ESPACIALIDADE DAS FESTAS RELIGIOSAS

 

 

ADRIANO LOPES SARAIVA

Centro de Estudos Interdisciplinar em

Desenvolvimento Sustentável e

Populações Tradicionais da Amazônia – CEDSA

 

JOSUÉ DA COSTA SILVA

DEPT. DE GEOGRAFIA-UFRO

 

Introdução

 

            A partir da realização do projeto de pesquisa “Estudo do Processo de Recriação do Espaço Ribeirinho através das Festas Religiosas” (PIBIC/CNPq/2002), alguns aspectos foram levantados e discutidos, como por exemplo, a festa religiosa como fator modificador do espaço (criação e recriação) e responsável pela construção da paisagem cultural de comunidades ribeirinhas (SARAIVA & SILVA, 2002). As análises aqui apresentadas são frutos de estudos desenvolvidos nas comunidades de São Carlos, Prosperidade e Nazaré, localizadas na região do rio Madeira, à jusante de Porto Velho, Estado de Rondônia. Participamos dos seguintes festejos: Nossa Senhora da Conceição Aparecida (Comunidade de São Carlos, comemorado no dia 12 de outubro), Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora de Nazaré e São Sebastião.

            O universo da pesquisa rico em singularidades, nos trouxe diversas situações e elementos que vieram a enriquecer o trabalho. As festas religiosas em comunidades ribeirinhas constituem acontecimentos ligados ao universo mental do grupo, capaz de promover mudanças na estrutura espacial das comunidades. Tais eventos representam momentos de identidade do grupo ribeirinho, esse acontecimento possui seu próprio modo de ser realizado, refletindo a maneira pela qual o grupo estabelece sua vida. Além de servir como ritual de renovação do modo de produção, de um período que se inicia e que é voltado para o plantio ou colheita dos principais produtos agrícolas da comunidade.

            Os festejos merecem destaque por representarem mudança, por modificarem o espaço e o tempo nas comunidades. Em algumas delas temos características mais visíveis dessas mudanças, como a construção de novas igrejas e a criação de espaços próprios para o santo padroeiro. Assim, as festas, como acontecimentos fruto do sincretismo religioso que trazem consigo características próprias que moldam o espaço, transformando-o num lugar único. O que nos lembra os escritos de Luis Boada (1991, p.88), onde podemos observar que o espaço pode ser humanizado, ou seja, transformado num lugar diferenciado do restante, basta que para tanto ali sejam realizados ritos que dêem conta de tal tarefa, o que, aliás, pode muito bem ser realizado através das festas religiosas.

            Este artigo busca dar subsídios para o entendimento desse grupo social, que mantém sua estrutura social com ligações com sua origem étnica. Ao falarmos do espaço de comunidades ribeirinhas, estamos a todo o momento buscando elementos ligados ao universo mental do grupo, de sua cultura e de sua religiosidade.

 

II – As festas religiosas e o espaço das comunidades ribeirinhas

 

            As festas religiosas configuram-se como eventos ligados ao sacramentalismo cristão do grupo. O ribeirinho cumpre suas promessas e graças recebidas por meio de rituais, traduzidos na forma de festejos, almoços comunitários, missas, procissões, novenas, bailes, etc. cada festa possui sua própria história e razão de existência. Representa agradecimento, devoção e também saúda um novo período produtivo que se inicia nessas comunidades, o início do período de plantio, pode representar também a solução de um grave problema, a saúde recuperada, tudo isso é traduzido em agradecimentos. Portanto, a organização espacial estará ligada ao universo das crenças, o que refletirá de forma concreta na maneia pela qual o ribeirinho irá estabelecer-se no espaço.

            As atribuições dadas ao espaço e a forma de organizar-se nele estão ligadas à cultura e ao modo de vida dessas populações ribeirinhas. Entre essas populações as crenças, os mitos e a religiosidade são destaques, tornando-se fatores responsáveis pela organização sócio-espacial das comunidades.

            Quando falamos de populações ribeirinhas, as denominados de populações tradicionais ribeirinhas segundo Silva (2000), pois nos diz que é uma população que possui modo de vida peculiar que as distingue das demais populações do meio rural ou urbano, possuindo sua cosmovisão marcada pela presença das águas. Para estas populações o rio, o igarapé e o lago não são apenas elementos do cenário ou paisagem, mas algo constitutivo do modo de ser e viver do homem.

            As festas religiosas são fatores de destaque entre essas populações. O geógrafo Carlos Eduardo Maia as define como: “manifestações culturais que se caracterizam, entre outros aspectos, por serem eventos efêmeros e transitórios, perdurando algumas horas, dias ou semanas” (1999, p. 204). Estando ligadas à religiosidade e ao costume de “pagar” e de “fazer” promessas, tal ato é destacado por Rosendahl, já que “a prática religiosa de ‘fazer’ e ‘pagar’ promessas constitui uma devoção tradicional e bastante comum no espaço sagrado dos santuários católicos” (1999b, p. 61). Assim, cada festa é resultado de um acontecimento particular ligado a algum fato referente a um sujeito de destaque no âmbito da comunidade.

            No estudo do antropólogo Charles Wagley “Uma Comunidade Amazônica” (1988), o papel das festas religiosas é por ele destacado, posto que, são de fundamental importância para acentuar o cotidiano dos ribeirinhos amazônicos com os quais realizou seu trabalho. Wagley destaca que “... todos os anos, em maio e junho, quando, no Vale Amazônico, os rios voltam aos seus leitos e as chuvas diminuem, começa a estação seca; realizam-se então inúmeras festas...” (1988, p. 194). Nesse sentido, estudos de Saraiva & Silva (2002, p. 204) nos dizem que “as atividades realizadas durante as festas constituem momentos onde o espaço ganha contornos diferentes do que possui durante o cotidiano (...), cada morador vive o espaço de maneira particular”. O que nos faz perceber que o espaço das comunidades ribeirinhas recebe designações ligadas às crenças criadas pelo grupo, ligadas aos elementos constituintes da realidade do homem ribeirinho, como os rios, os igarapés, os lagos, a mata, as lendas, os mitos, etc. Nascimento Silva (2000, p. 94-95) exemplifica a organização espacial de comunidades ribeirinhas:

 

o espaço, nas comunidades ribeirinhas, ainda está muito próximo, ou melhor, está intimamente ligado às pessoas, e elas mesmas ainda não perderam completamente o controle desse espaço, onde reconhecem os signos e significados que estão presentes em seu ambiente sem se separarem deles inteiramente, sem transformá-lo essencialmente em mercadorias.

 

O que é atestado por Rivière quando nos fala:

 

... o espaço, não se trata somente de uma relação concreta, física, com ele, feita de práticas e de deslocamentos, ou de uma fenomenologia do espaço vivido, mas de um imaginário no qual entram os estereótipos da civilização e os valores ligados à identidade e à diferenciação social. (1999, p. 59)

 

Outro aspecto a ser destacado é que a festa religiosa necessita de vários espaços para sua realização. Cada momento da festa é pensado e realizado em um determinado espaço, por exemplo: a procissão é realizada nas ruas da comunidade, o baile no centro comunitário ou outro lugar que comporte tal atividade. Assim:

 

A rua, os pátios, as praças, tudo serve para o encontro de pessoas fora das suas condições e do papel que desempenham em uma coletividade organizada. Então, a empatia ou a proximidade constituem os suportes de uma experiência que acentua intensamente as relações emocionais e dos contatos afetivos, que multiplica ao infinito as comunicações, e efetua, repentinamente, uma abertura recíproca entre as consciências na medida que a festa não mais necessita de símbolos e inventa as suas figurações que desaparecem, muitas vezes, em seguida perecível. (DUVIGNAUD, 1983, p.68)

 

Esta organização social nos remete ao espaço utilizado para a realização das festas e suas funcionalidades, o que é destacado por Maia:

 

... grande parte das festas, no seu momento de ocorrência, simplesmente fornecem nova função às formas espaciais prévias que dispõem para a sua realização (ponto central): rua, praças, etc. mas, tão logo cesse o período ou momento extraordinário, tais formas retornam a sua função habitual. (1999, p. 204)

 

Com efeito, as festas religiosas constituem momentos onde a população ribeirinha modifica o espaço que habita, dando-lhe significados os mais diversos, transformando-o num lugar único, fruto das crenças existentes entre essas populações, onde diferenciam e qualificam locais com características que só existem durante a festa.

 

III – Modificações e percepções: o espaço recriado

 

A realização de festas religiosas pode deixar marcas no espaço, podendo funcionar como fator de reorganização e de mudanças na espacialidade das comunidades, além de trazerem à tona as relações que implicam a realização de um evento como este, as disputas e os conflitos existentes ente o grupo.

O ribeirinho vive o espaço de maneira peculiar, levando em consideração a maneira pela qual relaciona-se com o ambiente a sua volta. É uma relação de respeito pautado nas crenças e nos mitos, como destaca Silva “A natureza passa a ser humanizada, desmitificada, ou seja, desnuda de mistérios e incorporada de novos significados. Passa a correr, em alguns momentos, a sacralização da paisagem. A “mata” e o “rio” passa a ter um significado especial para esse grupo...” (1994, p.13).

A religiosidade tem papel de destaque entre essas populações, tornando-se elementos capaz de promover mudanças na organização do espaço desses locais. Assim, temos dentro da realidade do ribeirinho elementos constituintes da cultura que compõem o espaço, como as crenças, o sincretismo religioso e os mitos. Cada elemento torna a festa fator de destaque nas modificações espaciais presentes nas comunidades. No que se refere ao espaço recriado, o conceito que melhor o define está ligado ao ambiente construído a partir do espaço natural modificado pela ação humana (BOADA, 1991, p.88).

Na comunidade de Nazaré temos um exemplo do espaço modificado pela ação humana ligado à cultura do grupo. Foi criado um novo bairro na comunidade chamado “Bairro de São Sebastião”, fruto de uma promessa feita pelo líder religioso da comunidade, o que acarretou a construção da nova igreja católica que fica mais distante da parte central da comunidade. O espaço de São Sebastião representa para o exercício da fé católica do grupo aumento, pois a partir de então duas igrejas passaram a existir na comunidade. Cada igreja possui um grupo organizado de membros da comunidade que ficam responsáveis pelas tarefas de limpeza, manutenção e organização do lugar para as celebrações, sendo que o grupo de São Sebastião tem como coordenador o chefe religioso da Vila de Nazaré. Sua autoridade é reiterada pelo viés educacional, além de conduzir e manter o grupo dentro da mesma religião e crença. Contribuindo para o fortalecimento da doutrina cristã que faz frente ao vertiginoso crescimento das igrejas neo-pentecostais nas comunidades ribeirinhas.

A criação de um espaço como o Bairro de São Sebastião vem para enfatizar o papel do líder religioso entre o grupo. Sua função está ligada à organização do festejo de São Sebastião, sendo também responsável por manter o grupo congregando os mesmos cultos e rituais católicos. As atividades desenvolvidas para a realização da festa são coordenadas por este líder, que funciona como o ordenador dos rituais dentro do espaço sagrado. Assim, a atuação do líder pode lhe dar legitimidade junto ao grupo e com os participantes do evento (MAIA, 1999, p. 209).

 

IV – Modificações e percepções: o espaço sagrado e o espaço profano

 

O espaço utilizado para os festejos adquire designações ligadas à forte religiosidade do grupo. Dentro dos acontecimentos que ocorrem durante a festa podemos observar vários momentos que possuem características chamadas de sagradas e profanas. No Festejo de Nossa Senhora de Nazaré e no de São Sebastião observamos as mesmas características – como a procissão, a novena, a missa, os batizados, o leilão, a venda de comidas e bebidas, o baile dançante e o torneio esportivo. Já na Festa de Nossa Senhora da Saúde não há o baile dançante e o grande momento está na realização de um almoço comunitário oferecido aos participantes pela família organizadora do festejo. Portanto, cada festa tem suas próprias características que podem ser tanto sagradas como profanas.

Segundo Mircea Eliade (1992, 1998) o sagrado não está ligado aos elementos não-racionais e racionais da religião, este conceito vai além. Num primeiro momento sabe-se que o sagrado opõe-se ao profano. E que sua manifestação se apresenta de diversas maneiras, ou seja, ele se revela de várias maneiras estando ligado ao valor atribuído a coisas concretas, tais como espaço ou lugar. O sagrado e o profano também podem manifestar-se em momentos não concretos, por exemplo: o tempo pode adquirir características sagradas devido a algum ritual ligado à temporalidade.

O sagrado manifesta-se por intermédio da hierofania (ELIADE, 1992, 1998), significa dizer que algo de sagrado se revela na realidade vivida pelo homem. Além disso, Eliade (1998, p. 297) nos explica que a manifestação do sagrado é imposta também ao homem, o que implica dizer que o homem que vive nessa realidade não a percebe, ele apenas a vive de uma maneira calma e serena. Portanto, caracterizar essas hierofanias na realidade ribeirinha é uma tarefa complexa, visto que essas manifestações são “diferentes” dentro do aspecto observável das populações ribeirinhas. Ademais, o mundo do ribeirinho é orientado pela construção de uma rede de significados manifestos nos símbolos e mitos da paisagem habitada.

Os festejos religiosos apresentam para os moradores das comunidades ribeirinhas rituais e objetos que remetem ao divino, à ligação do homem com Deus. Podemos citar a procissão e a celebração como dois momentos ligados ao sagrado. A procissão para DaMatta (1997, p. 65) é definida como um desfile especial; podemos observar características de ambos (do sagrado e do profano), dentro de um mesmo momento, pois a imagem do santo está com o povo e dele recebe na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade. Nesse momento as pessoas rezam, pagam promessas e penitências, o fazem para mediar seu contato com a divindade.

Assim, ao elegeram uma imagem e em dela organizarem um acontecimento capaz de modificar o tempo e o espaço, essa devoção é a mais clara representação da hierofania. A realidade vivida pelo homem ribeirinho está ligada ao seu comportamento eminentemente religioso, e tal comportamento está arraigado ao seu modo de vida, o que é sustentado por Durkheim (1989, p. 68), pois:

 

... todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em dois gêneros opostos, designados geralmente bem, pelas palavras profano e sagrado.

 

O profano dentro da realidade ribeirinha é ainda mais difícil de ser percebido, seja pelo seu caráter inconstante, pois o ribeirinho não divide seu modo de vida entre o sagrado e o profano, os acontecimentos que envolvem a fé e devoção é que são determinar a existência de um ou outro, ou mesmo de ambos.

Alguns estudiosos se referem ao profano como o comércio e as danças. Todavia essa proposição não deve ser levada ao pé da letra no estudo com populações ribeirinhas, pois esses dois momentos fazem parte da festa e são esperados com uma certa ansiedade pelos moradores. O “baile” ou “forro” está presente em quase todos os festejos e é uma das tradições das festas religiosas.

No que se refere ao comércio há uma prática muito comum que é a realização de leilões para angariar fundos para igreja do santo homenageado. Nesse sentido, então não podemos considerar o leilão como uma atividade caracteristicamente profana, as pessoas que compram os objetos doados pelos moradores da comunidade, o fazem para ofertar ao santo uma parte do que lhe é dado durante o restante do ano, fruto de seu trabalho e uma parte dele é ofertado ao santo.

 

V – Modificações e percepções: a paisagem cultural ribeirinha

No que concerne ao estudo da paisagem temos em Carl Saur e Denis Cosgrove conceitos e discussões que são perfeitamente aplicáveis à discussão central deste artigo.

O termo paisagem ganha destaque dentro da geografia do século XIX a partir da competição entre duas escolas que despontavam no avanço da ciência da época, o racionalismo e o positivismo. Até essa época o complexo de fatores (clima, relevo e higrografia) estavam sendo estudados de forma separada. Foi com o empate entre teóricos e pensadores,d entre eles La Blache, Hettner e Ratzel que os elementos da natureza passaram a serem vistos como resultado, ou seja, passam a serem examinados como causa e efeito (SAUER, 1998, p. 20). Este estudo integrando os elementos da natureza colaborou para o surgimento do estudo da paisagem. Na década de 70 houve uma retomada do conceito de paisagem que trouxe novas formas de apreensão frutos de estudos e de novas abordagens teóricas e metodológicas.

A paisagem passa, assim a ser chamada paisagem geográfica, apresentando diversos conceitos a seu respeito. Com isso para Corrêa & Rosendahl (1998, p. 08) tornou-se possível ao geógrafo falar de paisagem sagrada, paisagem profana, paisagem do medo e paisagem do desespero, entre outras. A religião e as crenças passam a serem estudadas como formadoras e como componentes da paisagem. O que é destacado por Rosendahl, posto que:

 

O impacto da religião na paisagem não está limitada somente às características visíveis, tais como locais de culto, apesar destes mostrarem mais claramente formas e funções religiosas, mas também na experiência da fé que nos fornecem símbolos e mensagens, algumas intelegívies somente aos que comungam a mesa fé. (2001, p. 27)

 

Um dos grandes estudiosos foi Carl Sauer que com o seu estudo “A morfologia da paisagem” propôs diferenciações, definições e abordagens sobre a paisagem, ela a classificou como paisagem natural e paisagem cultural. O que as diferencia é o conteúdo das mesmas, ou seja, os fatos físicos e culturais do homem. Para Sauer (1998, p. 49-50) a paisagem cultural “... se torna conhecida através da totalidade de suas formas. Essas formas são conhecidas não por elas mesmas (...), mas nas suas relações uma com as outras e nas suas posições na paisagem, cada paisagem sendo uma combinações definida de formas”. Ainda em Sauer encontramos a definição de paisagem cultural, sendo que “a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural é o resultado.” (1998, p. 59)

Já Denis Cosgrove com o seu estudo “A geografia está em toda parte: cultura e simbolismos nas paisagens humanas” analisa a paisagem como sendo resultado das atividades do homem contendo suas crenças, modos de ver o mundo, mitos e simbologias, segundo ele a paisagem

 

... está intimamente ligada a uma nova maneira de ver o mundo como uma criação racionalmente ordenada, designada e harmoniosa, cuja estrutura e mecanismo são acessíveis à mente humana, assim como ao olho, e agem como guias para os seres humanos em suas ações de alterar a aperfeiçoar o meio ambiente. (COSGROVE, 1998, p. 99)

 

A paisagem é imagem socialmente construída pelo homem. Na região ribeirinha essa paisagem é fruto de sua vivência de sua cultura. O francês Claude Rivière (1999, p. 59) ao estudar as peregrinações na África Tradicional percebeu que a paisagem pode ser sacralizada pelo suposto investimento de uma divindade. Segundo ele “na realidade, não vemos a paisagem, nós a construímos mentalmente através de séries e de alguns pontos de vista. Entre o aqui e o outro lugar, entre a habitação principal e a residência secundária, o homem tende a desenvolver seu espaço”. Podemos observar que as festas religiosas têm a capacidade de deixar marcas no espaço das comunidades, ou seja, é a cultura do grupo promovendo mudanças no espaço.

 

VI – Para não concluir ...

 

As mudanças espaciais ocorridas nas comunidades ribeirinhas são resultados de diversos elementos. Temos na fé do ribeirinho um dos elementos norteadores da construção de seu espaço, sendo que as festas funcionam como fator de mudança dentro do tempo e do espaço das comunidades. São momentos de grande vivência para os moradores das comunidades ribeirinhas e representam a manifestação de uma das facetas que o grupo possui, sua forte religiosidade.

As atividades realizadas durante a festa constituem momentos onde o espaço ganha contornos diferentes do que possui durante o cotidiano das comunidades, cada morador vive o espaço de uma maneira particular. Esse momento está ligado à fé e devoção que está presente no festejo, sendo resultado da cultura e do modo de vida dessas populações.

E nesse sentido que o espaço representa estas relações. A organização para a festa reflete o trabalho e suas relações, sejam elas conflitantes ou não, de acordo com o que já foi previamente definindo cada atividade será desenvolvida em dado local que já foi pensado para aquele momento. A dinâmica espacial passa necessariamente pela funcionalidade, tanto para um festejo como para outro, todavia esta mudança ou movimento no espaço da comunidade só pode ser observado no período da festa, quando passa este período os locais que serviram para alojar algum momento do Festejo voltam a fazer parte do universo cotidiano.

O artigo pode contrariar a tese comum que não define a cultura de certos grupos. O estudo dos festejos demonstra a riqueza cultural dos ribeirinhos manifesta em suas vidas, manifestações, construção de mundo e que por isso são inegáveis merecedores do exercício de cidadania, pois estão inseridos no âmbito da sociedade brasileira.

 

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