O DESAFIO DA INTERCULTURALIDADE[1]
DEPTO. DE LETRAS-UFRO
“Abre los ojos, deseada patria, y mira que vuelve a ti Sancho Panza, tu hijo, sino muy rico, bien azotado. Abre los brazos y recibe también tu hijo don Quijote, que si viene vencido de los brazos ajenos, viene vencedor de sí mismo”.[2]
Cervantes: El Quijote
De um tempo para cá, vimos observando, tanto nas rodas de conversa, como nos meios de comunicação, um crescimento quantitativo no uso do termo “ética”. A freqüência do vocábulo na linguagem falada e escrita pode ser sintoma de várias deficiências: falta de autenticidade na vida individual, anomalia na vivência social e no exercício do poder, ou, na área do conhecimento, um reclamo de respeito pela arquitetura científica. Um saber fragmentado sem um princípio que lhe dê unidade oculta que a cultura há de estar a serviço da construção social.
O tema “Ética na pesquisa: o desafio da interculturalidade” sugere a existência de possíveis dificuldades tanto no plano intersubjetivo, como no âmbito dos resultados e de sua aplicação. O poder, gerado pelo conhecimento científico, necessita revestir-se de moralidade para que suas descobertas possam ser acolhidas socialmente.
Do ponto de vista acadêmico, a ética é conceituada como Filosofia Moral. Todas as culturas estabelecem visões de realidade, criam valores, prioridades e estabelecem modos de comportamento, isto é, elaboram códigos de moralidade. A ética, enquanto disciplina, teria como função refletir sobre os diversos códigos e os problemas morais que deles derivam, assinalando não o que devemos fazer, mas justificando, com argumentos, o preceito moral que orienta a nossa conduta.
Devido à pluralidade de cosmovisões, as relações interculturais abrem espaços que potencialmente podem ser tanto conflitivos quanto fontes preciosas de criatividade. No início dos tempos modernos, a inquisição movida por princípios dogmáticos promoveu a caça às bruxas, já os gregos, na passagem do pensamento mítico para a reflexão filosófica, souberam relativizar determinados valores, transformando suas experiências interculturais em caminhos que levaram ao surgimento do conhecimento científico. Os conceitos universais dificultam a compreensão da diversidade, daí a necessidade de elaborar conceitos que possam abrir os olhos do pesquisador à experiência própria e alheia.
Num encontro de povos indígenas realizado em Vilhena, no início da década dos noventa, ouvimos de um índio que “Deus era o olho grande”. Passado o primeiro momento de desconcerto, entendemos que ele estava querendo nos dizer que Deus possuía todas as perspectivas. Não parece ser outro o ensinamento da teologia católica quando atribui a Deus os predicados de onisciente e onipresente. Os seres humanos diferenciam-se de Deus porque para o homem a realidade se oferece em forma de perspectiva, não de totalidade. A consciência deste limite deveria incentivar o pesquisador a abrir os braços para acolher os pontos de vista de outras culturas que, se um dia foram vencidas por braços alheios, na volta de sua dor e fracasso, presenteiam-nos com profundas lições de humanidade.
No fundo de toda aspiração humana encontra-se a tendência a “ser como Deus”. Talvez esse desejo de superioridade, também a necessidade de se ter pontos claros de referência, induzam-nos a tomar como bons apenas os costumes dos outros, quando coincidem com os nossos, e a ser intolerantes com as diferenças. Sabemos que a tendência a relativizar tudo, tampouco está isenta de perigos. Camus[3], ao se dar conta da finitude da existência, cai no pessimismo e passa a perceber a vida como um absurdo, já Sartre a vê como uma paixão inútil. Entre o dogmatismo etnocêntrico e o pessimismo relativista, cremos que é possível pensar num projeto plural de construção da condição humana.
Quando falamos de reflexão sobre os diversos códigos morais não nos referirmos exclusivamente aos discursos hegemônicos de inspiração helênica ou eurocêntrica. A atitude ética do pesquisador social, ao propor como objeto de estudo realidades humanas marginalizadas, tem de vencer as fronteiras do seu espaço cultural e romper com determinadas ataduras das culturas dominantes. A palavra silenciosa dos sem voz também é portadora de um modelo de humanidade, tanto é assim que eles, apesar de oprimidos e humilhados pela cultura dominante, conseguem dar significado à sua própria experiência.
O “I Fórum de educação indígena de Rondônia”, do qual estamos participando por meio da exposição dos nossos pontos de vista nesta mesa redonda, assinala um marco importante para a nossa reflexão. Constatamos que os povos originários desta terra, hoje, não dispõem de força para fazer valer o seu discurso. A caminhada agressiva dos povos europeus, a partir do século XVI, os dizimou e reduziu seu espaço geográfico a pequenos territórios submetidos às políticas dos estados nacionais. A prática do “bem” numa ótica eurocêntrica transformou-se, para estas comunidades, num “mal”, por ter convertido o seu senhorio em sombria dependência. Assim, a adoção desta perspectiva histórica nos ajuda a tomar consciência de que no atual sistema de etnicidade late oculto um clamor de injustiça. Portanto, ao meditarmos sobre a “ética na pesquisa”, percebemos que para analisar os “desafios éticos da interculturalidade” não nos eram totalmente válidos os ensinamentos surgidos dos grandes sistemas filosóficos. Necessitávamos de um novo critério de validade discursiva que tomasse em conta o ponto de vista das sociedades vitimadas e que reconhecesse nelas a sua capacidade de sujeitos históricos.
Adotar como referência ética a vítima, não apenas enriquece o trabalho de campo, em cujo cenário, de outro lado, ingressa-se por meio de um pacto implícito que deve ser respeitado, mas também questiona o enfoque dado, com freqüência, às ciências humanas.
A ciência, em princípio, deveria ser uma atividade humana direcionada para a procura da verdade, portanto, para o conhecimento libertador. Na prática, essa verdade tem coincidido muito com os interesses do poder, prestando um bom serviço à manutenção da ordem estabelecida. Esta submissão do saber ao poder já a encontramos na primeira descrição etnográfica sobre a terra de Santa Cruz, feita por Pero Vaz de Caminha, dirigida ao rei de Portugal. Ele narra o que “nesta terra vi”, falando de “conversão” dos índios ao cristianismo e o “desejo de Vossa Alteza”. Assim, o conhecimento dos “usos e costumes” dos nativos tem como fim “amansá-los e apaziguá-los”. Essa interpretação dos gestos e costumes dos ameríndios foi feita de acordo com os interesses portugueses.
Todo homem ao nascer está submetido à escravidão da ignorância. A liberdade é um bem a ser conquistado pelo uso da razão solidária e comprometida. Conduzidos pela estrela do saber emancipador, percebemos que o valor irrenunciável das ciências sociais reside em voltar-se para a compreensão desse mundo humano, ajudando, por meio da análise e da crítica, a formar homens e sociedades que possam ser senhores do seu destino.
O antropólogo social e cultural, para elaborar o seu conhecimento, tem de aprender a ver o mundo como o vêem aqueles que, pertencendo a uma outra cultura, são seu objeto de estudo. É bom lembrar que mudar de ponto de vista não significa enveredar pelos caminhos da conversão, mas, como ensina a melhor tradição antropológica, assumir uma compreensão comprometida.
Insistimos que as situações e as experiências vividas nas diversas culturas são diferentes, porque cada uma delas tem sua própria concepção do homem e do universo, do tempo e do espaço, da pessoa e da sociedade, da vida e da morte... mas, nem por isso se há de ir necessariamente para o anarquismo ético, pois em todas elas existe a aspiração à liberdade e a dignificar o ser humano. O esforço do pesquisador direciona-se para estudar essa particular maneira de fazer e pensar preservando a sua identidade. Apesar dos caminhos serem diferentes, as aspirações últimas são as mesmas. O conhecimento adquirido na comparação das culturas há de estar a serviço, sem a pretensão de impor, desse projeto de dignidade e de liberdade inerente a toda cultura. Isto é o que honra e dá sentido a um trabalho de pesquisa, e por isso, como diria Dom Quixote, merece a pena lutar.
O desenvolvimento de uma pesquisa com populações marginalizadas ou oprimidas, com o único propósito de satisfazer exigências ou vaidades acadêmicas, parece-nos um propósito mesquinho, comparado com o desconforto que se pode causar à comunidade. O estudo das populações sofridas tem de contribuir para descobrir os mecanismos que criam dependência e incentivar uma educação que possibilite o surgimento de agentes fiéis a seu povo - ao modo da comunidade interpretar a realidade -, firmes, criativos e portadores de esperança. Romper esse desejo seria rasgar a história, diminuir a moral e contribuir para apagar a esperança do futuro.
Ao entrar no campo de trabalho, cria-se de maneira implícita um certo pacto de amizade entre o pesquisador e a comunidade. Nas tradições míticas pertencentes a distintos povos, temos observado que a ruptura dos laços de amizade traz sempre graves conseqüências, não apenas no plano pessoal, mas também com implicações muito sérias no coletivo, pois, o ser do ameríndio faz-se pela participação na comunidade. A base da amizade está amparada no reconhecimento da igualdade por ser vista a terra como mãe da humanidade.
O profissional, como assina-la Paulo Freire, antes de sê-lo, é um homem. É a partir de contextos histórico-sociais concretos que vamos, no dia a dia, construindo através das relações inter-subjetivas o nosso próprio eu. A autenticidade da pessoa que pesquisa há de estar animada pelo amor e pelo respeito à diversidade, ao outro. As culturas ameríndias têm muito a nos ensinar, particularmente no que diz respeito ao reconhecimento da igualdade entre as pessoas e o amor à terra; para isso, temos de aprender a olhar de outra maneira. A raiz do nosso modo de ser, da nossa atitude ética, assenta-se no ato de uma vontade que deseja compreender e ser compreendida. Partindo desta reflexão, Carlos Díaz ensina que a moral inicia no rosto do outro; assim sendo, o desafio ético do profissional somente pode ser o compromisso solidário com o homem concreto, no caso do pesquisador, com o seu grupo de estudo.
Notas
[1] Esta conferência foi proferida numa mesa redonda por ocasião do “I Fórum de Educação Indígena de Rondônia”, realizado em novembro de 2002.
[2] “Abre os olhos, desejada pátria, e olha que volta para ti Sancho Panza, teu filho, senão muito rico, bem castigado. Abre os braços e recebe também teu filho Dom Quixote, que se vem vencido dos braços alheios, vem vencedor de si mesmo”.
[3] Filósofo francês, nascido em 1903 na Argélia. Conhecido por seus romances e ensaios filosóficos. Em 1957 recebeu o prêmio Nobel de literatura. Lutou toda a sua vida contra todas as formas de opressão e injustiça.
BIBLIOGRAFIA
CAMINHA, P.V. de. A carta de Pero Vaz de Caminha. Comentários e notas de Douglas Tufano. São Paulo: Moderna, 1999.
CORTINA, Adela e MARTINEZ, Emílio. Ética. Madrid: Akal,1996.
DÍAZ, Carlos. Yo quiero. Salamanca: Editorial San Esteban, 1991.
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização. Petrópolis: Vozes, 2002.
FERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Leopoldo J. A Gratuidade na ética de Ortega y Gasset. São Paulo: Annablume/Riomar, 2001.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SILVA, Aracy Lopes da. Índios. São Paulo: Ática, 1988.
TAYLOR, S.J.. Introducción a los métodos cualitativos de investigación. Barcelona Ediciones Paidos, 1994.