NÚCLEO DE ESTUDOS EM HISTÓRIA ORAL - USP
I – (Re)criação de um espaço público*
A questão público e privado tem sido amplamente discutida no contexto político atual do neoliberalismo. As inúmeras privatizações das empresas estatais que ocorreram nos últimos cinco anos da história brasileira, sem dúvida, aqueceram essas discussões.
As decisões que determinaram e estão determinando a vida social foram e são tomadas em âmbito privado. A “conta” será enviada à sociedade, mas à ela não é dado o direito ao debate público de tais questões. A relação Estado-sociedade não está fundada em bases democráticas, portanto hoje se impõe a necessidade de se disputar um espaço público para discussão de assuntos públicos, para que possa ser tirada das sombras dos gabinetes trancados, decisões que devem ser coletivas.
A não transparência acaba sendo argumento legítimo para a estabilidade e governabilidade do Estado. Há uma disseminação da técnica como modo de governar. Com isso não existe mais crítica. Tudo parece plausível e apresenta-se como a única opção. Ou ainda como pura contingência. Resultado dessa estratégia é a não formação do cidadão ciente de seus direitos e deveres o que prejudica o processo democrático.
Nas palavras de Marilena Chaui[1], vivemos sob um governo despótico. Esse “déspota” aparece a medida em que separa-se ética e política e personaliza-se as qualidades dos governantes. A “arte” de governar passa a ser despolitizar o cidadão. A virtude democrática política passa a se transformar. A ética torna-se moral privada e a política, exercício técnico.
De modo geral o governo não consegue lidar com a idéia de conflito e a ação popular é tida como agente instabilizador do poder. Desta forma toda e qualquer oposição tende a ser eliminada, não pelo uso da força, mas pelo simples não ouvir. E é aí, no seio da democracia que se instala, segundo Chauí, o déspota disfarçado, que eleito pelo voto democrático se apropria do espaço público e personalizando o poder.
Sob outro ponto de vista, mas abordando o mesmo tema, Francisco de Oliveira constrói sua argumentação dizendo que os regimes democráticos “revelam-se pastiches dos regimes ditatoriais [...] tentam apagar os últimos vestígios de independência e autonomia, numa espécie da cura pelo veneno” [2]. Assim as questões são postas de lado antes mesmo de serem discutidas. Há um encolhimento da esfera pública com a regulação do regime. A confecção de um Estado mínimo cria uma política pública que se resume a caridade e assistência, prestando-se mais ao clientelismo utilitário e à absorção de tensões do que ao enfrentamento efetivo dos problemas.[3]
Desse fato advém a importância da luta política da republicização do mundo privado, posto que hoje o fundo público passa a servir apenas ao capital. Essa luta é o emblema de grupos que se unem e se expressam não pela estratégia, mas fazem dos seus interesses particulares, públicos retomando o diálogo e fazendo com que a ação seja pública.
Nesse momento é possível aproximarmos o pensamento de Oliveira e de Rancière a medida em que o segundo acredita que a dominação se dá quando governantes se fazem de surdos. É o não ouvir, ignorando o que é falado e reivindicado por movimentos sociais, que faz com que a conversa entre Estado e sociedade silencie-se. Retomar a fala é o que tem sido feito por parte da luta de movimentos sociais como o Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra.
Este contexto de não entendimento mutuo distingui-se do modelo proposto por Habermas, que acredita em uma negociação em que Estado e cidadãos partam de pressupostos baseados na razão. Expressando-se por meio de um diálogo no qual as partes interessadas devem chegar a uma idéia de consenso que seja satisfatória para ambas. O acordo comunicativo, fruto da interação desses dois sujeitos, deve ser o objetivo primeiro dessa conversa, e para isso todos devem estar preparados para fazer concessões quaisquer.
“Com efeito o modelo comunicativo da razão política supõe uma certa lógica da situação de fala. Dois locutores se vêem confrontados e são levados, pela própria lógica da confrontação, ultrapassar seu ponto de vista limitado. São obrigados a explicitar as normas que os guiam e experimentar seu caráter contraditório ou não contraditório. São assim levados a universalizá-las tendencialmente e se aproximarem um do outro nesse movimento de universalização. O núcleo dessa lógica é a prova da contradição performativa: se um dos parceiros se recusa a ouvir o que o outro diz ou a justificar o que ele próprio diz, entra em contradição com o que sua posição mesma de discutidor requer, ele próprio não se reconhece como locutor racional.”[4]
Caso as condições não sejam as propostas pelo pensador alemão, ou seja os elementos como lugar, objeto ou sujeito capacitado a falar não estão constituídos, então o diálogo deixa de existir. Não há a possibilidade de acontecer o acordo, não se chegando assim ao consenso.
O que pretendemos destacar na teoria política de Habermas é o destaque que dá a existência da esfera pública, espaço em que esse diálogo deve ocorrer, e que portanto é imprescindível para a democracia.
“The idea of ‘the public sphere’ in Habermas’s sense is a conceptual resource that can help overcome such problems. It designates a theater in modern societies in which political participation is enacted through the medium of talk. It is the space in which citizens deliberate about their commum affairs, hence, an institutionalized arena of discursive interaction. [...] Thus, this concept of the public sphere permits us keep in view the distinctions between state apparatuses, economic markets, and democratic associations, distinctions that are essential to democratic theory.”[5]
A racionalidade política para Rancière, ao contrário de para Habermas, não está identificada ao consenso e muito menos esse ao princípio da democracia. Para Jacques Rancière o motor da prática democrática é o conflito. A capacidade de discordar e mostrar novos caminhos. É, portanto, o dissenso, o resíduo que fica de uma discussão e que volta a tona. O que não consegue ser negociado.
“A escolha desse termo [dissenso] não busca simplesmente valorizar a diferença e o conflito sob suas diversas formas: antagonismo social, conflito de opiniões ou multiplicidade das culturas. O dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão do núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria. Minha hipótese é portanto a seguinte: a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum, pela própria divisão.”[6]
O governo e a mídia tende a rotular e não ouvir os “baderneiros” ou “vândalos”. Não ouvindo se destrói qualquer possibilidade de entendimento e assim se desmancha a política posto que o diálogo é surdo.
“Assim o dissenso antes de ser oposição entre um governo e as pessoas que o contestam, é um conflito sobre a própria configuração do sensível. Os manifestantes põe na rua um espetáculo e um assunto que não tem aí seu lugar. E aos curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: ‘Vamos circular, não há nada para ver’. O dissenso tem assim por objeto o que chamo o recorte do sensível, a distribuição dos espaços privados e públicos, dos assuntos que nele se trata ou não, e dos atores que têm ou não motivos de estar aí para deles se ocupar. Antes de ser um conflito de classes ou de partidos, a política é um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos.”[7]
Não pretendemos aqui fazer uma teoria inovadora sobre a importância da atuação de movimentos sociais para o surgimento de um espaço de discussão, debate, reflexão, educação e formação. Propomo-nos, apenas, adaptar algumas das leituras de pensadores feitas nesse curso à realidade brasileira específica do Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra.
À luz das reflexões suscitadas no curso poderíamos pensar que o resultado da ação do MST não é apenas a conquista da terra, mas o mais importante é o trajeto de tornar-se visível e audível, aparecendo assim no espaço público, ou seja o tornar-se cidadão.
O impacto do movimento social é trazer seus motivos a público, não apenas suas estratégias e políticas, mas evidenciar a montagem de um referencial público de dignidade, de eqüidade. Para Habermas temos que lutar por qualquer forma de sociabilidade, e é em decorrência disso que dá-se importância ao movimento social, à medida em que é o catalisador dessa prática.
Nesse sentido podemos afirmar que a luta do Movimento dos Sem Terra é também por ser visto e ouvido. Constantemente seus membros buscam ser visíveis. A partir da negativa do governo em atender as reivindicações os trabalhadores passam a “usar formas de pressão política mais fortes tais como ocupações de terra, acampamentos, ocupação de prédios públicos, bloqueio de rodovias, ocupações de praças públicas etc”[8]. Com isso vemos emergir neste quadro social diversas estratégias de luta com diferentes objetivos. Há a ocupação[9] de terras improdutivas ou devolutas, com o claro intuito realização da reforma agrária, mas também a ocupação de locais públicos chamando a atenção da mídia para que suas vozes sejam ouvidas e repercutam em prol da aceleração de algum projeto de assentamento específico, ou mesmo para reivindicar maiores financiamentos ou prazos aos bancos. Enfim ações práticas com metas bastante concretas.
“O que se passa é uma contestação das propriedades e do uso de um lugar: uma contestação daquilo que é uma rua. Do ponto de vista da política, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço em que se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista do que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da comunidade situa-se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função.”[10]
E esses trabalhadores rurais mostram que tem muito claro isso ao afirmarem:
“Olha em uma cidadezinha que passamos [durante a marcha de 1997], Santa Rita do Araguaia, na divisa de Goiás e Mato Grosso, tivemos que fazer uma ocupação. Todo lugar, toda cidade que a gente passava, fazia reuniões com o prefeito. Tínhamos uma pauta para negociar, para a gente se manter durante a marcha, mas, como esse prefeito de Santa Rita não atendeu, ocupamos a prefeitura...” [11]
A inserção do indivíduo em um movimento social dá a sua existência um sentido coletivo, um projeto. A vida em grupo, como acontece nas cooperativas, faz com que a esfera do estritamente privado perca significado e sentido. Os que estão ali presentes não mais estão isolados, agem solidariamente na coletividade. O caminho de casa para o trabalho, (a plantação, o setor de máquinas, o setor de construção e o administrativo) é permeado por conversas, fazendo com que o debate de questões políticas e sociais passe a ser parte do cotidiano.
A diferença que tem em uma cooperativa de produção é que os valores são discutidos entre as pessoas; várias famílias fazem parte: discutindo a cultura e como trabalhar o coletivo. Acho que uma cooperativa de produção hoje é uma sociedade completa! Tudo que precisa, tem: formação, educação, capacitação e um trabalho coletivo que é muito rico! Se faz crítica e autocrítica de si mesmo e pode fazer com que as pessoas cresçam! O assentado individual não tem isso, vive com sua família naquele sistema antigo em que o pai é o chefe da família e o resto tem que obedecer… e por isso a família não consegue desenvolver as atividades! Ou até consegue, mas não como uma cooperativa de trabalhadores. Lá a gente consegue desenvolver muito mais![12]
A medida que membros do MST definem o objetivo de sua luta, mobilizam-se, conversam, decidem conjuntamente. É nesse contexto, descrito por Valdecir, que ocorre a formação de pessoas capacitadas a ocupar e ampliar o espaço público O ativismo nem sempre resulta em conquistas concretas, mas indubitavelmente assegura um lugar para o fazer democrático.
II – O sentir-se cidadão
Outra idéia que tentaremos desenvolver no presente texto diz respeito a como indivíduos participantes desse Movimento social sentem sua “cidadanização”. O Brasil não tem tradição de luta por direitos, em geral eles foram legalizados pelo Estado. “O processo de construção da cidadania enquanto afirmação e reconhecimento de direitos é, especialmente na sociedade brasileira, um processo de transformação das práticas sociais enraizadas na sociedade como um todo.”[13]
Gostaríamos de expor aqui uma reflexão tecida por Roseli Salete Caldart, membro do setor de educação do Movimento dos Sem Terra ao dizer que o intuito do MST é educar cidadãs e cidadãos do seu tempo:
“É bem verdade que a palavra ‘cidadão’ é ainda parcial, à medida que remete à cidade. Seria o caso de inventarmos uma nova palavra, que tenha o mesmo sentido, mas que faça referência aos moradores do campo? Ou deveríamos recuperar o sentido da palavra camponês?”[14]
Para entender como indivíduos sentem sua transformação destacaremos a voz de pessoas que contam mudanças ocorridas em suas vidas após a entrada no Movimento dos Sem Terra, com o retomar da fala, para analisar o sentido que cada um encontra nessa luta. Tentando entender qual a visão do indivíduo ante tal processo.
O retorno a terra representa a oportunidade de retomar a estabilidade e o meio de vida rural. Na análise de algumas narrativas percebemos que por meio desse processo muitas famílias são (re)estruturadas e o indivíduo ganha força ao enxergar-se agente social ativo. Com isso um novo conceito de cidadania passa a ser desenhado, que não se vincula a uma estratégia de governo. “A nova cidadania requer (e até é pensada como sendo esse processo) a constituição de sujeitos sociais ativos definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania ‘de baixo para cima’”[15].
As mudanças são muitas. A entrada num movimento social representa um salto qualitativo no padrão de vida. Pessoas que antes viviam em favelas na cidade conquistam um espaço para morar. Crianças antes abandonadas nas ruas não só são recolhidas quanto passam a refletir sobre sua própria condição anterior. Esse é o caso de Mazinho que conta que vivia nas ruas de Parauapebas no estado do Pará:
Uma vez, eu estava sentado numa calçada bastante alta e pensei o seguinte: ‘Um dia eu vou conseguir uma coisa para incentivar a minha família... Incentivar o meu pai, para que ele possa me ver com outro olho, me enxergar como ser humano’. Porque ele não me enxergava como ser humano! Eu senti isso na pele! Foi quando um amigo meu, chamado Beto me convidou para conhecer o Movimento.[16]
Para Mazinho, um menino de rua que se alimentava de restos do lixo, sua entrada para o MST simboliza o retorno ao convívio social, às relações de carinho, enfim a condição humana que lhe havia sido roubada. Exemplo disso temos na mesma entrevista quando fala:
E a minha vida foi mudando cada vez mais... Eu via uma diferença muito grande na MA-NEI-RA como as pessoas me tratavam na rua e no Movimento. Era totalmente diferente! Me tratavam com carinho, com amor! Eu me sentia, e ainda hoje me sinto, uma pessoa amada no meio deles!... Há uma diferença muito grande entre viver recuado da sociedade e se achar dentro dela! Isso sim é muito bom! É um aroma muito gostoso![17]
Neste sentido cabe destacar que o MST é, muitas vezes, o catalisador de grandes alterações. Porém uma das mais presentes nesses depoimentos é a mudança da vida familiar, a medida em que impõe novo ritmo à vida das pessoas e comprometimentos outros que ultrapassam a relação homem-mulher, não se restringindo à luta política. Dessa forma seguem juntos ideais, companheirismo e vivência. A saída de uma antiga estrutura familiar patriarcal é favorecida, bem como a (re) construção dela em outros moldes.
João é exemplo emblemático de dedicação a família que pretendemos destacar. Foi criado em uma Fazenda, mas já percorreu o Brasil todo, foi peão, garimpeiro, marceneiro e pedreiro. Sua história de vida a todo instante evoca sua família um valor que passou a ser mais forte a partir de sua participação na luta pela terra junto ao MST. Desde o primeiro instante da entrevista declarou que suas filhas o tinham acompanhado por toda a Marcha. Antes de sua entrada no MST não tinha uma vida familiar intensa, ou seja separou-se muito cedo, aos 6 anos, de sua mãe e suas irmãs, e declarou que mesmo atualmente não tem contato freqüente com elas. Mas confessa que foi dentro do movimento que encontrou uma companheira e pretende quando for assentado consolidar essa nova família.
Agora tenho outra companheira que está comigo. A Nice, minha esposa. Nos conhecemos no acampamento, em torno de seis meses. Então, ela retornou com as minhas filhas. Levou as meninas porque tínhamos pedido uma licença para fazer a Marcha e assim que terminasse elas tinham que retornar ao colégio. Estou feliz. Espero que a Nice entenda nossa dificuldade, e quem sabe daqui a alguns meses possamos estar realizando nosso casamento! Porque tendo onde morar e produzir, como é nosso pensamento, não existe outra dificuldade.[18]
Hoje o que me segura animado é minha maneira de ser com os meus filhos, que me dão muito apoio, né? O único compromisso que tenho é com eles que moram comigo. [...] tenho uma filha que vai completar 22 anos agora no final do ano; tenho um filho com 18 para 19 anos; e ainda tenho duas filhas: uma com 12 outra com dez.[19]
A família para o MST é célula estruturadora de toda a luta. É com base nela que o trabalho se desenvolve e as tarefas são divididas. Um novo conceito de feminino é traçado. A mulher ganha espaço, e faz parte das lideranças do Movimento, os homens, por sua vez, dividem suas tarefas com essas mulheres que dão conta do trabalho no campo.
“Sei que não é muito fácil - nem para os homens é - e só tem eu e uma outra mulher que somos cadastradas... Calcei uma botina, coloquei uma calça comprida, uma camisa de manga comprida, um chapéu e fui para a roça... Ih! Foi uma grande festa quando chegamos lá... [...] trabalhei o dia todo, e todo mundo imaginando que eu não ia conseguir... Trabalhei numa boa...”
Nesse sentido as mulheres do movimento tomam a frente de atividades inesperadas, se impõe em suas comunidades e ganham o respeito dos próprios homens ao executarem juntos as tarefas do campo.
Mudança representativa também é encontrada na sugestão do trabalho coletivo. Por orientação do Movimento dos Sem Terra os assentamentos tendem a realizar um sistema coletivo de realização de tarefas, contrapondo-se assim à tradição do trabalho individual ou familiar no campo. A efetivação da proposta enfrenta problemas vividos no cotidiano da lida, mas as vantagens dessa proposta refletem-se na maior produtividade da terra, posto que os assentamentos passam a ter uma lavoura mecanizada, melhorando também a qualidade de vida do trabalhador rural:
“Hoje em dia, para a gente trabalhar na agricultura sem apoio técnico, só com o braço é muito difícil. E quando chegar na idade que meu pai tem, 40 anos, não se consegue mais fazer o que uma pessoa jovem faz. Uma pessoa de 40 anos ainda está jovem, mas meu pai já está acabado, porque conseguiu tudo o que tem trabalhando de forma braçal, não teve o apoio agrícola que o MST quer para o povo assentado. Porque se a gente trabalhar que nem meu pai ou o pai do Paulo, meu marido, quando a gente adquirir algum bem, não vai conseguir desfrutar... já vai estar doente e vai ter que gastar com saúde... Por isso a gente quer que o povo tenha um meio de sobreviver com uma vida digna e que possa desfrutar daquilo com saúde...”[20]
A mudança do trabalho individual para o coletivo ultrapassa a condição do fazer manual, e engloba esses indivíduos em um pensar coletivo, sobre os rumos daquele assentamento, mas também do contexto nacional, possibilitando uma maior visão de mundo.
Isso fica bem exemplificado no depoimento de Valdecir, um paranaense que conta que sua entrada no MST foi o caminho que encontrou para a antiga aspiração de mudança que tinha. As alterações começaram materialmente, com o assentamento de seu pai, mas elas estão presentes, se fortalecendo, no dia-a-dia nas discussões que travam em grupo.
“Sempre quis mudar a minha vida. A partir do momento que entrei no Movimento Sem Terra é que eu e minha família conseguimos! Porque meu pai não tinha terra e foi assentado, conseguiu dar comida para a família dele e também ter um pouco mais de dignidade! Quando a gente não está dentro do Movimento Sem Terra não tem visão do mundo, vive isolado, não sabe o que está acontecendo no país. É a mesma coisa que colocar aquele negócio nos olhos dos cavalos, que não deixa ver dos lados: só vê a frente. Porque a ideologia do capitalismo faz com que a pessoa fique assim.
Dentro do Movimento Sem Terra, a gente consegue abrir a cabeça, consegue entender o país e um monte de coisa que não conseguia. Um homem sozinho, um ser humano sozinho não consegue! O sistema em que fomos criados faz d nós uns tapados, sabe? A gente não consegue ver o mundo, mas dentro do Movimento Sem Terra ele se mostra! Não porque as pessoas dizem, a gente mesmo é que tem que descobrir. Vai discutindo coletivamente, e descobre! Consegue ver o que é certo e o que é errado!! É por isso que a gente tem força para por justiça e por mudança.”[21]
As discussões travadas nos acampamentos e assentamentos pelos próprios indivíduos que participam daquele processo de produção é elemento básico da democracia. Nessas discussões são expostos pontos de vista diferentes em que os membros daquela comunidade discutem conjuntamente. Portanto não só por ser oposição ao governo, a existência de movimentos como o MST são a garantia da prática democrática.
Com isso podemos retomar a discussão proposta por Castoriadis e afirmar que é impressionante como se dá essa organização de discussões, no espaço dos acampamentos e assentamentos, que retoma o “germem”[22] grego democrático para discutir a relação política. Essas pessoas repensam portanto a concepção de Estado e Sociedade em termos contemporâneos. O contrato social passa a ser pensado por meio de grandes coletivos de cidadãos.
Castoriadis pressupõe um indivíduo pensante, que media o mundo em conflito no qual vive e que direciona suas escolhas por meio de suas experiências sociais. Pensa o cidadão democrático como sendo o indivíduo que tenta ultrapassar a esfera de suas preocupações mais particulares e passa a se interessar ativamente pelo que se passa na sociedade em geral e afirma que “são esses mesmos homens e mulheres que devem tornar-se sujeitos ativos da política explícita”[23].
III- Reflexões finais
Tentamos desenvolver nesse texto duas idéias centrais: a do movimento social organizado agir como um reconstrutor do espaço público; e de como os atores sociais desse processo sentem sua reinserção no quadro democrático. Para isso esboçamos também um diálogo entre a teoria política de Habermas e a de Rancière, que retomaremos a partir de agora tentando amarrar algumas de nossas primeiras colocações.
Habermas se encanta com toda a movimentação social presentes nos países das América Latina de modo geral, posto que acredita que:
“... a modernização do mundo da vida e da sociedade civil constituem a precondição cultural e institucional para o surgimento de identidades coletivas racionais e solidárias capazes de desenvolver a capacidade e a responsabilidade de interpretar e atribuir significado.”[24]
Portanto, para ele esses grupos de manifestantes estão no espaço democrático re-significando o mundo em que vivem. No entanto temos que atentar até que ponto esses movimentos que saem às ruas, são ouvidos para só no caso da resposta ser positiva, serem considerados expressão de um cotidiano democrático. Do contrário as manifestações sociais apresentam-se apenas “como um ruído de corpos sofredores irritados, ruído que a intervenção da autoridade pública deve fazer cessar.”[25]
Se o diálogo é surdo não há a possibilidade do acordo comunicacional habermasiano se concretizar. Há que se pensar também que Habermas está discutindo numa Alemanha em que a relação Estado e cidadão é muito mais clara e onde não existe um silenciamento da sociedade, contexto social bastante diferente da realidade brasileira. Quando, portanto, fala da idéia de consenso não abarca movimento da sociedade como os que ocorrem no Brasil.
Rancière discutindo o dissenso parece ser mais plausível, pois responde melhor às questões atuais de nosso país. Ao desenvolver a idéia de que o consenso é a supressão da política e que apenas leva em conta as opiniões enunciáveis, diz que dessa forma acaba-se por excluir toda a parcela da população que não participa ativamente do pensar político. O povo político não é identificado a “parte laboriosa e sofredora da população”.
“Em suma, o consenso suprime todo cômputo dos não contados, toda parte dos sem-parte. Ao mesmo tempo pretende transformar todo litígio político num simples problema colocado à comunidade e aos que a conduzem. Pretende objetivar os problemas, determinar a margem de escolha que comportam, os saberes requeridos e os parceiros que devem ser reunidos para a sua solução. Disso supõe-se decorrer a composição dos interesses e das opiniões no sentido da solução mais razoável.”[26]
Por outro lado, é a presença de tais manifestações que mostra haver uma relação entre o mundo público do debate e da fala e o privado do trabalho e das necessidades, obrigando a discussão e a argumentação, criando assim um mundo comum. O conflito refere-se a constituição desse mundo comum, diz respeito ao que nele se vê e ouve. Todavia para a criação desse mundo que faça sentido para todos os envolvidos, é necessário que um alargamento dos horizontes. Saber o que e como falar.
O Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra fala de interesses maiores para a sustentação da luta camponesa, não mais se busca apenas a posse da terra, mas também uma estabilidade na vida rural e melhores preços dos produtos agrícolas no mercado por meio de financiamentos com juros menores. O que proporcionará vantagens não apenas ao produtor rural, mas afetará toda a população dos que consomem seus produtos.
É importante destacarmos que o MST não é um movimento que se coloca contra a ordem capitalista vigente. Pelo contrário se organiza dentro dela, sob as leis de mercado. Chegando a realizar o que Castel definiu como tarefa difícil:
“Sem dúvida, não é fácil (é o mínimo que se pode dizer) conciliar, de um lado, as exigências de competitividade e concorrência e, de outro, a manutenção de um mínimo de proteção e de garantias para que a conquista de uns não seja paga pela anulação de outros (para que os in não produzam os out)”[27].
O Movimento dos Sem Terra não quer o fim da propriedade privada mas sim sua regulamentação. Um critério de julgamento interno ao mercado que responda a questão: qual a porção de terra JUSTA? Buscam portanto uma idéia mais abrangente: critérios de justiça e julgamento.
A importância, portanto, de existir um movimento social como o Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra vai além da razão social da realização da reforma agrária, da conquista de terras; ou ainda da razão econômica do aumento da produção e queda dos preços dos produtos; mas é também de fundamental importância política, posto que abrange a criação de um espaço público que discuta questões como a cidadania e democracia.
Parafraseando Rancière, esquecemos a violência simbólica que o simples fato de colocar a terra como objeto de discussão pública pôde representar. “Esquecemos que essa conjunção banal de palavras foi o confronto violento não apenas de interesses mas de mundos contraditórios.”[28]
A noção de espaço público é trabalhada por todos os pensadores com que conversamos e claramente essa discussão passa pelo pensar político, pois é a política que se refere a ação. Rancière, por sua vez tem uma forma bastante específica de pensar política.
“Proponho reservar a palavra política ao conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea. Essa pressuposição é a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Essa igualdade, como vimos, não se inscreve diretamente na ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais originário do termo,: uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável.”[29]
E afirma que:
“A política, em última instância, repousa sobre um único princípio, a igualdade. Só que esse princípio só tem efeito por um desvio ou um torção específica: o dissenso ou seja a ruptura nas formas sensíveis da comunidade. Ele tem efeito ao interromper uma lógica da dominação suposta natural, vivida como natural. Esse efeito é a instituição de uma divisão ou de uma distorção inicial. Essa distorção é que é testemunhada pelas palavras aparentemente muito simples: demos e democracia.”[30]
Com vistas à pesquisa realizada podemos pensar que os pressupostos básicos da proposta de Habermas se existem não estão sendo colocados em prática e portanto o movimento social, nesta pesquisa emblemado pelo Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra, busca sua sistematização indo às ruas, organizando suas reivindicações e fazendo uso do que Rancière escolheu chamar: dissenso.
Podemos concluir portanto que o MST ao falar e fazer ser ouvido recria o espaço público. A partir de sua ação conquista um lugar na mídia e questões antes esquecidas vem a tona sendo mostradas a todos. Por meio da "cidadanização" e conscientização de seus membros o Movimento consegue sistematizar suas aspirações. Com a organização de seu discurso passa a ter a possibilidade de poder dialogar, pois os ruídos animalescos transformam-se em fala humana articulada e portanto política.
Notas
* Gostaríamos de alertar para o fato que “(re)criação do espaço público” neste trabalho assume duplo sentido: tanto a conquista da terra, quanto a reestruturação da esfera pública.
[1] CHAUI, Marilena. Público, privado, despotismo. In: Novaes, A. (org.) Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p.345 – 390.
[2] OLIVEIRA, Francisco. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 208.
[3] A esse respeito ver: OLIVEIRA, Francisco. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público. In: Op., cit., p. 46, e YAZBECK, Maria Carmelita. A política social brasileira nos anos 90: a refilantropização da questão Social .In: Cadernos Abong. São Paulo: Abong, 1995.
[4] RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Cia das letras, 1996, p.376-377.
[5] FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy. In: s/d, p 57.
[6] RANCIÈRE, Jacques. Op. cit. p.368.
[7] Idem, p. 373.
[8]STÉDILE, João Pedro e Frei Sérgio. A luta pela terra no Brasil. São Paulo: Scrita, 1993, p. 51.
[9]Usaremos sempre neste trabalho o termo ocupação, posto que rejeitamos a expressão “invasão” comumente utilizada pela imprensa e órgãos públicos. Isto porque carrega em seu significado um sentido negativo, que dá às ações públicas do Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra um caráter de ilegitimidade e ilegalidade o qual estaremos discutindo no decorrer dessa reflexão.
[10] RANCIÈRE, Jacques. Op. cit., p.373.
[11] Depoimento de Edivaldo Ferreira Sampaio. In: SANTOS, Andrea Paula, RIBEIRO, Suzana L. S. e MEIHY, José Carlos S. B. Vozes da marcha pela terra. São Paulo: Loyola, 1998, p.87.
[12] Depoimento de Valdecir Bordignon, Idem, p.235.
[13] DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasileiense, 1994, p.109.
[14] A relevância de colocarmos aqui tal pensamento, é a de mostrarmos que o Movimento dos Sem Terra não apenas discute a idéia de cidadania, mas também questiona a qualidade do conceito aplicado. Ou seja a reflexão se distância de um pensar dogmático e repetitivo, e passa a questionar termos já cristalizados. CALDART, Roseli Salete. Educação em movimento: formação de educadoras e educadores no MST. Petrópolis: Vozes, 1997, p.113.
[15] DAGNINO, Evelina. Op. cit., p.108.
[16] Depoimento de Lindomar de Jesus Cunha (Mazinho), In SANTOS, A. P. dos, Op. cit., p. 219.
[17] Idem, p.220.
[18] Depoimento de João Francisco de Matos, In: SANTOS, A. P. , Op. cit., p. 208/209.
[19] Idem, p.204.
[20] Entrevista de Rosineide, In: SANTOS, A. P. Op. cit., p.58/59.
[21] Depoimento de Valdecir Bordignon, In: SANTOS, A. P. Op. cit. p. 237.
[22] “... a Grécia é para nós um gérmem: nem um ‘modelo’, nem um espécime entre outros, mas um germém.” CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto II. Os domínios do homem. s/d, p. 271.
[23] CASTORIADIS, Cornelius. Os intelectuais e a história. In: As encruzilhadas do labirinto 13. O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 , p.113.
[24] ARATO, Andrew e COHEN, Jean. Sociedade civil e teoria social. In: AVRITZER, Leonardo (org.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ed., 1994, p.157.
[25] RANCIÈRE, Jacques. Op. cit., p.376.
[26] Idem, p,379.
[27] CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: BÓGUS, L. (at alli). Desigualdade e a questão social. São Paulo: Educ, 1997, p.24.
[28] RANCIÈRE, Jacques. Op. cit., p.375.
[29] Idem, p.372.
[30] RANCIÈRE, Jacques. Op. cit., p.370.
BIBLIOGRAFIA
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