TREZE "FOTOS" DA GEOGRAFIA DA MISÉRIA
INSTITUTO IATTERMUND
1 - O homem das Caatingas
No nordeste brasileiro, vê-se a tragédia da insegurança de vida de seus habitantes. No ano em que o inverno chega a tempo, o homem está a trabalhar a terra justamente com sua mulher e filhos. É o período das plantações de melancia, maxixe, gerimum, melão, milho, feijão, algodão e outras leguminosas típicas das nossas caatingas. Agarrado ao cabo da foice, enxada e outras ferramentas superadas, trabalha todos os dias das 6 às 6, na esperança de um dia ver sua família feliz.
No ano que o inverno tarda é um Deus nos acuda. Espera-se todos os dias pelas chuvas, reza-se, fazem-se procissões, terços, novenas e implora-se uma gota de chuva até pelo amor de Deus. Quando as chuvas não caem, como acontece muito e muitos anos, sai o pobre homem de retirada como ave de arribação estrada a fora - - é o retirante.
As cidades se amontoam de pedintes. É a chegada da desigualdade social. E a falta de amparo, de trabalho, de justiça, de humanidade. É o retrato do Brasil por dentro.
Há anos em que o inverno chaga a tempo. Correm os retirantes de volta às terras que antes haviam abandonado pelas circunstâncias da miséria. Voltam alegres como peixes nas primeiras chuvas de Janeiro. Voltam às pressas para prepararem suas roças e produzirem assim para o bem-estar seu e de sua família.
Durante o tempo que preparam suas roças passam a come diariamente as frutas de capitão, joá, imbu, mandacaru e maracujá mochila e outras frutas semi-bravas que matam mais do que alimentam. E assim vão até que apareçam os primeiro frutos de seu trabalho. E o tempo em que apareçam as aves de arribação sobrevoando os céus das nossas caatingas. É uma verdadeira festa - - caçar de espingarda, faxiar, ajuntar ovos e muitos outros apetrechos que usam para esse fim.
Os cascavéis se aglomeram nas estradas e veredas, em perseguição às aves de arribação. Os caboclos se precaveem.
As agruras dos dias anteriores desaparecem como um copo d’água no oceano. Só se pensa em comer e brincar. É maior alegria de barriga cheia a soltar gases, como uma locomotiva a soltar bafejadas. Os foles berram, os triângulos tilintam, caracaxa os reco-recos é o forró das noites de São João. Comem-se as buchadas dos bodes capados, comem-se os perus, as canjicas, as pamonhas, os milhos assados, fazem-se as comadres, ajuntam-se os casamentos, fazem-se as adivinhações para o futuro, se José vai mesmo casar-se com a Maria de velho Zeca, é assim todos os anos em que chove bem no interior.
Com a entrada do verão, os pobres cablocos não têm outro recurso senão sair outra vez em arribação, como os passarinhos que eles dias atrás perseguiam. Estão também persiguidos pela necessidade de ganhar dinheiro, para cobrir a deficiência dos produtos de sua roça que fora tomada pelo dono da terra, onde trabalha, em pagamento do “meio” do “terço” que lhe foram impostos. Deixam o convívio de seus lares humildes mas felizes, saem madrugada afora, calçados de alpercatas por eles próprios engendradas, matulão nas costas, rumo aos engenhos ou usinas do litoral, em procura de um dia de trabalho. É o “cadango”.
Segue seu destino depois de abençoar os filhos despedir-se da mulher querida, que fica de olhos compridos para as estradas, sonhando a volta do seu ente querido que saiu partido de saudades, chorando a separação que pode ser definitiva, pois não sabe se o latifúndio e o capanga das usinas permitirão a volta ao convívio de seu lar.
2 - Os Cangaceiros
Já se tornaram cena folclórica em todo o mundo os contos e demonstrações dos temidos cangaceiro que, durante muitos anos, palmilharam as terras do nordeste brasileiro.
Era uma espécie de coluna revoltosa, que se fazia respeitar por todos quando habitassem aquelas causticantes terras dos sertões de nossa pátria.
De muitos famosos cangaceiros, destacaram-se por sua audácia e valentia, por sua impiedosa sede de vingança, os notáveis comandantes Antônio Silvino e Lampião. Era a época dos rebuliços no sertão. Só se falava nos bandidos que faziam e desfaziam, casavam e batizavam, sem que nenhuma força pudesse deter aquela agitação.
O que queriam os cangaceiros?
Desmoralizar o então poder constituído, cúmplice do desajustamento social, da discriminação espoliativa imposta por uma minoria de privilegiados à maioria da população brasileira.
E era justamente por isso que os governos eram importantes para sufocar a rebeldia no Nordeste. Por mais de 20 anos, Lampião e seu bando percorreram as terras da Bahia ao Ceará.
O Juazeiro do Norte foi palco de muito acontecimentos naquela época. Lampião chegou a ser incluído na força do governo, co a promoção de capitão. A desonestidade do governo, destituíndo-o da força policial, constituiu-se numa força, a força da revolta e do cangaço.
Os Cangaceiros eram alvo de comentários da população que, vez por outra, era beneficiada com a ação confiscadora dos capitães Antônio Silvino e Lampião. Quase sempre os cangaceiros não faziam mal ao povo, porque sua ira era contra o latifúndio.
Conta-se que muitas vezes Antônio Silvino tomava aos ricos e distribuía aos pobres. Daí se conclui que, mesmo de forma bandoleira, a luta dos cangaceiros tinha no fundamental origem de classe.
As forças do Governo que perseguiam os bandidos foram cúmplices de inúmeras atrocidades. Pelo fato de serem constantemente logrados pela tática dos bandidos, os soldados descarregavam suas raivas, cometendo as maiores perversidades contra a pacata população sertaneja. A presença do governo dava motivo ao desespero de todo o povo. Diz-se que os soldados eram mais bandido do que os cangaceiros da região.
3 - O Remeiro
O remeiro é o motor das embarcações da Amazônia, do São Francisco, do Parnaíba e de outros rios navegáveis. É ele quem as impulsiona no remo rio a baixo e rio a baixo e na vara rio a cima.
Não se deve confundi-lo com o remador. O remador é o homem das embarcações pequenas, rápidas, e usa remos leves. O remador quase sempre é o dono ou interessado na canoa ou pequeno paquete.
O remeiro é o assalariado da barca, do paquete ou do batelão, embarcações estas que variam de cinco a sessenta toneladas. Seus instrumentos de trabalho são o remo e a vara. Conforme o tamanho do barco, o remo ou a vara pode pesar até trinta quilos.
O remo não pesa tanto pois o maneja preso e repousado sobre a coxia.Ademais, quando trabalha no remo o faz sentado e em ritmo compassado. Isso ocorre quando viaja rio a baixo, “na voga”. É quando canta, em coro com os demais companheiros, as toadas, as loas, que fazem a música e a poesia do rio.
Se a embarcação está subindo o rio, a coisa muda porque “só pra baixo é que o diabo ou todo santo ajuda”. A subida do rio é trágica. É na vara. Uma vara quase tem o tamanho e a grossura de uma verga da vela. É pesada e o trabalho é perigoso.
Os remeiros quando “varejão” passam o tempo todo andando de uma extremidade a outra da embarcação, nos mesmos trilhos, as coxias que medem de largura de trinta a sessenta centímetros. Nessa pequena largura se equilibram os remeiros, entre o porão e o abismo das águas prenhas de piranhas.
Uma ponta da pesada vara de oito a dez metros de comprimento o remeiro ficnca no fundo do rio. A outra extremidade ele sustenta no peito, enquanto com as pernas empurra a barca contra as águas correntes.
Uma barca ou batelão de quatro toneladas exige dois remeiros. De vinte toneladas é movida por dez remeiros, cinco em cada coxia, ou seja, de cada lado. Há veículos desses, que tanto lembram as galés medievais, impulsionados por quinze remeiros de cada lado. Os remeiros empurram essas barcas centenas de quilômetros rio a cima, quando não ocorrem ventos para as velas.
O iniciante, logo na primeira semana, é imobilizado pela enorme chaga (em carne viva) que a vra lhe faz no peito, cujo tecido não forma calo grosso.
Aí lhe vem o dilema: ou voltar ao desemprego, à fome que o martiriza e martiriza-lhe a esposa e os filho, ou suportar a bárbara, animal e primitivíssima “operação”, sem o que não poderá vir a ser remeiro profissional. A fome é para ele a maior dor. E o jovem remeiro se decide pelo emprego.
Amarrado de barriga para cima, olhos vedados, aguarda a dor terrível. Os “operadores” são os veteranos do remo e da vara que, depois de fritar um quilo de toucinho, jogam-no sobre o peito. A gordura fervente queima-lhe a carene viva provocando escaras grossas.
Mais algumas semanas de dores da cicatrização e estará pronta aquela couraça grossa que possibilitará ganhar o pão de cada dia, varejando de Juazeiro a Barra (cem léguas), no rio São Francisco; ou de Nova Olinda a Porto Velho (200 léguas), no rio Madeira; ou de Teresinha a Balsa (cem léguas), ou ainda de Araguacema a Baliza (duzentas léguas), no Araguaia.
Só homem de compleição forte suporta esse trabalho. Finda, entretanto, morrendo precocemente, sucumbido pela brutalidade do ofício, as febres palustres e a tuberculose.
O remeiro é um infeliz. Rema, “vareja” e ainda faz o trabalho de carregamento e descarregamento das barcas. A tanga é o uniforme de trabalho com que atravessa dois terços de sua existênia.
Na Amazônia, cada percurso completo lhe custa meses de viagem.
O remeiro é o nosso “barqueiro de volga”. Aquele vive como vivia este antes de 1917, sujeito às intempéries, à fome, à miséria, à espera que o socialismo o libertasse.
4 - A “Aparedeira”
É a aparadeira de milhões de brasileiros da zona rural. É apara o recém-nascido. Daí a “aparadeira de menino” -- expressão que completa a pobreza de linguagem de nossos camponeses.
Nas comunidades pobres do interior do país e até nas cidades onde reside algum médico, a “aparadeira” é indispensável porque quase sempre o licenciamento só atende aos que podem pagar o trabalho do parto. Na maioria dos casos, quando procurado, se limita a auscultar o ventre para constatar a posição do feto e, terminada aí sua missão de clínico, deixa à “aparadeira” a tarefa do parto.
No interior do município, para onde não se abala o médico, tudo compete à “aparadeira” porque o primitivismo do camponês não admite, de forma alguma, que um outro homem conheça as partes íntimas de sua mulher ou de sua filha mais velha, já moça. E nisso ele é irredutível.
Não há outro instrumento cirúrgico além da tesoura comum de que se serve, invariavelmente para cortar roupas, couros, calos, unhas, etc.
Trata-se, quase sempre, de pessoas idosa -- mulher de mais de cinquenta anos -- pois só assim impõe respeito e infunde confiança ao marido da parturiente ou a ambos.
Maior confiança ainda, quando costuma vaticinar meses antes a data e a hora do parto a que completa a precisão com que a ingenuidade do home cria. Pois é a precisão que lhe desafora a incerteza proveniente do seu completo estado de ignorância. Resulta disso o camponês alimentar indícios “seguros” para os anos chuvosos: a neblina no dia de São Miguel e a chuva na data de Nossa Senhora da Conceição.
Essa tendência aos prazos e datas dogmáticos, o camponês leva até à ginecologia e não lhe causa a menor admiração -- pois o conhece de longas gerações -- que a porca pare três meses, três semanas, trê horas e três minutos após a fecundação.
A boa “aparadeira”, portanto, é aquela que, além de diagnosticar a gravidez, diz o número exato de luas que faltam para se dar o parto. E se lhe afirma categoricamente que “da décima lua não passará” -- e não poderá passar mesmo -- então o camponês descansa o espírito. Tranquiliza-se.
A “aparadeira” chega de véspera munida de uma esteira nova, de carnaúba ou de “tábua”, a fim de que a criança não nasça no chão; uma toalha branca, lavada; a tesoura desinfetada, com cachaçã alcanforada, ao fogo; cordão e fumo para os respectivos amarramentos e “cura” do umbigo, folhas de losna para afastar os maus espíritos; bacia ou gamela e sabão de cinzas para a limpeza da cliente; defumador de alfazema ou folhas de eucalípto para perfumar o mucambo infecto, mal iluminado pela lamparina de azeite de mamona ou pelo rolo de cera de abelha. E, além desses petrechos primitivos, o rasário -- a fé -- com que julga substituir o “forceps” nos casos de feto atravessado ou de estreitamento de útero ou dos ilíacos.
No insucesso a “aparadeira” lança mão das rezas e litanias místicas -- “Ofício de Nossa Senhora” -- “sonhos de Nossa Senhora” e as famosas “incelências” -- a que não faltam truncadas citação latinas com que recomenda a alma da infeliz mãe camponesa.
A criança, se nasce morta, cumpre à “aparadeira” enterrá-la atrás da porta do quarto, ou próximo ao mocambo, a fim de que, em caso de ouvir os seus vagidos (a mãe desnutrida em sonhos ou em alucinações os ouve) a parturiente se sinta perto do filho para protejê-lo.
No êxito, a “aparadeira” administra o “resguardo” a troca das esteiras ou dos lençóis e a limpeza diária do umbigo com cachaça alcanforada e fumo a fim de evitar o “mal de sete dias” -- o tétano -- que é fatal.
Até aí somente vai a sua “ciência”.
A mortalidade infantil que mata metade dos filhos e que tem causa na pobre, na miséria e nafome do menino camponês e, ademais, o vai sucumbir, está fora do alcance “profissional” da “aparadeira”.
Cabe ao próprio camponês libertar-se da penúria em que foi mergulhado pelo latifúndio semi feudal e cruel que escraviza e mata anualmente milhões de brasileiros.
5 - Legião de Anjos
Quem visita os monumentais templos italianos, as capelas e museus do vasticano contempla, em quase todos os afrescos e quadros outros da pintura Renascentista, uma constante nas visualizações dos panoramas celestiais. São os anjos, os anjinhos de asas preenchem todos os claros das geniais obras de arte.
Esta constante -- os anjinhos -- se multiplica nos milhares de templos, sobretudo os barroucos, que se espelham pelos Continentes.
Quem se fixa na análise dessa constante chega forçosamente à conclusão de que os anjos estão em maioria nas paragens do além. Para os cristãos que acreditam na existência dos anjos (há o que não crêem), aquela conclusão nos dias de hoje se evidencia á luz da estatística.
A Secretaria de Saúde e Assistência Social de Pernambuco dispõe, há anos, de um Serviço de Bio-Estatística que oferece os mais criteriosos dados sobre o assunto. E a repartição encarregada do estudo do obtuário do Recife e sobre o que fornece mapas mimeografados a quem interessar possa.
Manuseamos os mapas de 1960 e neles constatamos uma verdadeira gritante, dura e constrangedoura. Dos 14.236 óbitos ocorridos no Recife naquele ano, 7.678 são de crianças que não passaram de um ano de idade. Inacreditável! Mas é a verdadeira inexorável dos números. Nesses dados não se incluem os fetos de parto mal sucedidos decorrente da desnutrição da parturiente e que são numerosos naquela capital. Basta que se diga que na maternidade do Bairro dos afogados esses abortos alcançam a média de quinze por mês.
Dos 14.236 mortos, 7.678 são anjinhos até um anos de idade. Eles são a maioria, portanto. É preciso se observar que estes são dados estatísticos referentes a 1960.
O Recife que é também a terceira cidade brasileira.
O “US News & World Report” de Nova York publicou, no início de 1949, uma reportagem sobre a miséria da Índia, quando seu povo mal saia da tutela do colonialismo inglês. A publicação americana afirma que o índice de mortalidade na Índia é um dos mais altos do mundo de então: 22,4 por mil habitantes.
Ora, o Recife -- o terceiro centro do nosso país -- nesse particular se aproxima bem da Índia de dez atrás com seu índice de 17,3 mortos por mil habitantes. É impressionante realmente. E se é impressionante quanto aos índices do obtuário geral, causam vergonha, humilhação e revolta os dados do obtuário infantil, mais da metade do total dos óbitos anuais.
No interior de Pernambuco e do Nordeste, onde há regiões em que cabe um médico para cada grupo de vinte mil habitantes, essas cofras se avultam mais ainda.
Eis aí a legião de anjos que os pintores Renascentistas tiveram a virtude de antever. É verdade que não o fizeram com a absoluta precisão das linhas formais. Portinari foi, no que diz respeito à forma e ao conteúdo, mais preciso.
Os anjinhos de Rafael Sanzio e da Vincci são recheados de saúde. São gordinhos, corados, roliços e de conformidade com as gordas “madonas”. Desgraçadamente, no Recife, somente a visão coalha de Gilberto Freire concebe as “mulheres arredondadas do açúcar”.
A legião que sai do Recife é feita de anjos esqueléticos, mirrados, famintos. Acho que nem chegam a sair, já que a fome, não lhes permitem andar, tampouco lhes deu a oportunidade de aprender a voar.
A legião de anjos do Recife permanece no amontoado de 91.000 mocambo dos 157.000 edifícios que forma a terceira cidade do Brasil, à espera de um dia ter direito á vida que...
6 - Currais Eleitorais
É importante observar-se pelo Brasil a fora o chamado “processo democrático eleitoral”, tão proclamado pelos representantes das elites feudais econômico-financeiras
Democracia que favorece única e exclusivamente uma meia dúzia de privilegiados da sociedade, em detrimento da maioria esmagadoura da população, que continua à margem de qualquer direito, até o de votar livre e conscientemente.
Democracia onde mais de dois terços da população é constituída de analfabetos que não votam. Onde o latifúndio impõe sua própria democracia de classe: democracia da perseguição aos camponeses, das expulsões de terras, das forcas extorcivas, das multas, dos descontos ilegais, da vara de 15 palmos, no pulo na medição, do vale do barracão, da polícia e da justiça de classes da classe dos latifundiários. Tudo isso é a democracia do pobre, do pobre camponês de todo os quadrantes da nossa pátria.
Na cidade, impera a democracia do capitão de indústria, do banqueiro e do imperialismo.
É a democracia da vergonha e da corrupção. Democracia do desemprego, do desabrigo, da mendicância, da fome da prostituição, cujo o descaso é o xadrez, tendo como recompensa final a barriga dos peixes não só do rio da Guarda como de outros rios se estendem por todo o território nacional.
Democracia da falta de liberdade, porque não há liberdade política quando não há liberdade econômica.
As eleições em todo o Brasil ocorrem num clima de insegurança e de coação política e econômica dos mais condenáveis.
Por todo o interior brasileiro são organizados pelos chefes políticos e os seus sequazes os chamados currais eleitorais. Daí vem a ação subordinadora e desmoralizante do capital, que funciona com o objetivo de corromper especialmente as pessoas de bem, utilizando o estado de desespero econômico em que vive o nosso pobre.
Os requerimentos para aquisição e transferência de títulos ficam retidos nos cartórios eleitorais, quando se supões que estes viriam benefiaciar a um candidato progressista e independente.
Há eleições até em que os títulos são apreendidos e somente voltam às mãos do seus respectivos donos, quando para entregar ao mesário, na hora da votação.
Na maioria das vezes, o que é quase constante, os mortos há vários anos votam até 18 vezes em só dia.
Eleitores são revistados em plena via pública e são obrigados a votar justamente em quem não desejam. Nesta revista, nem as mulheres são respeitadas pelos chefes políticos e seus cabos eleitorais, que melhor chamaríamos de capangas, que metem as mãos nos seios em busca de chapas de um outro político adversário.
A isso se chama no Brasil “eleição”. O povo por lei é convocado a votar, por uma democracia que não é sua.
Ao povo não interessa um regime de concorrência reacionária contra as forças vivas da nação. Ao povo que tudo faz e nada tem, interessa uma outra coisa... deixar de ser boi incurralado e tornar-se realmente livre e independente.
7 - Jangadeiros
Em toda a imensa costa brasileira e na sua espantosa rede hidrográfica, milhões de seres humanos ainda vivem do estágio da pesca primitiva. Mal consegue o pescador o mínimo para o sustento de sua prole. quase sempre numerosa.
Ele ainda utiliza os mais atrasados processos e instrumentos dos selvícolas que o antecederam. Tais instrumentos vão desde a jangada rústica, utilizada com mais frequência no mar, ao “tingui” -- raspa de raís de “timbó -- com que embebedam os peixes pelo envenenamento das água das lagoas.
A flexa, o arpão, o “voco” e o “jiqui” ombreia, pela aplicação generalizada, com o “espinha!”, a “rede de arrastão” e a “tarrafa” das poucas empresas modernas que possuimos.
À pesca organizada e em moldes modernos se aplicam apenas uns poucos milhares de brasileiros do litoral sul do País, a riqueza do mar e dos rios píscosos estabelece profundo contraste com o acentuado pauperismo do homem da pesca.
As populações litorâneas e ribeirinhas apresentam o mesmo cenário de miséria do campo, agravado, ademais, pela verminose e as anemias perniciosas.
Os moluscos e os crustáceos, que servem de base alimentar e meio de vida de centenas de milhares de nordestinos e nortistas do litoral, são capturados à mão. E, sendo, de certo modo, a salvação de tantos antes miserando, motivaram o “círculo do carangueijo”, tão bem estudado pelo professor Josué de Castro. po -- a vela -- poupando, com o aproveitamento da energia natural das virações marinha, miores esforços aos cansados braços dos jangadeiros.
Nessa frágil embarcação, em nosso país, dezenas de milhares de pescadores, sujeitos às mais duras intempéries e perigos, arriscam a vida, mar adentro, em busca do pão de cada dia.
A grande maioria não possui jangada. Estas são arrendadas ao jangadeiro à base da “meis” ou da “terça”. Metade dos minguados peixes que consegue pertence ao dono da jangada. A outra metade é para matar a fome dos filhos miseráveis que aguardam.
O jangadeiro retorna sempre: com peixe ou sem peixe algum, ou ainda, na pior hipótese -- coisa que não ocorre -- retornam os trapos que, em vida, mal lhe cobrem o corpo, mieturados com os pedaços de sua sinistra companheira -- a jangada.
E só assim desaparece no horizonte longínquo a esperança dos filhjos, fulminada pelas ondas que atiram à praia a notícia fatídica. Resta a pobre família enlutada, além da dor e da fome, a dívida que a ajngada despedaçada acarreta. As mais das vezes, se lhe aplicam bem as palavras do poeta, pois, na verdade, ao jangadeiro serve “de lenços e sepultura, o mesmo mar que que o pão lhe dera em vida”.
8 - O almocreve.
Somente na região sul do Brasil onde o território é todo cortado de ferrovias e de rodovias é que se desconhece o almocreve. De Minas parte do Norte e parte do Centro do País, considerável parte dos transportes, nas interligações municipais, ainda é feito em lombo de burro e do carro de bois.
O almocreve é o assalariado que vive na condução de tropas de burros e jumento que transportam mercadorias de um lugar para outro. São muitos freqüentes em Minas, Bahia, Maranhão, Goiás, Piauí e Mato Grosso, onde as tropas costumam percorrer, não raro e regularmente, distâncias de trezentos quilômetros.
O almocreve é um trabalhador especializado no terreno das atividades da vida rural. Conhece e percorre a pé todos os caminhos e “atalhos”; conhece a primitiva veterinária para a cura de bicheiras, dos sestros, dos estrepes e das “picaduras” que a “cangalha” e seus adornos provocam nas longas caminhadas. Ademais, “advinha” chuvas, presença de onça e é um “rastreador tão eficiente como o vaqueiro. O seu aprendizado é longo, pois em geral, o almocreve se inicia muito cedo, a partir de nove ou dez anos. Nessa idade, a sua estrutura facilita as operações de carregamento e descarregamento dos animais. Seu ombro serve de ponto de apoio para uma “bruaca” (mala de couro) enquanto a outra é colocada do outro lado da “cangalha”. É nessa fase que o menino começa a aprender o ofício de almocreve. Aprende a fazer cordas, peias, arrochos, nós, cabrestos e a jogar laços.
Tem vida difícil e miserável o almocreve. Os salários que recebe não vão dos dias de hoje, além de duzentos cruzeiros por dia. Mal paga o seu menor trabalho e nada representa diante da responsabilidade que assume na condução de uma tropa de dez ou vinte burros, carregada de mercadorias preciosas. É o responsável pelos burros, pelas mercadorias e pelo prazo de entrega. E toda essa responsabilidade para ganha uma miséria.
Essa miséria que lhe acompanha a vida toda não lhe permite as mais modestas condições humanas. Atravessa a sua existência descalço e reduzido a uma calça e camisa de pano rústico. Se dorme, o relento é o seu leito: o fogo ou o “boralho” lhe proteje do frio e das cobras.
Sua alimentação depende do tropeiro: quanto ao salário que recebe inclui a comida. Quando isso ocorre, a almocreve fica a depender dos seus poucos recursos. Resulta, quese sempre, se alimentando da “passoca” ou da farofa de carne seca, que lhe definha a saúde e o expõe às avitaminoses e a toda as enfermidades carenciais.
As cheuva trazem benefícios ao almocreve. É que em grande parte do território mal servido por estradas carroçáveis o transporte rodoviário se paraliza. Aumenta, com isso, o mercado de emprego e o almocreve passa, nos meses das “águas” a ser muito disputado. Melhoram-lhe o salário. Volta a existir o trabalho cuja ausência lhe deixou parado muitos meses. Se bem que, dia a dia, se reduz essa camada de assalariados rurais, já que as rodovias substituem as trilha e o caminhão a tropa de burros, os almocreves que somam dezenas ou centenas de milhares de brasileiros continuam, ainda, na mais negra miséria, no mais impiedoso desamparo e no mais acentuado marginalismo.
9 - Homens dos “gerais”
Desde o Triângulo Mineiro até o centro do Maranhão e Piauí, no alinhamento do divisor de águas das bacias hidrográficas do São Francisco e do Tocantins, se estende a vasta região do “campos gerais”.
Forma um imenso quadrilátero de mais de mil quilômetros de comprimento por uns quinhentos de largura e em que predomina uma vegetação rarefeita, raquítica e contorcida, denunciando a pobreza do solo arenoso.
Nada tem de parecido, entretanto, com as “caatingas do Nordeste, onde um mar de espinhos se aliou a uma terra seca e silicosa e a céu estiado. Não, nesse campo quase não há espinheiros; as chuvas são regulares e o riacho perene é uma certeza nas travessias nem sempre longas.
Há “gerais” também entre o Tocantins e o Araguaia e entre a bacia deste último e a bacia hodrográfica do Rio Paraguai.
À medida que se viaja da periferia para o centro dessas regiões, os “gerais” assumem novas linhas no revestimento florístico. Os arbustos se reduzem e, em um perder de vista, agride ao viajor o descortino de centenas de quilômetros de campinas intermináveis. É um plano descomunal, ligeiramente ondulado.
Aquie acolá, listram esse mar de relva os riachos de águas cristalinas escoltados dos buritizais. São os “ruarimbus”. A terra é pobre. Paupérrima. Da mesma forma que repeliu a vegetação natural, repela a agricultura.
Só um vegetal forra essa pobreza de recursos -- o buriti -- que de longe denuncia a água; alimenta e agasalha a fauna. E se evidencia na planície ilimitada.
Aí vivem os homens dos “gerais”. E se a terra é paupérrima a ela demandam os homens mais pobres do País. Não vivem, vegetam e se embrutecem isolados da civilização.
São em geral, camponeses tangidos pelo latifundiário, que não puderam se fixar em regiões agricultáveis.
Tiveram que retroagir ao estado primitivo da caça, da pesca e da extração de frutas, por desgraça, em uma região de caça difícil por ser demasiado aberta; dos diminutos peixes das “cabeceiras” de rios e onde as frutas quase se reduzem ao côco buriti, ao “araticum” e aos pequenos cajus dos “gerais” -- os cajuís”.
Passam meses sem comer carne, nem cereais. Essa abstinência compulsória quebram-na quando conseguem enganar uma “siriema” um tatu cansado, ou derrubar do “bodoque” ua ave qualquer. O veado, a anta, a ema e a onça, que frequentam essas paragens desoladas, são objetos de caça somente para os que possuem espingardas. Estes não são muitos. São uma minoria.
Os homens dos “gerais” e as suas famílias passam a maior perte do ano roendo côco buriti e comendo castanha do rasteiro côco “tucum”.
A água da região também é pobre como a terra. Não contém cálcio, nem ferro, nem iodo, nem nada. Daí os enormes papos das gentes dos “gerais”. A falta do iodo incide o “bócio cretinus”, que deforma horrendamente o pescoço e afina a voz.
A ausência de cálcio lhes rouba os dentes cedo e lhes sujeita às frequentes fraturas ósseas na menor queda ou no mais prevenido escorrego.
O único alimento abundante é a polpa amarelada do côco buriti. É o alomento e o veneno ao mesmo tempo. Alimentalhes e, aos poucos, os vai matando com a carga oleaginosa que atira ao fígado. E os infelizes acreditam que a sua pele e olhos amarelos refletem apenas a coloração do buriti. Não reconhecem a insuficiência hepática.
Oscilantes entre a anemia e a icterícia, os homens dos “gerais” formam, sem dúvida, a maior comunidade continental de doentes do fígado.
Morrem cedo, comidos pelas mais vulgares enfermidades. Morrem como bichos, pois como animais silvestres vivem. Descansam em pas. E, talvez, no único lugar onde o requiem tem a sua mais alta significação. No horizonte grandioso dos “gerais”, na sua pobreza até de ruídos, a paz é perfeita. Esta eles já têm em vida, pois lá os latifundiários e feudais não os vão perseguir.
A morte completa, o descanso livrando-os dos vexames da fome, da nudez, da miséria com que atrevessam todo uma existência.
10 - Cadangos.
Vocábulo que se tornou mais vulgar a partir da construção de Brasília, pois foi nessa fase da nova capital que veio a nu a antomia do comércio de braço escravo em nosso país.
O termo “candango” era de uso regional. Para o nordestino, “cadango” é todo o indivíduo que viaja em corroceria de caminhão, excetuando-se os carregadores e ajudantes do veículo. Estes são conhecidos, no Nordeste, por “cassacos” de caminhão.
Aos auto-cargas utilizado para transporte coletivo de retirantes nordestinos denominou-se “pau-de-arara”, e com o tempo, esta expressão abrangeu também os próprios passageiros. Hoje, no Sul do País, “pau-de-arara” não é só o caminhão que transporta, mas, também, os próprios retirantes transportados.
Antes da construção de Brasília já existia o comércio do braço escravo nordestino. Muitos latifundiários dos Estados de São Paulo, Paraná, Goiás e Mato Grosso já desenvolviam essa sombria atividade. Durante anos os caminhões rodaram para o Nordeste brasileiro a fim de aliciar braços para regiões agrícolas de mão-de-obra escassa.
Faziam-no clandestinamente e, para maior segurança, entregavam o negócio a intermediários, capatazes desumanos que se arrogavam direito de vida e de morte sobre o “cadango” e sua família.
A carência de braços no Centro-Oeste se tornou mais aguda com a construção de Brasília.
Os milhares de retirantes que confluiram para Brasília não foram o suficiente para atender o inesperado mercado sedento de braços. Iria se construir, em meses, uma cidade de duzentos mil habitantes. O impacto infra-estrutura haveria de ser violento, trazendo como consequencia imediata, evidentemente, o impacto populacional na área circunvizinha ao novo Distrito Federal.
Surgira assim de maneira clara -- não mais clandestina -- o comércio do braço escravo. O “candango” reaparece, agora “legalizado”.
Não somente caminhões, mas, até modernos ônibus “Mercedes Bensz” de poltronas estofadas e conversíveis, rumaram para o Nordeste, aos agentes, antecipadamente, aliciavam os pobres camponeses. Desmanchou-se em propósitos “humanitários”, os donos de terras, os “coronéis” se prontificavam a “financiar” os seis ou oito mil cruzeiros da passagem de quem quisesse ir “tentar a vida” em Brasília.
Para os camponeses carregados de dívidas, a oferta “generosa” do latifundiário era uma benção ou uma ordem adicionada ao encargo financeiro que lhe iria pesar ao costado. E, arrumando o “matulão”, sobe no ônibus, deixando a esposa com a penca de filhos famintos como garantia da nova dívida que terá de pagar, parceladamente, à medida que o novo patrão for descontando, em folha de pagamento, as promissórias que o infeliz emitira ao latifundiário.
O senhor feudal realiza, aí, negócio altamente rendoso. Recebe de vinte a trinta mil cruzeiros por pessoa fisicamente apta ao trabalho braçal de qualquer natureza, não excluíndo os menores. E, não satisfeito com o lucro do agenciamento, o “coronel”, além disso, extorque no preço da passagem do “cadango”. Este, na sua miséria e ignorância seculares, em nome de Deus, ainda agradece ao “coronel” por lhe ter facilitado a viagem e ao empregador brasiliense por lhe ter reservado algum serviço.
Legalizou-se o comércio do escravo moderno. Reeditou-se, de modo avultado e em proporções jamais vistas, o tráfico de “candangos”. A partir desse momento voltam a atuar os importadores de nordestino com matrizes em Goiás, Mato Grosso, Paraná, São Paulo, onde o exôdo rural se acentua, cada vez mais, com a industrialização e o retardamento da reforma agrária.
Em Mato Grosso, por exemplo, os “paus-de-arara” cheios de “candangos” despejam em todo o percurso da rodovia Brasileira - Acre as centenas de nordestinos, ao preço de vinte mil crezeiros por adulto do sexo masculino e dez por adolescentes e mulheres. E, quando a concorrência é grande, opera-se o leilão enquanto a carga humana andrajosa, humilhada, combalida e massacrada pelos incômodos da viagem de dez dias initerruptosaguarda o fim do pregão, para, depois, “apelar” e seguir para a fazenda do latifundiário.
Ali ele terá um pedaço de terra fértil, ubérrima com a cláusula contratual da “meia” ou da “terça. É o contrato mais promissor e mais seguro.
A maioria dos latifundiários lhes oferecem terra de graça -- o que é um achado para o infeliz camponês ignorante da emboscada que o aguarda.
O “cadango” desmata o terreno agressivo. Cerca-o. Semeia-o sonhando com a fortuna modesta que deseja possuir para, no retorno ao nordeste, se casar ou para buscar o resto dos parentes.
Às vésperas da colheita, entretanto, lhe sobrevém o inesperado: o litígio em termos da fábula grega do lobo e o cordeiro. Expulsam-no da terra. Roubam-lhe a colheita e as benfeiturias. Se resiste, matam-no. Se foge, não escapa ao castigo naquela área que tem, ao norte as comunidades selvagens dos índios bravios do rio das Mortes, Xingu e Tapajós e, ao sul, antolhando-lhe a saída, uma sociedade feudal, desalmada que não desvenda e nem protesta contra os numerosos cemitérios particulares, cujas ossadas, exumam, todos os meses, nas escavações dos garimpos.
11 - Cotovias.
A praça da catedral de Teresina retrata, na sua paisagem humana, a situação de penúria e desamparo em que vive a população do Piauó. É que aquele logradouro se assemelha a uma natural estação rodoviária, onde chegam e de onde partem todos os ônibus que demandam às cidades do interior; estas em pequeno número, pois a rede de transporte coletivo não abrange a maior parte do Estado.
Os andrajos são uma constante na paisagem humana de Teresinha, permanentemente trilhada por pedintes famintos que se acotovelam em torno das barracas que ali exibem uma culinária primitiva.
São demasiado tristes as cenas dessa humilhante passarela. Centenas de milhares que não dispondo de mais de um vestido, após lavá-lo, aguardam, desnudas, dentro d’água, que a roupa estendida na areia seja seca ao sol. Mulheres jovens, outras idosas, a maioria parda ou de cor, rodeadas de filhos, também nus, imergem até o pescoço ao se aproximar a canoa discreta.
Outras, entretanto,não mais se preocupam com o constante esconder de seu corpo. Emergindo da água na exibição dos peitos murchos e braços magros pendurado ao tronco esquelético e batidos pela fome, parecem protestar contra a nudez a que foram jogadas.
E se já não tem medo do legendário “cabeça de cuia” do contista Vitor Gonçalves, com mais coragem ainda agridem os olhos do visitante expondo-lhe ao vivo, mas carnes desprotegidas, a radiografia da sociedade em que vevem.
A um quilômetro da Universidade, da Cúria Metropolitana, da Assembléia Legislativa, do Palácio do Governo do Piauí, se reproduz esse cenário, para muitos só concebível entre as mais atrasadas comunidades africanas.
O Piauí com a sua renda “per capita” que varia de 30 a 40 dólares anuais, é, sem dúvida, uma das mais pobres regiões do mundo. É o subdesenvolvido dentro do subdesenvolvido.
As receitas da quase inexistente rede hospitalar do Piauí são menores do que as dos hospitais veterinários de cavalos, gatos, e cães de raça pertecentes aos ricos do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Mas o Piauí não é só aquele pedaço de terra de forma de um estômago -- estômago faminto -- colocado entre o rio Parnaíba e a serra do Ipiapaba. Piauís, os há em outras regiões do País; na Bahia, Mato Grosso, Goiás, maranhão etc. As “cotoviaaaas”, aos milhares, denunciam a miséria em todo os cursos do São Francisco, Tocantins e centenas de outros rios brasileiros.
E não só nos rios.
Quem viaja a cavalo por esses brasis a fora, e a longa travessia lhe obriga a beber água na primeira choça que encontra, vive o mais curioso, porém invulgar, diálogo:
-- Ó de casa!
-- Ó de fora!
-- Favoreça-me um copo d’água, dona.
-- Pode o senhor mesmo apear e beber, seu homem.
Retomando a estrada, o viajor rumina a consciência por não ter retribuído o favor com assistência à camponesa -- talves enferma --que não pôde atender pessoalmente.
Procura tranquilizá-lo, imediatamente, o guia, assegurando-lhe não se tratar de doença. É que a única veste -- mais tanga do que vestido -- todos os dias empresta à filha, que ajuda o pai na roça distante.
A miséria nessa regiões impõe ao camponês uma da duas pontas do dilema: fome ou nudez.
E se as mulheres camponesa escapam à nudez, graças aos farrapos com que cobrem as partes íntimas do corpo, não se furtam dela, entretanto, os filhos miserando que permanecem desnudos até a adolescência.
Ao longo do tabuleiro escasso de frutas alimentícias, o viajante com a sensibilidade ainda ferida, se assusta com o vulto que inopinadamente, em carreira dasabala, cruza a vegetação esparsa, para esconder o corpo na moita mais espessa que encontra.
Naquele momento um ser humano decido por uma das pontas do dilema da miséria; a foem, e em contraposição às criaturas que preferem a nudez e compulsóriamente a exibem nas margens do Parnaíba -- as “cotoviass”.
Apesar disso, não é aquela praça da capital a janela pela qual se pode ver a situação de desamparo e de meséria a que foram atirado as gentes do Piauí. A praça do Mercado, aliada às margens do Rio Parnaíba, se prestam bem o cenário cinemascópico mais revoltante do pauperrimo.
O retrato de subdesenvolvimento agrava as linha já tão acentuadas, à medida que o visitante descamba da praça do Mercado para a beira do rio, onde a miséria realiza a sua apoteose.
Lá se acham as “cotovias, nome que é dado às milhares de criaturas que lavam roupas nas águas do rioParnaíba e o se tributário, o rio Poti. As “cotovias” -- e só o pauperrimo o justificaria -- são servidas ao visitante como uma das atrações turísticas locais. Pois não falta quem à guisa de “cicerone”, se ofereça para mostrar ao fosrateiro a originalidade trágica do que admitem pitorescos - mulheres nuas dentro da água transparente, enquanto a roupa única está secando ao sol.
Logo mais a canoa desliza nas águas do “velho monge de barbas brancas” -- do poeta Da Costa e Slva, para o deleite do turista.
12 - Flagelados.
São, na realidade, milhões os que formam a população rural da regiões agreste e sertão do nordeste brasileiro. Uns sofrem o flagelo da fome; outros o das enfermidades sociais. É um flagelo que decorre do outro. A subnutrição que atinge a todos -- a fome endêmica e não raro epidêmica -- é uma constante no quadro econômico social daquela região.
Basta que durante o inverno (o inverno -- estação chuvosa -- do interior vai de outubro a abril) se desorganizem as chuvas para, imediata e tragicamente, aflorar, de modo gritante, o estigma da fome que se generaliza por todos os lares camponeses.
E a esperança de uma colheita já reduzida se transmuda em pânico. À espera das chuvas que não chega a tempo de socorrer-lhe o milho “bonecando” e o feijão raquítico, o campo vendeu tudo o que possuía; do jumento ao papagaio; da espingarda “pica-pau” ao “bodoque” de matar “rolinhas”. Não tem mais nada o que vender. Resta-lhe, somente, o desespero com que mobiliza mulher e filhos para pedir esmolas nos povoados e nas estradas poeirentas. Saem de todos os cantos, boqueirões e serras; de todos os taboleiros e “caatingas”; de todos os “pés de serra” e “cafundós”. Saem aos milhares com mulheres, filhos e netos e vão pelos caminhos arrancando as raízes do umbuzeiro para matar a sede; quemando as raizes de certas xerófilas para matar a fome. E perambulam processionalmente, estrada a fora, em busca de alimento. Aqui e acolá disputam com os urubus e os “carcarás” algum animal morto e em véspera de putrefação.
Conflui a massa enorme de flagelados para o povoado ou cidade, onde, ao certo, no dia de feira, há possibilidades de conseguir esmolas em dinheiro ou em víveres. Por onde passa deixa sempre o rastro de cruzes de crianças que não suportaram a fome, o sol calcinante e a dolorosa caminhada.
O comerciante de beira de estrada, precavido, fecha as portas da bodega pobre. Teme assalto e reza em ação de graça por não ter chegado aquela situaçao dorida.
A feira do lugarejo a partir desse momento se avulta. Redobra-lhe o movimento pelo concusro de milhares de famintos andrajosos. Alguns flegelados expoem e oferecem os últimos cacos que lhe sobra, os últimos “teréns” que possuem. Outros se prontificam a fazer algum serviço da feira: carreto das compras; “arrumação” de cargas e a empregoar as mercadorias. São poucos. O grosso dos flagelados, na realidade, se espalha pela cidade e pela feira a pedir esmolas.
Os filhos adolescentes ou praticam pequenos furtos ou disputam aos murros, aos tapas e aos empurrões, as cascas de melancias, de banana, “sabugo” de milho -- restos de frutas que o comprador insensível atira ao chão.
As autoridades locais e os homens ricos se apavoram e anunciam ao governo a ameaça que pesa sobre a ordem pública e sobre suas fortunas. Repetem-se, como que estereotipadas, essas menssagens, às centenas, em todos os municípios do Nordeste.
E os jornais do todo o País estampam em epígrafe de primeira página: “Fome no Nordesta”. Apelam para a consciência dos governantes e para o espírito cristão das classes dominantes. Estes, por sua vez, encontram na tragédia da seca a certeza de um lugar no céu, o que julgam adquirir com as esmolas dadas aos flagelados.
Mais do que isso ainda: vêem na tragédia os promórdios de levantes armados. E acodem, de pronto, para que alguma fagulha não incendeio os milhões de consciências do que, compelidos pela fome, invadem pacificamente as cidades.
Em 1953 e 1952 as invasões das cidades de Ouricuri, São Bento, Arcoverde, Afogados, Buique, em Pernambuco; Cabeceiros e Campina Grande, na Parnaíba, somaram, em cada lugar, cifras superiores a dois mil famintos.
Os flagelados tanto são em permanente aspectos da paisagem social do Nordeste que já fizeram surgir os “industriais” das secas. Muitos destes vivem de gorda verbas destinadas à construção de açudes e estradas; outros se aproveitam dos cargos para vender os víveres que lhes foram entregues para distribuição gratuíta.
Com os primeiro pingos de chuva os flagelados retornam à roça e os casebres meseráveis. Sempre reduzidos porque uns morreram e outros se escravizaram aos “biscates” e à mendicância das cidades.
Voltaram a gleba que não lhe pertence.Mas voltam porque lá enterraram partes do seus entes queridos e derramaram o suor e o sangue de uma vida atribulada.
13 - Retirantes.
De movimentos migratórios internos, o Brasil, nestes últimos cinquenta anos, é um dos mais acentuados que o mundo conhece. Supera aquele enorme deslocamento de massas com que se povoaram, nos dois últimos séculos, o centro-oeste norte-americano.
O êxodo das populações nordestinas para o sul, oeste e extremo norte do Brasil marca tragicamente um forte traço em nossa história.
A sangria populacional do chamado “Polígono das Secas” e regiões circunjacentes apresenta indícios que vão de dez a vinte mil pessoas por ano. Há quase um século que ela se desenvolve regular e acentuadamente, de tal maneira que em outras regiões do País tem surgido comunidade tipicamente nordestinas, no que diz respeito aos aspectos étnicos, costumes, folclore, culinária, etc...
Já no fim do século passado toda uma imensa área amazônica --o atual Estado do Acre -- era habitado quase exclusivamente por retirantes nordestino e, nos últimos decênios, a colonização de Goiás, Mato Grosso e Norte do Paraná contou com avultados contigentes dos “baianos” -- nome que, no sul, é dado a todo retirante nordestino.
Dentre muitas cidades de população originariamente nordestina, destacam-se: Caxias -- Estado do Rio; São Miguel -- São Paulo; Poxoreu, Guiratinga e Tesouro -- Mato Grosso; Pirapora e Teófilo Otoni - Minas Gerais; Formosa, Manibaí e outros em Goiás.
Este êxodo tem origem no regime semi feudal da agricultura nordestina, cujas consequências se agravam com os estios prolongados, a que, acultando aquela causa principal, as classes dominantes tacham dramaticamente se seca. Estas, ao afirmá-lo, nem se pejam ante a constatação de que o êxodo atinge também as regiões úmidas do litoral e dos brejos perenes.
Com efeito, a escassez de chuvas no seu período normal se retifica com as centenas de grandes açudes -- alguns com mais volume do que a baía de Guanabara -- contruídos no nordeste, a cujas áreas de regadio, desgraçadamente monopolizadas pelas pastagens dos latifúndiós, não têm acesso os camponeses da agricultura de subsistência.
Resulta disso o vergonhoso fenômeno do êxodo, deslocado, por todos os meios, centenas de milhares de nordestinos.
Aproveitando a situação de penúria da sua população rural, até o Governo da República, direta ou indiretamente, tem patrocinado a sangria populacional do Nordeste.
Durante a Guerra, sepultou mais de cinquenta mil nordestinos no “inferno Verde” da Amazônia sob o pretexto de conseguir borracha para a indústria iangue. Poucos foram os sobreviventes da “guerra da borracha”. E esses poucos, ainda hoje, com mulher e filhos, pedem esmolas em Belém do Pará e Manaus.
Ultimamente, a construção de Brasília foi o chamariz de dezenas de retirantes, enquanto que o Governo Federal, através da SUDENE, procura esvaziar o balão revolucionário do Nordeste, estiolando a sua população camponesa, transferindo-a para o deserto e insalubre bolsão maranhense.
No fundo se inverte o conceito da Reforma Agrária. Ao invés de se dar terra ao homem, da-se homem à terra ... deserta e hostil.
Sobre os retirantes há uma literatura completa que vai de “À margem da História”, de Euclides da Cunha, a “Serra Vermelha”, de Jorge Amado. E, entretanto, uma literatura de sangue, de túmulo de criancinhas, de “escravos brancos”, de sacrifícios inumanos e de opressão.
Antes de 1943, quando não existia ligações ferroviárias e rodoviárias ente o Rio de Janeiro e Salvador, esse grossos exércitos de famintos e miseráveis se retiravam por via marítima e pela pachorrenta navegação fluvial de São Francisco, que exigia um mês de viagem initerrupta de Pernambuco ao Norte de Minas. Reeditam-se os navios negreiros; ontem, de escravos negros; depois, de escravos brancos. Milhares sucumbiram e ainda sucumbem em busca da Canaã.
E até hoje o êxodo prossegue hediondo em “paus-de-arara” que, na raro, senão quase sempres, se precipitam nos abismos das rodovias fulminando as última esperanças dos retirantes.
Quem vive em Londrina e Maringá, no Paraná; em Marília, em São Paulo, Poxoréu e Guiratinga, no Mato Grosso; em São Luis de Montes Belo, Rio Verde e Moneiros, em Goiás; Brajos Paraibano,Codó de Pedreiras, no Maranhão, conhece inúmeras famílias nordestinas que, a pé -- notam bem -- a pé, quatrocentos, seiscentos ou oitocentas léguas em demanda de regiões promissoras.
O retirante é um herói ainda inglório. Ele desbravou e continua desbravando os rincões mais inacessíveis, por serem os mais bravios.
Nos sopés das serras dos Parecis, do Roncador, do Caiapó do Tumucumaque e Paraima, nas margens palustre dos rios amazônicos, nos pantanais do Mato Grosso e Rondônia; na última quebrada dos regatos da fronteira; no meio dos índios -- não será preciso rebuscá-lo -- lá se encontra o retirante -- o camponês nordestino, banido pelo latifundio. É corajoso, forte e consciente das causas reais da sua miséria.
E quando ouve falar dos movimentos camponeses do Nordeste ele os sente dentro de si, poruqe é a sua própria luta -- a luta contra os que, um dia, o expulsaram de terra longínqua.