HISTÓRIA E NARRATIVA

 

 

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            Tudo, em História, está “ausente da realidade”: é ficção, isto é, trata com a experiência viva do tempo, com as substâncias virtuais que são o tempo: ao mesmo tempo precisa e impõe um específico sistema de crenças para que aquela ficção seja percebida como “acontecida”, como algo “que foi real”, que “representa o real”. As narrativas tradicionalmente ficcionais (poesia, romance, novela, conto, teatro) não utilizam esse recurso de exigirem e remeterem a um sistema imaginário que diz que não é, que reforça sua condição de “dizer o existente”. Até mesmo quando faz uso desse recurso, ele próprio se ficcionaliza. Na História as redes imaginárias devem aparecer como reais para que a experiência pessoal, grupal e comunitária seja “levada a sério”, seja considerada algo de valor para a “vida prática” ou para uma “consciência conseqüente”. Sem isso a História não poderia ter “se estabelecido”: como sempre foi uma narrativa em-nome (para ensinar ao príncipe a como bem governar), não poderia prescindir das garantias de ser o que diz ter sido, de o que diz ser ter poder, do ter sido poder ser o que será.

            A narrativa, da perspectiva da História tradicional, não passa de uma “maneira de escrever”, como se fosse um “relato”, uma “cópia das coisas”, enquanto a narrativa ficcional seria aquela que viria da imaginação, seria inteiramente inventada, individual e ao sabor de paixões singulares, sem base em documentos, em técnicas, em acompanhamentos críticos, sem nenhuma estrutura fundada na experiência profissional, numa instituição de pesquisadores, em discursos estabelecidos. E é verdade! Mesmo a ficção tendo tudo isso que é exigido para o exercício do historiador, os protocolos, as relações de poder, as classificações, as posições, a lógica, a ordem e os ordenamentos, as expectativas e as finalidades são diferentes são diferentes, mesmo que essencialmente sejam “duas” formas ficcionais. Uma narrativa instaura o tempo com a imaginação, a outra com um “sistema religioso, jurídico e policial” que se tornou autônomo, uma disciplina de saber.

            Mesmo sendo duas formas de experiência do tempo, duas maneiras ficcionais de manipularem as dimensões imaginárias e simbólicas que é o tempo, seus exercícios são diferentes mesmo quando se misturam, e precisam ser diferentes. Como o tempo não é unidimensional nem físico, não é natural nem universal, todas as formas de torná-lo experiência narrativa é fundamental. Só não pode esquecer a condição ficcional, simbólica, imaginária e instrumental tanto do tempo quanto da própria narrativa: isso a ficção não faz, mas é exatamente esse “esquecimento epistemológico” que vem caracterizando a História. Esse “esquecimento” tem tornado a História frágil diante das novas existências sociais. Ela não tem conseguido corresponder a exigências estranhas ao seu fazer historiador. E aquela imensa fatia do tempo que somente ela pode dar conta, tem ficado “entregue às baratas”, nas mãos de seja de uma “História oficial” seja nas mãos de uma História que ainda comunga com um fazer antigo e periculoso.

 

2

 

            Narrativa é tempo. É tempo ordenado de certa maneira. É estabelecer um antes e um depois, um agora e uma exclusão, uma relação e não outra, uma medida correta, um momento certo, um ritmo: a narrativa é uma receita de bolo e o bolo. Dependendo da receita, da experiência do cozinheiro, o bolo se transforma em História ou em ficção, numa narrativa técnica ou filosófica, numa narrativa mítica ou jornalística. O que distingue uma das outras são os protocolos investidos, esperados, o sistema de crenças posto em articulação: sem nada disso tudo seria uma coisa indistinta e pastosa. Daí porque o real e o irreal, o verdadeiro e o falso, o acontecido e o inventado são posturas narrativas e suas relações com quem produz, com quem consome e com as relações de poder investidos.

            As dramatizações instaladas enquanto narrativa dizem o que ela é, o que ela pretende, o que ela completa, o que ela não diz, o que ela não pode dizer, o que responde ou cala, a quem pertence e ao que pertence, a qual campo faz parte e a qual não faz. Conforme a armação, o cenário, a ordem posta, os mesmos elementos podem significar coisas completamente diferentes. É a organização do espetáculo (das formas, dos conteúdos, dos princípios, das metas, dos instrumentos, dos meios, dos participantes, das lógicas envolvidas, das linguagens incluídas e as excluídas, dos lugares sociais e institucionais, dos espaços, tempos e ritmos particulares) o que diz o que o espetáculo será: esse efeito espetacular (especular) é o que dá a impressão viva do real ou do irreal, do verdadeiro ou do falso, do natural e do artificial, do útil e do inútil, do próximo ou do distante.

            A narrativa, seja ela qual for, indicará suas variabilidades e suas invariabilidade, suas regularidade e irregularidade, sua origem e seus destinos, suas certezas e incerteza, seus signos e seus sinais, o quanto deseja e se propõe a ser uma totalidade ou uma singularidade, se é abstrato ou concreto, se permite mediações ou não, se esconde de si mesmo ou não sua condição discursiva: qual discurso, qual instituição, qual participantes, quais regras: se é político ou religioso, historiográfico ou filosófico, ficcional ou técnico, midiático ou mítico, singular ou social.

            Por isso a narrativa, antes de tudo, aponta para si mesma, para sua feitura, seus elementos, sua construção e intenção discursiva: sem esse gesto semântico e epistemológico, o “conteúdo” se torna exterioridade em si, isto é, a sensação produzida pela narrativa, se torna real, separada como algo independente, vivo em si: a narrativa aparece então como um meio (uma vidraça que deixa ver o outro lado) para deixar ver o verdadeiro e o real. A narrativa não é o que ela diz ser: ao mesmo tempo aquilo que ela diz ser é somente ela. Isso não anula nem a verdade nem a experiência, mas são suas condições de consciência e crítica: sem essa prevenção epistemológica, seriamos sempre vítimas da narrativa, não seus criadores.

 

3

 

            O ensino de História sempre esteve ligado ao estado (aristocrata, democrático, ditatorial, eclesiástico, escravocrata, liberal, republicano, revolucionário), ao ensino daquele espírito de “moral e civismo” que con-firma a nação, suas políticas, territórios, línguas e povos, normalmente para confirmar a unicidade. É, antes de tudo o ensino de um discurso legitimador, aquele que antes de tudo contribui para reforçar e tornar narrativo o “mito fundador”, sem precisar dizê-lo abertamente: a História é sempre em-nome (do rei, do estado, do povo, da nação, da política, da mídia). E a História, para a grande maioria dos professores, é uma fieira de “fatos” objetivos “que realmente aconteceram”. E não pode ser diferente.

            Sem essa crença elementar na realidade de certa história a rede discursiva da nação, do saber, do tempo, do estado e dos cidadãos fica inapelavelmente comprometida. Não é à toa que os “programas de História” e “grades curriculares de História” se pareçam tanto: como realmente aconteceram, só nos cabe contar em sua seqüência, em suas conseqüências, em suas relações, em seu costume: estão imóveis num passado: somente o historiador pode expor sua matéria acontecida. Essa “seleção de fatos”, para o professor de História, não é uma seleção, mas a seqüência viva “daquilo que aconteceu” (a célebre sensação de hipóstase: criamos, escrevemos, montamos a coisa toda e isso, epistemologicamente, nos escapa pelos dedos, pelas brechas do discurso e das práticas historiadoras).

            A verdadeira narratividade da História nunca foi interna, mas externa: a “seqüência da história”, sua específica temporalidade, dita por quem domina objetiva e simbolicamente o real, por aqueles que são os “donos do discurso”, das posições e das instituições, nunca foi “resultado dos fatos”, mas de como se cria e como se põe numa ordem as narrativas criadas como o real (aquela que devem ser acreditadas como verdadeiras): o real se torna essas narrativas.

            A narrativa histórica é aquela que põe ordem no tempo. Essa ordem não advém das “próprias coisas”, mas são aquelas que dão forma de existência às coisas, ao real para nós, a nós mesmos enquanto elementos desse real. Sem essa narratividade o tempo seria desordenadamente perigoso, seria sem começo, meio e fim (como ele realmente se processa em devires polidimensionais e hipertextuais). Sem as pontuações, os protocolos, as chaves, os ritmos, as autoridades, os cerimoniais, as posições, as tradicções que lhe dão um sentido de rede imaginária sob os mais diversos domínios das relações de poder numa “sociedade”, o tempo não significaria como dimensão para a exploração, para as justificativas, para as ideologias, para a imposição da verdade, para os sentidos (grande parte da “nossa percepção do real” advém da discursividade), para os discursos da historicidade e do mito.

            A narrativa em História não é mais questão de sexo dos anjos, complemento à narratologia ou à “ciência da linguagem”, mas a maneira como os discursos sociais dominam as dimensões vitais do tempo, garantindo, assim, posições e relações, produtividades e consumos, crenças e rituais.

            Quando os discursos religiosos foram perdendo autoridade, força explicativa e domínio do tempo, os discursos historiográficos foram sendo criados. O tempo não pode ser deixado sem ordenamento. Sendo ele praticamente todo o real (as dimensões imaginárias de todos os antes, o que se abre agora para ser o imediato e todas as perspectivas e movimentos de futuro), os discursos que o fazem domesticado são questões estratégicas não somente dos estados, das instituições, mas dos grupos, das micro-crenças, dos indivíduos e das mais díspares relações.

            As diversas “escolas de História”, os diversos historiadores são diversas maneiras de dominar o tempo, de criar e impor discursos específicos de dominação temporal, que são discursos de determinadas relações de poder, de específicas posições sociais, de estratégicas formas de continuar os processos de reprodução do real. Esses discursos são, antes de tudo, formas políticas de autorização temporal: com eles não somente se ordena o tempo, mas se criam redes de sentido, redes de crença pessoal, grupal e social. Tudo se põe no seu lugar, com seu movimento, com suas razões, com suas lógicas. Um “grande historiador” ou uma “nova escola de História” são momentos de consolidação discursiva, primeiro quando há tantos elementos novos no “ar” que esse novo discurso pode ser criado e exige sua imposição (ele aparece como uma necessidade, uma antecipação); ou quando determinada configuração social já está suficientemente consolidada para criar suas maneiras de ser, agora exigindo naturalizações e universalizações.

            Por isso os discursos historiográficos são, estranhamente, imobilizações das “malhas temporais”. Sua consolidação narrativa é o momento onde é dada a ordem, as classificações, a posição das coisas, dos homens, dos feitos, das idéias e onde e quando se consolidam as justificativas.

 

4

 

            Se a História e a Retórica são inseparáveis ou se é pesquisa (erudição, método, rigor) e não ficção (o irreal), essas são questões que se interpõem para obscurecer a questão central (discurso que ordena o tempo, que faz o tempo aparecer como coisa separada de deus). Normalmente os conceitos de verdadeiro (histórico) e falso (literário ou ficcional) são usados sem perceber que a visão de mundo que separa a res gestae (ações concretizadas) e a História enquanto rerum gestarum (a narração) só passa a existir quando a modernidade estabelece uma “filosofia” que separa o acontecido do dizer o acontecido: o dizer deixa de ser o que sempre foi: uma obra de oratória, e passa a desejar dizer na medida do viver (a História passa a substituir a palavra sagrada: agora ela é exemplum, a mestra da vida, a magistra vitae, sob novo regime). A narrativa agora se interpõe entre as ações: ela quer participar da polis, do burgo, da vida política. Ela almeja formar a consciência, ser universal (burguesa): um discurso geral do tempo, do verdadeiro tempo. Para isso vai se tornando “discurso positivo”, ciência e saber. Os fatos (“como realmente aconteceram”) são seu suporte: o tempo se objetiva, se torna physis, tão concreto quanto a sociedade e o homem (todos devidamente naturalizados e universalizados). O lugar dessa história eram os arquivos: o eixo eram os documentos: a narrativa tornou-se esquecimento de si mesma: ela passa a aparecer como espelho do real, do que realmente aconteceu.

            Com o século XX a narrativa ainda permanece escondida de si mesma, aparecendo como “problematização”, mas ainda na ordem da ciência, sob o regime dos fatos, antolhada para sua formatação política do tempo (ainda e sempre inocente da sua discursividade), sob o olhar de métodos e técnicas, objetos e modelos: estranhamente a História não deixou de ser o “estudo dos fatos”. O verdadeiro e o falso se misturaram, mas ainda eram nítidos seus territórios. A narrativa somente a “maneira de contar”: cada “escola de História” conta de certa maneira, cada uma tem uma concepção de tempo: mas a sua função ideológica ainda escapa. Afirmar o discursivo, o literário e o ficcional da História é bater no batido: isso a História “sempre” foi, querendo ou não, sabendo ou não e jamais poderá fugir disso. Mas essa discursão ofuscou exatamente a questão da narrativa não como aquilo que ficcionaliza a História (ela deixaria de ser verdadeira, “acontecida”, para ser falsa ou ficcional, passaria a ser uma “forma de operação ficcional” entre outras), mas aquilo que rotaciona seu olhar exatamente para sua dimensão de discurso ordenador do tempo (para as várias políticas do tempo); o problema não está em a História ser ficção, mas em ser um discurso manipulador do tempo com sua específica forma de pensar, escrever e ordenar elementos. O problema da ficcionalização da História está em ser este um tema que a faz perder “credibilidade”, “legitimidade”, “cientificidade”: o falso e o verdadeiro se misturam: a autoridade se perde. Mas com a questão da narrativa se retoma exatamente a racionalidade assassina da História, aquela que comunga com os demais discursos ordenadores de “homens e coisas”, aquela que molda o tempo: já não podemos “dizer o que realmente aconteceu” (mesmo continuando a História a ser uma possibilidade viva de experiência temporal), a História é mais um discurso, o passado já não pode ser entregue inteiramente ao historiador: o mundo do tempo é mais do que aquele que a História deixava entrever: o horror deve ser enfrentado de outra maneira (o verdadeiro e o falso, o real e o irreal): a História é uma das construtoras e reprodutoras dos discursos do horror: ela não pode sozinha decidir nenhuma dessas noções (pelo menos enquanto não assumir seu papel de discurso que ordena o tempo).

            O tempo é maior que a História e não pode ser tratado somente por ela. O tempo ocidental foi criado (entre os séculos XVI e XX, com várias formas temporais) quase ao mesmo tempo que a História. O domínio dela sobre o tempo deformou tanto essa polidimensional virtualidade que ainda hoje é praticamente impossível discutir o tempo a não ser sob o regime da historicidade, que deveria ser apenas um dos seus elementos (que pode não ser necessário), não uma explicação geral.

            A História em andamento, ainda presa ao espírito judicial e policial, mesmo teoricamente parecendo ser “pós-moderna”, relativista e multicultural, continua sendo um feixe de discursos formatadores do tempo segundo posições e relações de poder. Mas tem se apresentado com novas roupagens científicas, filosóficas e técnicas. Dizer a História como fruto das “coerções sociais”, ligada a técnicas, procedimentos, regras, formas de escrever e se relacionar, não toca em sua função crucial, isto é, aquela função que a mantêm como um dos principais sistemas discursivos da ocidentalidade. Essa atualização pós-moderna da História não passa da constituição de um novo sistema temporal: a História vem construindo o tempo exigido pelas relações objetivas das redes imaginárias que é a sociedade. Por isso tanta conversa sobre tudo, menos sobre isso. As questões sobre os “estatutos de cientificidade da História”, sobre a “verdade histórica”, sobre “o papel da História e do historiador” são legítimos, mas são ofuscamentos, não enfrentamentos.

            O pretenso encurtamento da distância entre o ficcional e o historiográfico esconde, por exemplo, que todo historiográfico sempre foi ficcional (um ficcional que escondia sua ficcionalidade para ser respeitável e útil, para parecer verdadeiro, para ser falsamente verdadeiro); que toda “verdade histórica” sempre foi uma perspectiva em-nome, um discurso classificador e formatador do tempo; que ficcionalidade não está nem pode estar ligado a irrealidade e a falsidade, mas a como o “mundo social” produz e se reproduz, como ele cria seus estímulos de crença e ritual; que a ficcionalidade é um dos elementos fundamentais para a História superar sua condição de discurso inconsciente e capacho; que a tradicional retórica historiográfica deve ir cedendo a uma narração rigorosa que seja fabular, política, ficcional e, principalmente, atenta ao seu próprio fazer, não esquecendo que quem está “escrevendo a História” esta fazendo a história. Se há uma salvação para o historiador está em transformar a história num saber menos sabido.