identidade
isso poderia significar alguma coisa no caso da singularidade, mas sua “constituição” só se faz negativamente [contra os outros, contra si mesma, contra o lugar, contra os limites, contra a Língua, contra a nacionalidade, contra as tradições], y até mesmo nessa instância se problematiza, pois além de tudo a singularidade é fluxo sem limite, exatamente aquilo sem identidade. y a singularidade não é nem revogável nem negociável, não se enquadra nem no pertencimento, nem no processo, nem na filiação, nem na propriedade. uma das primeiras coisas a serem dissolvidas no fluxo da singularidade é precisamente as muitas identidades [racional, pessoal, biológica, psicológica, social, nacional, sexual, regional, lingüística, racial, econômica, trabalhista, política]. todo lugar y suas identidades são prisões, lugares de aprisionamento (gado trabalhador, manadas de corte, chorume, lixo industrial, servidores) donde grande parte dos indivíduos não pode, não quer, não consegue fugir, y q sequer desconfia q não pode fugir: a identidade faz parte dos “mecanismos internos e externos” q mantêm as “populações” de trabalhadores presas por “livre e espontânea vontade”. a singularidade [sem identidade: o libertino: aquele q gera a literatura] não compartilha nada (nadíssima) a não ser obrigatoriamente, por não poder fugir, por não poder fazer ou ser doutra maneira: dum jeito ou doutro é sempre vítima (jamais cúmplice: sua “participação” é forçada, é inescapável) do horror.
a singularidade é fluxo (devires), “fragmentos descoordenados”, fatias virtuais contraditórias, desconexões (o q assume o devir, as transversais). as antigas lógicas não se aplicam mais: os fluxos são negativos diante da monstruosa positividade do horror, efêmeros, voláteis. a “consistência e continuidade”, características da “identidade pessoal no tempo”, deixou de significar: singularidade não é o “um”, o “único” stirneriano, mas ao mesmo tempo todos os outros, performances, momentos, fragmentos, transes, recortes indevidos no devir, momento de manutenção, de aceitação de configurações: os vários y muitos outros da singularidade abandona a perdida temporalidade (continuidade do mesmo, identidade no tempo) pra ser espacialidade em mutações: a singularidade é “legião” ao mesmo tempo no tempo do fluir sem definir, sem limitar, sem aceitar a “legião” enquanto sociabilidade [ser social sem sociabilidade, a singularidade nasce de si mesma, de clivagens selvagens: o q se mantém-mutando é a atuação libertina: negação radical do existente enquanto repositivação contra o horror].
sempre deslocado em toda parte y totalmente em lugar algum: sempre estranho pros q pertencem aos mundos da identidade (mundos dos “insetos sociais”). o q os outros são ou se tornaram são eternas oposições ao estranho (não porqele se oponha, mas porq se opõem a ele; a identidade não suporta o estranho): os seres biológica y socialmente y nacionalmente com identidade (condição do trabalho) não descansam enquanto não devoram, não calam, não torturam, não expulsam o estranho sem identidade, sem negociações, sem mediações tranqüilizadoras, sem rituais, sem apaziguamento: sou apesar y contra todos vocês [a tribo, a única tribo, ocidente, porq os “outros” são “extraterrestres”, é o próprio horror em existência y funcionamento: devorar, dissolver, contaminar, destruir, assimilar].
o estranho ta em casa em qualquer lugar (sempre desejando ta no próximo lugar provisório) y ta somente plenamente em casa, no lar, quando ta fluindo em qualquer lugar [seu lugar é o não-lugar, o não-corpo, o não-outro: tem pavor da tribo, da aldeia, da alcatéia, das manadas, do horror cotidianizado]: o desconforto é o lugar, o estar, o trabalhar, o ficar, o pertencer, o participar, o comungar, o festejar, o aplaudir, contribuir com o quantum de silêncio y fragmentos do horror.
a singularidade é nômade y sua característica “interior” é o nomadismo [mas “todos” tão presos nos lugares, escravos acorrentados numa terra, num ganha-pão, numa crença], o sem fronteiras, nas encruzilhadas, nas transversais olhando lugares imóveis, personas fossilizadas, línguas enferrujadas, corpos-máquinas: cidade-máquina, Literatura-máquina, Arte-máquina, desejo-máquina, sonho-máquina.
a identidade (uma das faces mais cruéis do horror) é aquilo a ser superado (mesmo em crise inda persiste como cadáver q recusa morrer), desinventado, posto fora dos “objetivos”, algo q se esgotou sufocado em sangue, sofrimento, abandono: sua face “territorial” (universal, nacional, regional, local), sua dimensão econômica [ligada sempre às terras do servosenhor, a casa do servosenhor, as cidades do servosenhor, aos corpos do servosenhor, as Línguas dos servosenhores, aos trabalhos do servosenhor, a história y as histórias do servosenhor], sua posição política [administração y defesa da ordem: defendendo, protegendo, multiplicando, cuidando do “meu”, da “minha família”, crio y repito o universo do servosenhor: mecanismo “perfeito” y “insuperável”: todos são os cães de guarda] não podem ser esquecidas em nome dum pretenso “valor filosófico” q, fora daí, fora da singularidade como conquista y resistência [a resistência sem dono y sem senhor escolhe um lugar ou lugares de luta, sem qeles se tornem parte nem da resistência nem do resistente, muito menos componentes dos “materiais de guerra”: Arte, Literatura, Filosofia, Política], é uma das mais periculosas facetas, ou espírito, do horror.
como toda ficção social é preciso um processo nefasto de convencimento, de naturalizações encadeadas, de medos, de cumplicidades, de esquecimentos, de covardias, de pressões até q a ficção se torne “natural”, “social”, “pessoal”, “íntima”, se torne coisa da matilha, se torne a matilha, “instrumento imprescindível”, enquadramento necessário, tortura, exclusão ou aceitação, festejo, inclusão, familiaridade.
a identidade do ser singular não é aquela da lei, do trabalho, da cor, do dinheiro, da carteira de identidade y seus dados: ela se faz contra as identidades do estado, da nação, dos poderes da lei. o libertino, pro estado, é o mesmo q um vigarista, um sem nome (um “zé ninguém”), um sem lugar (sem teto, sem terra, sem emprego), um indivíduo perigoso. mas a migração das tradicionais idéias de identidade, junto com as identidades nacionais, em francas dissoluções y questionamentos, não acarretam “insegurança” ou “medo”, a não ser naqueles q precisam das manadas, das matilhas, dos cardumes pra se definirem, pra se imporem.
a crítica às “relações instáveis” acontece somente naqueles q são saudosos dum mítico “tempo sólido” y “natural”. o “mundo sólido” delas criava a mesma “ilusão de intimidade”, o mesmo “simulacro de comunidade” q o “mundo líquido” da pós-modernidade; as mesmas ilusões y simulacros de qualquer momento “social” da tribo, y q só funcionam no acordo, no aceito, na norma, na lei, na força, como fruto, sempre, de muitos tipos de “convencimento”, de cumplicidade y entorpecimento.
a “identidade líquida” não busca, não aceita, não precisa dos outros (necessidades dos “mundos comunitários”): esses outros já foram desvendados. até mesmo aqueles q “estão em casa ou no trabalho”, tão apenas provisoriamente (não é preciso mais “grandes narrativas” pra justificar mais nada). sua não-identidade, ou identidade fluída, não busca se identificar, mas fluir. nem mesmo nas internetes, nas redes virtuais [onde buscam con-solo os desprotegidos do desaparecimento da Natureza, da Comunidade, da história, do outro: “onde” os tolos conversam y se buscam por não terem nada pra conversar de verdade ou viver de verdade: é o imperium do quantum de silencio] é possível encontrar nenhum simulacro seguro ou sólido: é somente um “espaço” de “consumo líquido e certo”: não é o lugar da singularidade [a arte, a literatura, a filosofia enquanto enfrentamentos do horror ou a libertinagem enquanto criação deliciosa y devoramentos conjuntos], mas dos desgarrados da manada, os inda perdidos da colméia, seres duma eterna “classe média” em busca das solidezas perdidas.
tudo em movimento, em constante mutação, isso q “sou” também, sem as ilusões naturalizadas; não precisamos mais lutar pra se juntar, pra ta próximo, pra pertencer, pra confiar em “estruturas de referência”. não precisamos dos outros: essa “contradição radical” y deliciosa faz parte constitutiva da singularidade, sendo também uma das condições da reprodutividade do horror enquanto “modo de produção” y “formação social”.