GÊNERO E PÓS-MODERNIDADE
Grande parte dos críticos da pós-modernidade gastam sua retórica em camuflar seja um “saudosismo”, um “espanto-horror”, uma “descrição” da “vida pós-moderna”, assim como desfiar conceitos após conceitos que, no conjunto, parecem abrir a compreensão quando somente demonstram o apavoramento dos seus autores, como se por traz do “agora” houvesse um “mundo melhor”, modelo e olho divino. Quem sabe eles não estão “esquecidos” da dimensão ôntica, social, íntima, interrelacional irreversível, para o bem e/ou para o mal, para o neutro e/ou para o nada do “real”. Continuam a argumentar “como se” a pós-modernidade fosse uma deformação de algo anterior mais perfeito, como se fosse uma “onda passageira”, mas onda que reformatou e reformata intensamente e profundamente em direção a outras formas de existência social, íntima e interpessoal. Não é algo ligado somente ao “consumismo”, mas que atinge e vem do trançado inteiro das redes virtuais do real. Não diz mais respeito ao que, ao como, com que freqüência se descarta ou se produz as coisas, mas ao “cardume” como um todo, carne-alma, passado-presente, fluxos-refluxos-influxos do viver.
Nada jamais foi inteiro, intacto, puro, intocado: a formatação/reformatação é fluxo contínuo, mesmo havendo momentos de estabilização. Não só tudo se desmanchou no ar como aquilo que se desmanchou, derreteu, desconjuntou, se liquefez e evolou foram os “fundamentos tradicionais mais sólidos”, mais “seguros”, que, sem a “nossa” presença, voltam ao caos. Natureza, corpo, sexo, sociedade, humanidade, realidade, língua, pátria, identidade, vínculos, se reprogramam, se redesfazem, se desfazem, se desdizem, se negam, se misturam, se vendem, se escravizam, se dão em inesperadas transversais mutantes e instáveis, que não são somente “suportes” do “universo do consumo”, mas que o atravessa, sendo o “produtivismo” ou o “consumismo” apenas momentos do seu distender e não o contrário.
Uma crítica, uma descrição da “pós-modernidade” não enfrenta seu aspecto mais radical: a dissolução definitiva de “materialidades”, “valores”, “relações”, “posições”, “sentimentos”, “razões”, “políticas” que por momentos se cristalizam em conjuntos relativamente estáveis, atingindo diretamente o “tempo”. Uma reflexão “genealógica” ou “arqueológica” não pode mais ser feita numa imaginária espessura temporal (o engodo da historia), mas na compressão virtual enquanto imediato do presente (a espessura do tempo enfrentada enquanto imediato refaz um enfrentamento político, ético, moral sem perder os passados como compreensão viva do agora). Nessa compressão, “mercado” e “consumismo” perdem a força de comando, de foco diluidor para se tornarem elementos do fluxo. No compacto imediato, o fugaz, o passageiro só se sustentam enquanto “comparação” e “saudosismo”.
A pós-modernidade, nessa perspectiva, deve ser enfrentada em sua dimensão ontológica, onde, para o presente artigo, o “gênero” enquanto “realidade” e conceito se liga a instâncias dissolvidas ou em franca dissolução de “outro tempo”, o que não exclui as contradições, mas exige outra perspectiva de enfrentamento. Os amores, os gêneros, as identidades, os corpos, as realidades magmáticas, líquidas ou gasosas não voltarão jamais a ser cristalizadas, sólidas, estáveis, se é que alguma vez foram assim em suas formas de estar.
Para continuarmos falando com propriedade em “macho” e “fêmea”, “homem” e “mulher” seria necessário que ainda aceitássemos e vivêssemos num universo social pretensamente “sólido”, numa sociedade que para seus “teóricos” (a “solidez” advém do lócus do “teórico”) seja estável, numa natureza fundamento, funções e papeis tradicionais em seu exercício de representação fundada em comportamentos, lógicas e saberes de conhecimento comum e aceito.
A “questão de gênero” só se poria como problema filosófico, político, policial, biológico, social, histórico, num determinado ambiente, num quadro onde é possível detectar cristalizadas em comportamento, corpo, e desejo, formas estabilizadas de viver ou formas híbridas tanto “fora” quanto “dentro” dos lócus de dispersão de consumismo.
Fora desse quadro, num “ambiente pós-moderno”, os elementos se desmancham, se misturam, se multiplicam transversalizados, invertidos e instáveis: cada corpo agora é “tudo”, cristaliza os desejos mais díspares em corpos que se refazem conforme essas cristalizações.
“Homem” e “mulher” existiam em sociedades ocidentais “tradicionais”, ou ainda existem como fósseis e resistências nas desmesuradas sopas de todos os corpos nas cosmópoles e metrópoles, sem contar com “comunidades periféricas” que, por não compartilharem ainda a dissolução de todos os limites exigidos pelo consumismo, vão aos poucos, principalmente via “mídia” (correntes de saberes, informações, modas, estilos, resignificações), apresentando fios, fiapos, traços, comportamentos, quase redes em suas vidas-corpos que vão se tornando híbridos.
O teatro onde esses “papeis” (que eram divinos e terminaram “biológicos” e “sociais”) eram representados desapareceu completamente de “lugares de difusão” da ocidentalidade (as antigas “metrópoles” da historiografia colonial: “centro” e “periferia” enquanto mídia e mercado, difusão e consumo). Não somente os corpos se multiplicaram, não coincidindo mais com o “anatômico” (que se tornou apenas um artefato a mais), mas os desejos deixaram de se cristalizar em papeis tradicionais, assim como em corpos tradicionais. Somente enquanto fetiche um “antigo” corpo de “mulher” age e sente “femininamente” (desejo dirigido para ser “feminino” por exigência da configuração exigida no momento, podendo em seguida se desfazer); somente existe a “masculinidade” num corpo de “homem”, excluindo um papel antigo (ser marido, ter um lar, ser pai, provedor), na dormência da reprodução ou na perversão: sem serem “desvios” ou “reenvios” os velhos papeis não encontram mais os velhos corpos e seus costumeiros desejos, artes, artifícios, gestos, desempenhos, expectativas e funções: a antiga imagem ou desculpa de “uma mulher num corpo de homem” ou “um homem num corpo de mulher” se tornou inaplicável onde cada corpo é ao mesmo tempo intercessão e intersecção flexível de múltiplos corpos, desejos, gozos, anseios, sonhos.
Os “antigos” corpos se tornaram apenas mais um dos “instrumentos e apetrechos sexuais” (inclusive suas “maneiras de ser” podem entrar como um dos acessórios de estimulo e redefinição: o corpo é, tornou-se, um “sex shopping”), uma das possibilidades de uso, de excitação, de gozo, um dos artifícios múltiplos do produto, uma forma que precisa se complementar com outros produtos para funcionar plenamente: apenas ao se pôr em fluxo, em indeterminação, em complementaridade e polidisposição pode o corpo existir nesse ambiente de cosmópole, difusor não mais apenas de modas, mas de modos de existência.
Esse “corpo cosmopolita” não é ainda hegemônico (sonho de todos os matizes de fascismo e mercado), no entanto ele inicia nos “centros difusores” (moda-mídia), nos eixos de produção de consumismo enquanto pratica e exercício de ser. Traços desse corpo já aparecem em todo o “globo ocidental”, mesmo sem ser dominante e enfrentar tanto resistências violentas quanto “adesões genéticas”, “naturais”, “filosóficas”: ele é, agora, o corpo do consumismo com todos os comportamentos necessários a esse “exercício”.
Nesse corpo pós-moderno as “políticas de gênero” são cada vez mais deslocadas para os “lugares antigos”, para os “elementos resistentes”, para os grandes e agudos enclaves de pobreza, miséria e resistência. Nesse mesmo processo se encontram os homossexualismos, a adolescência, a criança, as raças, as línguas, as nacionalidades.
As forças desagregadoras vindo de dentro para fora e de fora para dentro atingem as “unidades tradicionais”: o consumidor não é, não mais será, macho ou fêmea, “negro”, “amarelo”, “branco”, “mulato”, “moço” ou “velho”, “criança” ou “adulto”, “humano” ou “animal”: todos os entraves para o “livre fluxo” já caíram em muitos espaços e se disseminam como onda leve e forte, precisando somente de tempo.
Não somente todos os produtos que envelhecem são jogados no lixo e podem ser reciclados, mas as identidades, os gêneros, as estratégias de vida, o corpo. As questões de gênero desaparecem a partir desses lócus de dissolução intimamente relacionados com as formas de produção, difusão e consumo. Somente nas “antigas periferias” é que as políticas de gênero, de raça, de idade podem ainda funcionar ou representarem algo.
Os papéis, as performances se misturam, se reespelham, tornam-se ecos de si (como era ou achava-se que era) e do outro (também como expectativa): “mãe” e “pai”, quando desligados de “macho”, “fêmea” e “casal” reinventa,-se tanto como imitação quanto com outras formas de relacionamento surgidas com as possíveis combinações. “Parir” não caracteriza mais “mulher”, “fêmea”, “mãe”, “feminilidade” ou os “desempenhos esperados”: “mãe” (ou “pai”) é “aquilo” que exerce esporadicamente, pontualmente ou por espaços de tempo essa função, sem que ela exija determinado corpo, sem que seja obrigatoriamente de “alguém”: ela pode e é exercida por empregados, por entidades, por empresas, por instituições; por “machos”, “fêmeas”, “travestis”, “lésbicas” (abarcando todas as performances possíveis e intercambiáveis: o “macho” pode ser a “fêmea” ou a “lésbica” e vice-versa: condensar-se somente num desejo-corpo, para o frenesi do consumismo, é um desperdício).
O exercício de cada “papel” não define mais o “autor”, o “ator” nem seus corpos. Todos os papéis são intercambiáveis, substituíveis, reciclados, reincenados hora a hora, dependendo das exigências da “comunidade de destino”, do mercado, dos fluxos do desejo, das interações e suas requisições. A infinidade dos sexos, dos desejos se encontram “naquilo” que apenas juridicamente mantém uma identidade reconhecível.
Somente nas “instâncias de poder” o corpo, o sexo, a cor, a nacionalidade devem permanecer sem ambigüidade: o domínio não pode, ainda, ser equivalente as redes de fluxo indeterminado próprias do universo sempre em expansão do consumismo.
O desaparecimento e reformatação desses “papéis tradicionais” (“materialidades” divinas, sociais, biológicas permanentes) não é um momento passageiro da ocidentalidade ou erro a ser consertado (por uma revolução, pela educação, pela arte, pelo “progresso”). Uma “volta ao passado”, ao “estado de coisas anterior” só é ainda possível onde as novas formatações são apenas traços caricatos dos focos de irradiação ou onde esses papéis ainda se exercem plenamente, mesmo sendo bombardeados diuturnamente. Homem/Mulher, Macho/Fêmea só sobrevivem como resistências precárias e muitas vezes hipócritas. O que começou como “corpo libertino” (a vitória de corpo sadeano sobre outras formas de corpo: corpo disposto a qualquer outro corpo, vivo ou morto) agora se tornou mais uma forma de viver e ser. Não há solução porque não há problema. As questões de gênero são aplicáveis somente onde os componentes que lhe possibilitaram razão e eficácia ainda vigoram. “Gênero” e “espécie” sumiram em corpo e função: o que permanece são programas em sobrecarga, fluxos em cristalizações operacionais.
O arsenal teórico constituído e posto a funcionar para pensar principalmente a “Mulher”, o “Homem” (seus movimentos e relações) ou se redefine, reconstituindo seus fundamentos, deixando de ser uma reflexão sobre “gênero”, passando a pensar as novas “redes sexuais”, sem o peso das Biologias, das Sociologias, Psicologias e Histórias, ou perderá essas configurações quase ainda no berço. Continuará, como continua, mantendo “realidades”, “contradições”, “problemas” apenas na teoria: é somente no espelho que essas medusas são enfrentadas e mortas.
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