e um segundo tipo de perguntas que assegurariam por assim dizer, uma certa unidade aos entrevistados, e ao que tudo indica esses dois tipos de questões foram realizadas, só que posteriormente as segundas, ou seja, aquelas que dariam unidade a comunidade de destino, foram descartadas.
Vejamos o que diz Santos:
“Neste sentido, foi possível definir algumas perguntas que pudessem ser comuns a quase todos os seringueiros, que ajudassem a trazer elementos de proximidade entre as diversas narrativas, percebendo desta forma, a presença de certas idéias (como por exemplo, a Cobra Grande), ou até mesmo as diferenças que elas acabam tendo (Mãe da Seringueira) (2000: 42).

 “Neste trabalho, a preocupação de alargar a idéia de Cápsula Narrativa fez com que a pergunta de corte não fosse levada em conta por tornar o pesquisador impermeável ao outro, evidenciando-se por demais como mero arauto de seus determinismos”,
e acrescenta no parágrafo seguinte:
Geralmente a pergunta de corte é escolhida pelo pesquisador previamente, podendo provocar a falsa sensação do envolvimento de todo o grupo que participa das gravações com a temática contida na pergunta que rastreia em todos a mesma preocupação contida na pergunta de corte; além disso, a elaboração da temática a ser privilegiada aponta para um pré-conceito, para a realização do estereótipo do pesquisador, que pré-seleciona o que deve ser buscado e encontrado na construção da narrativa, resultando, por vezes, em idéias deturpadas sobre a comunidade, mas que servem para o exercício de referendar ou refutar as hipóteses do pesquisador (2000: 43).
           Estas poucas citações da tese do Santos, tem o objetivo claro de enfatizar um dos aspectos levantados a pouco e que pretendemos analisar logo mais, qual seja, esse autor já começa a desconfiar da prudência da realização de perguntas após o fechamento da Cápsula, pois elas poderiam e farão, com toda certeza, uma descaracterização da própria Cápsula.
            O mais importante da tese é que o autor ressuscita o conceito de Origem Voluntária, segundo ele o uso da Cápsula possibilita o surgimento de um texto que é:

“... fruto de uma narrativa com historicidade própria, com nome e vida própria, diferente dos textos sem rosto, objetificados e mutilados. A Origem Voluntária implica numa força narrativa inicial, mas decorre inicialmente da atitude do seu interlocutor, se no início da gravação são definidos os temas e a seqüência de fatos que se gostaria que fossem abordadas como, por exemplo, tratar o narrador pela sua profissão (soldado da borracha), pela sua posição social (presidente da Organização dos Seringueiros de Rondônia), ou colocando de início um problema a ser abordado (o preço da borracha), ou até mesmo um tipo qualquer de identificação (dizer o nome, a filiação, a origem, a data de nascimento) (2000: 64-65).
           Aqui se evidencia também a interferência direta do hermeneuta/oralista, ou seja, é a atitude do hermeneuta que é determinante para que a narrativa se constitua enquanto constituição do momento de construção do narrador, momento que é único, pois não reproduzível em suas minúcias e interpretações, aqui é importante lembrar a recomendação de Clifford Geertz, que lembra ao antropólogo que os seus depoimentos são interpretações do vivido e não o próprio vivido: “Resumindo os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda ou terceira mão. (Por definição, somente um `nativo` faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura)” (1989: 25). Nesse fragmento fica evidente um avanço no sentido de reconhecer o início da entrevista como uma Origem Voluntário e não como Nascimento.
            Retomemos então as questões levantadas no decorrer desse artigo: 1º seriam a Origem Voluntária e o Nascimento Voluntário a mesma coisa? 2º a Cápsula Narrativa é um instrumento em si capaz de assegurar a constituição do outro sem a interferência do hermeneuta/oralista? e, 3º a utilização de perguntas após o fechamento da Cápsula permitiria a mesma manter-se intacta as presunções do hermeneuta/oralista?
            Vou iniciar a discussão pelo segundo ponto, penso que a existência da narrativa só é possível em detrimento da presença do hermeneuta/oralista, presença que se inicia quando determina que grupo de pessoas vai entrevistar, quando estabelece os primeiros contatos e principalmente quando dá início aos diálogos, logo esse é um ato armado que tem como condutor, elaborador e executor do projeto a pessoa do Oralista.
            Diante desse fato inconteste fica difícil afirmar que é a Cápsula que assegura a constituição do colaborador, é ele o hermeneuta que com uma postura ética, solidária e consciente de que se assim não o for estará perpetuando um olhar coisificador que tem fechado os olhos para a multiplicidade de culturas, tempos e que tanto tem desprezado o humano que desesperadamente busca.
            Penso contudo que, a Cápsula Narrativa tem nos servido enquanto norte a ser seguido no sentido de possibilitar ao outro, não por piedade cristã ou solidariedade burguesa, a se constituir da forma que ele se vê e é visto pelos integrantes de seu grupo social, rumo também, capaz de assegurar o aparecimento das múltiplas temporalidades, ficcionalidades, sentidos e significados.
            A Cápsula Narrativa em si não é garantia dessa não intervenção, um exemplo que posso dar é decorrente das entrevistas realizadas no decorrer da construção da minha monografia. Tinha como intenção colher narrativas de militantes do Partido dos Trabalhadores e perceber como esses discursos se constituíam, quais vozes atravessavam os discursos etc., um dos entrevistados tem como eixo narrativo o alcoolismo e toda sua narrativa girava em torno disso, contudo, eu queria que ele falasse do Partido.
            Ao realizar as perguntas que achava pertinente ao esclarecimento dessa questão, pude perceber que havia imposto ao mesmo a minha vontade, mesmo tendo feito uso da cápsula Narrativa. As perguntas foram feitas tendo como base pontos deixados incompletos na própria Cápsula, o problema é que ao tentar alargar temas poucos explorados na Cápsula, acabaram ganhando maior relevância do que a temática que ele o colaborador efetivamente abordou voluntariamente.
            Como podemos perceber, se a cápsula não for muito bem utilizada poderá acabar pervertendo toda sua lógica, será como se aplicássemos o princípio do Barão de Münchhausen, que ao cair em um pântano tenta tirar o seu cavalo e a si próprio puxando pelos cabelos (Michael Löwy, 1985: 32), ou seja, tentando eliminar as interferências do pesquisador, caímos no mesmo pântano ao qual estávamos tentando escapar.
            Esse ponto nos remete imediatamente ao terceiro aspecto levantado no artigo, o que diz respeito as perguntas realizadas após o encerramento da Cápsula. Penso que se ao irmos ao encontro do outro, temos de fazer sem nenhuma pretensão, sem querer encontrar algo ainda não revelado, ou algum tema que disponha de poucos ou nenhum documento, enfim, temos que fazer em função do outro, ao término dos diálogos é que saberemos o que podemos fazer com as narrativas.
            Se elaboro um projeto para entrevistar soros positivos do HIV, não posso ter a pretensão de encontrar o doente, o marginalizado, a vítima do preconceito ou o excluído, pois se durante toda sua narrativa ele não abordar nenhum desses aspectos é porque ele não se sente assim não é vítima, nem tampouco se enquadra nestes estereótipos que são construídos extrinsecamente. Qualquer tentativa em contrário significará eliminar os esforços para não lhe impor uma temporalidade outra que não a dele.
            Penso que não podemos ter nenhum tipo de pretensão a priori que possa determinar, deformar, influir nas temporalidades e na subjetividade dos colaboradores. É isso que nos distancia do tipo de História Oral que nos serve de ponto de partida, que pressupõe a existência de um projeto bem construído, ou seja, com objetivos bem definidos e com toda certeza com hipóteses previamente definidas. São essas hipóteses definidas no projeto que abrem o espaço para a deformação.
            É a existência do diálogo que possibilitará o surgimento da Cápsula Narrativa e não o contrário, isso não implica em dizer que as perguntas não possam ser formuladas, podem e devem, principalmente quando se tratar de temas onde o entendimento não estiver claro para o hermeneuta/oralista, onde o colaborador utilizar as expressões corporais para mensurar algo ou para demonstrar algum tipo de sentimento. E se esses traços não forem transformados em palavras, impossibilitará o entendimento por parte dos leitores que serão prejudicados no entendimento do outro.
            Quanto a primeira questão, penso ser prudente manter os dois conceitos enquanto categorias distintas. Penso que não podemos denominar o início da fala como Nascimento Voluntário, principalmente se ele não for o eixo condutor da narrativa, contudo, toda narrativa tem um início, um ponto eleito pelo narrador para construir suas ficcionalidades do vivido, e esse início é que irei denominar de Origem Voluntária.
            Tenho observado que as narrativas sempre giram em torno de um ponto que justifica e valida todo o narrado, no caso do Orlando o eixo narrativo foi o alcoolismo, tenho uma entrevista para o mestrado com uma professora que esse eixo é o órgão genital, que aparece logo após ela narrar a morte da mãe e esse tema domina toda entrevista, justifica o anterior e o posterior a esse ponto. Outra professora entrevistada fala da sua infância e do momento em que lhe foi roubada por um convite de um fazendeiro para assumir a escola da fazenda, esse é um roubo fundante, obriga a mesma a pensar toda a vida passada e futura, marco que explica a existência do que fora narrado antes.
            É a esses pontos que venho denominando de Nascimento Voluntário é o tom proposto pelo narrador, suporte de toda narrativa, explicação interpretativa do vivido que surgirá em todas as narrativas. É ele que permitirá ao hermeneuta encontrar os fios constituidores da narrativa do colaborador, sem que o oralista tenha que construir um espantalho de uma temporalidade universal e universalizante a partir de cortes temáticos que descaracteriza o colaborador e o trabalho que estamos nos propondo realizar.
            O resultado desse procedimento tem sido o aparecimento de um texto que, por não se fundar na tradição da escrita, qual seja, de ter como suporte outros textos que convalidam e lhe dá sustentação, pode ser submetido a critica do leitor e do cientista na busca ansiosa pela verdade, nesse caso o desafio é que tipo de tratamento pode ser dispensado ao texto vivo e cheio de ficcionalidade oriundo dessa prática do oralista e do colaborador, essa é uma outra discussão que aqui não podemos avaliar.

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