A ESCRITA DA HISTÓRIA
notas sobre a criação historiográfica
*. O lócus, a matéria essencial da pesquisa historiográfica, é a linguagem: isso não exclui a politicidade específica do “campo historiográfico”, mas a pressupõe.
*. A criação historiográfica é uma espécie de conjugação de construção e desconstrução interpretativa de “materiais lingüísticos” [documentos em geral são sempre sistemas de linguagens: figuras, máscaras, peças, montagens, arquivos, astúcias, poderes e forças cristalizadas; interpretações, perspectivas, lócus, disfarces, máscaras, instituição: cicatrizes, chancelas, sinais, inscrições, regras im-postas que formam redes: o historiador cria redes pro-vindas de redes já organizadas: poder sobre poderes: força contra forças]: a história é um dos principais eixos de apoio discursivo da ocidentalidade [sempre entrelaçado aos eixos cristão, científico, filosófico e jurídico]: a História é o gerador e mantenedor disciplinar dessa discursividade enquanto temporalidade: a História é o cão de guarda do tempo [a espessura essencial diante do quase nada em fluxo que é o imediato: sua deformação se dá exatamente naquilo que é formatador, nos fluxos criadores e mantenedores do real: sua missão não é desprezível nem sua marca invisível: seus poderes são muito maiores do que se imagina: assim como a Literatura, ela age numa dimensão gerativa, fundamental].
*. A forma, os sentidos, as inter-relações de qualquer “campo fruto de pesquisa” historiográfico é imposição interpretativa [só se efetiva em confronto: entre métodos, teorias, “materiais historiográficos”: im-posição contra outros “campos”, sejam teóricos, institucionais, metodológicos, políticos ou religiosos], conjugação de forças e posições não “estado de existência” independente do interprete-historiador.
*. A pesquisa ao procurar estabelecer o “campo” apontando para alguma continuidade impõe e projeta sua narratividade, sua temporalidade [os signos não se encontram nem estão entrelaçados in natura (não existe nada in natura: nem a natura): uma “essência” ou uma “verdade” que estão esperando para serem descobertos: a “verdade” é sempre resultante provisória de uma “correlação de forças” (ficção esquecida que é ficção, interpretação, perspectiva), de guerras, de contrastes, de uma metamorfose incessante enquanto conquista e imposição de sentido: luta pessoal, grupal, coletiva, luta de interpretações: insaciabilidade de um lócus], sua lógica, suas próprias forças e razões a uma “matéria” que, tanto para ele quanto para seu “leitor”, parecerá ou deverá parecer e aparecer como independente de um trabalho teórico, de uma construção, o que não prejudica sua força política, sua materialidade, mas a pressupõe. É exatamente o “efeito de realidade” das construções teóricas que traduz e possibilita sua utilidade, sua disposição política e plástica capaz de atingir o imediato como lócus de atuação, de mudança, de i-mobilização, de reação [se houvesse uma “natureza”, uma “sociedade”, um “homem” seria praticamente impossível qualquer tipo de “revolução”, de “mudança revolucionária”, de descristalização do horror].
*. Os discursos se formam sempre dentro e fora de determinados controles que é preciso apreender e surpreender em seu exercício, normalmente camuflado. Controles que estão em todo o “sistema”: das instituições, dos documentos, do historiador, das teorias, dos métodos, da escrita, da própria tribo em sua essência [fantasmas não domados dos sistemas de crenças que formatam, formam, reproduzem e direcionam o sujeito como membro da ocidentalidade].
*. Não impor “características genéricas” aceitáveis somente enquanto generalizações vindas de “fora”, formalmente articuladas a outras generalizações num círculo de autocomprovações. Uma coisa é a “matéria do campo” construída pela pesquisa [que nunca é uma “origem”, uma “matéria exata”, mas um não-lugar, um não-eu, mas o disparate in-significante, o absurdo, o equívoco, o paradoxo, que, depois da pesquisa, não conquistará nem chegará a uma verdade, ao definitivo, a uma “identidade primeira”, a um “solo fundamental”, mas a mais um estado de “caos” para outros: círculo de poder transitório], outra é aquele “campo imaginário” (a origem, a causa, o princípio, a paternidade, o fundamento, o que aconteceu, o acontecimento, o fato) que se confundirá com o resultado da pesquisa historiográfica, não por um “erro teórico-metodológico”, mas por uma conseqüência inescapável das estruturas conceituais, metodológicas e filosóficas da própria História: que não se sustenta sobre nenhuma “realidade”, nenhum “absoluto”, mas sim sobre perspectivas e interpretações, “escritas”, onde as forças se ex-põem em guerra, re-velando jogos de dominação (sempre com regras que é preciso compreender) onde o historiador será aquele que atinge com violência a violência do disparate que é o “campo” antes da pesquisa (rede inerte de interpretações que será posta em movimento pelo historiador): o historiador é, antes de tudo, aquele que subverte interpretações e posições anteriores criando sua própria posição, que chamará de “fato” [não há um “encadeamento de fatos” e a eclosão de um “fato” por “acúmulo evolutivo”, “amadurecimento histórico-social”, “ação dos sujeitos”, “clivagem econômica”, mas os devires do devir: cabe ao historiador pôr em andamento o que estava imóvel, morto, cristalizado enquanto “sistema documental”, não enquanto “realidade”: nada aconteceu-antes, tudo acontece-agora no texto historiográfico e naquilo que ele atingir no-mundo: os “sistemas documentais” não representam nada, não reproduzem nada antes da cozinha do historiador onde são criadas certas perspectivas periculosas do tempo], sendo este sempre singular, único, estranho e exclusivo, jamais servindo como “elemento numa série”: o historiador atinge o devir com as forças e poderes do seu lócus.
*. Ao “construir o campo”, é preciso saber esquadrinhar “marcas diferenciais”; repertoriar desvios, lacunas, irregularidades, perturbações, ritmos e acidentes; apontando heterogeneidades, regularidades, dimensões, classificações, interferências: mas antes de tudo é preciso saber que esquadrinhar, repertoriar, apontar dizem respeito a ações criativas, interpretativas [que ampliam, reduzem, suprimem, falsificam, revertem, corrigem, inventam, dramatizam, montam], geradoras de realidades discursivas, não ações que encontraram algo, que organizaram uma existência prévia, um sistema pré-existente: sem conciliação, sem a cimentação do “campo” numa realidade plena, acontecida.
*. A singularidade da emergência [pontos de surgimento que se produzem em determinados estados de forças como um afrontamento entre forças: o lócus privilegiado do historiador: o “campo imaginário”] é o que nos interessa. Esse “campo” não pode ser explicado por “antecedentes” ou pretensos fins, o que seria criar materialidades anteriores e posteriores como “causas” e “efeitos”, o que faz se deixar de ver o historiador como aquele que formata e instaura o “campo” como estado das forças, sendo, ele mesmo, uma das forças principais.
*. Os acidentes, os desvios, as heterogeneidades, as multiplicidades, os diversos poderes em atuação, as forças em questão, quem se apoderou e quem se apodera do “sistema de regras”, os “tipos” em luta, as divergências, os conflitos, as mediações, os momentos instáveis e estáveis, a entrada em cena de cada uma das contradições: compreender que o “campo” é criado não resolvendo nem eliminando as contradições, mas entendendo que o “campo” é esse disperso de forças que se impõe ou se dis-põe através do historiador enquanto agente disciplinador. Em cada novo “estado de forças” o “autor”, os “autores” são acrescentados à ação, se tornam a ação.
*. Quem pronunciou?, quem é o responsável pela construção, manutenção, difusão, naturalização dos discursos do “campo”?: os que definem os elementos do “campo” estabelecem a verdade e a realidade do campo, o que aquilo “é”, para que aquilo serve, quem utilizará tal “campo”: nada é inocente. O historiador não deve se eximir de diagnosticar se as forças postas por ele em ação, e ele mesmo, contribuem para a expansão ou para a degenerescência da vida, se sua própria atividade e construção é periculosa ou não, qual a direção dos valores.
*. Interpretar, no fundo e fora da perspectiva metafísica da origem [tudo está dentro das loucuras da tribo, faz parte dos seus rituais, suas crenças: vivo enquanto imaginário temporal], é o papel do historiador (goste ou não): conquistar e se apossar dos “sistemas de regras” (em essência in-significantes) im-pondo um sentido, um outro sentido, um outro jogo com novas regras, criar o “campo” com seus tradicionais “efeitos de realidade”, principalmente porque a História não consegue “fazer outro jogo”: ela é um dos suportes fundamentais da ocidentalidade sem a atividade plena dos eixos da cristandade: sua re-significação é sempre uma “invenção” (o que não tem origem, mas redes de força e poder em configurações) que teima em aparecer como “descoberta” [o que existiria antes da pesquisa, da interpretação: nossa busca é por uma reflexão “contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico”].
*. A história, uma criação da História, uma série escrita, um imaginário, uma mentalidade, é uma relação de forças, uma relação de poder: não é nem poderia jamais ser contínua, fixa, linear ou algo em “constante transformação”, como se “existisse de fato”, fosse algo “externo”, uma espécie de em-si kantiano que fluísse, que se modificasse pela “ação dos homens”. Por isso a história não poder ser nem descontínua nem descontínua como se tivéssemos tratando de um “processo separado”: seu não-linear, suas rupturas, que são a “luta entre forças” de interpretação [uma luta por posição, luta ideológica, política, jamais uma luta-aí-no-mundo] que estão sempre se impondo e reimpondo enquanto realidade e interpretações verdadeiras e reais. O “contexto histórico” não é mais do que a resultante que domina o imaginário enquanto realidade. A história não possui uma natureza, uma essência, uma origem, uma unidade, um objeto, ao contrário, a história é heterogeneidade, multiplicidade, perspectivas em luta, imaginário ensandecido pensando que “aconteceu” e em in-constante transmutação, escritas que deliram que são o próprio real, discursos pilares da temporalidade.
*. A história enquanto invenção, escrita, imaginário, é construção de relações e condições de todo tipo, redes vivas de poder e contra poder. Sua emergência e sua proveniência não é um caso de realidade a não ser em segunda instância, quando entra nas “correntes sanguíneas” dos indivíduos, dos grupos, das instituições, das práticas sociais, das transmissões de saber enquanto relações de poder: o fundo da História é uma moral e todo historiador um moralista cristão perturbado com o silêncio de deus e os gritos apavorantes das ninhadas da tribo.