ZONA DE IMPACTO
ISSN 1982-9108 ab irato
Vol. 11, Ano XI, abril, 2008
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eichmann lê
alberto lins caldas
Departamento de História – UFRO
Centro de Hermenêutica do Presente
www. albertolinscaldas.unir.br
albertolinscaldas@yahoo.com.br
*. se o monstro lê, a leitura não consegue modificar o monstro, a leitura é da mesma natureza do monstro, a leitura formou o monstro: um monstro escreveu o texto, um monstro lê o texto: o livro, o texto, a escrita, a leitura são monstros.
*. mas se a leitura nada tem a ver com o monstro, o monstro finge a leitura, o monstro não está lendo, o monstro mente, exatamente porq é monstro.
*. o monstro é analfabeto? todo analfabeto é um monstro: se todo monstro não for analfabeto e todo analfabeto um monstro, como salvar o livro, a leitura, a escrita, o saber – de ser um monstro por servir, também, aos monstros.
*. ou o monstro lê apenas aquilo q é monstruoso, feito apenas para o monstro. aquilo q de tão monstruoso apenas o monstro lê, o monstro sabe, o monstro entende: se lêssemos e entendêssemos esse texto, legível apenas para o monstro, é porq seríamos também um monstro.
*. o monstro parece inocente. o monstro é inocente. ou o monstro finge a inocência por ser monstro? então a leitura, o livro, o texto q o monstro lê também finge inocência: o texto q o monstro lê é monstruoso porq finge não ser monstro. como saber qual texto não finge inocência, qual texto não é monstruoso?
*. se escrevêssemos um texto q os monstros conseguissem ler é porq também seriamos um monstro, teríamos escrito um texto monstruoso.
*. haveria então textos para os monstros e textos para os não-monstros, textos monstruosos e textos normais, textos degenerados e textos verdadeiros, textos q ex-põem o monstro e textos q são o monstro.
*. o mundo seria dividido entre os monstros e os normais, a verdade ou a mentira: e o q os normais deveriam fazer era destruir os monstros, destruir os textos monstruosos, exilar a escrita e a leitura monstruosas.
*. de repente todos os normais, todos os textos verdadeiros, se tornariam monstros por tudo se tornar normal? ou o normal é esse nazismo da totalidade? essa absoluta exclusão? essa íntima e carnal fusão entre o texto e a máquina tribal: o texto é a máquina tribal escrita, transcrita, exposta.
*. eichmann lê: eichmann é um monstro? o texto q ele lê é um texto monstruoso?
*. eichmann escreve: a escrita não “liberta”? não “eleva”? não é “conhecimento”, “sabedoria”? há uma escrita, um conhecimento, uma sabedoria q não seja iluminadora?
*. o q incomoda em eichmann lendo, eichmann escrevendo, eichmann com livros? se estivesse longe dos livros, se olhasse somente para o teto, para as paredes, para os chinelos, incomodaria? porq o monstro incomoda? porq é a diferença, normalmente radical. quando o normal, mata, rouba, mutila ele é apenas um rato a mais, um normal a mais q a normalidade persegue, mutila, elimina, prende, cala não por ele ser um monstro, mas pra divertir a normalidade com os exercícios da mais crua normalidade. os desvios da moral não tornam monstruoso o normal. a moral precisa de desvios pra se fortalecer enquanto moral. sem o exemplo do desvio a moral fenece.
*. o normal é o monstruoso: isso é eichmann. o monstruoso é apenas o normal se exercendo normalmente, excluindo, separando, destroçando a diferença, o outro, e funcionando em suas produções, reproduções, defesas e crenças: o monstruoso é uma criação do normal contra o outro: sem segregar, sem separar, sem excluir, sem eliminar, sem vitimizar, sem se agregar em manadas, cardumes, massas, grupos, partidos, igrejas, comunidades, famílias, nacionalidades, regionalidades, territórios, costumes, identidades, crenças o normal sente dificuldade em ser normal: a normalidade é fundamental para o funcionamento, normal, da máquina tribal.
*. por q eichmann é um monstro? porq eichmann é normal: não um grande normal, mas, como todos, um pequeno normal, um minúsculo normal, um insignificante normal, jamais um a-normal, q é precisamente o q o normal afasta, torna monstruoso pra ele. e como todo normal é moralista (jamais ético!): tem na moral seu suporte: obedece, sempre, a poderes. ele faz parte da manada. fazendo parte ele não contesta. não pode contestar (todos os q podem contestar já foram, estão sendo ou serão eliminados): pode apenas episodicamente quase discordar de por-menores risonhos, nunca do todo, da ação, da política, do próprio poder e dos poderes, de si mesmo, das crenças, da máquina tribal como um câncer empanzinado.
*. eichmann não é um monstro (aquele q está fora da normalidade): é apenas um normal q matou burocraticamente milhões de outros normais em nome de normalidades, de crenças normais, de um estado normal, de ciências normais, de filosofias normais, de políticas normais, de religiões normais (a máquina tribal não existe sem genocídios de todos os tipos): isso exaspera os normais porq mostra, expõe q todos os normais são periculosos, capazes da mesma “normalidade normal”, jamais anormal, monstruosa: o nazismo é a alma e o espírito da ocidentalidade (máquina tribal), não um desvio monstruoso, um “episódio histórico”: o nazismo é uma fratura exposta q expõe o sentido da máquina tribal (ocidentalidade), o espírito da cristandade, a alma do capitalismo, o “espírito da burguesia”: a máquina tribal sempre foi, é, e será nazista: mais ou menos é questão de quem sofre e de quem faz sofrer: é questão de posição.
*. a “monstruosidade” para o normal e para o q ele faz seria liberá-lo, absorvê-lo, livrá-lo, não compreendê-lo em sua normose fundamental, em sua periculosidade essencial.
*. a escrita, a leitura, a cultura, a tradição, a filosofia não salvam não “levam à consciência” (a consciência não é nada mais q uma dobra ressentida), a superação da normalidade, a uma “iluminação”, não ad-vêem dum “caminho do bem”: a escrita, a leitura, a cultura, a tradição, a razão são criações da normalidade em seu pleno exercício de normalidade: suas funções são integrar, estruturar, difundir, repetir, reproduzir, produzir, ensinar a proteger a normalidade em todas as suas dimensões: o exercício das normalidades, a normose, cria o “mundo ocidental”, a “cristandade” (a máquina tribal), o corpo, a consciência, a natureza, a história, o mundo, o real, o horror, enquanto tudo isso cria a ocidentalidade num círculo ... normal.
*. eichmann não é nem faz parte de uma “banalidade do mal”: se houvesse o mal e eichmann fosse o mal ou uma “banalidade do mal” haveria os normais e os monstros, o bem e o mal, os livros dos normais e os livros monstruosos, os livros do bem e os livros do mal, o mundo do bem e o mundo do mal, as vitimas e os carrascos, os certos e os errados (as metafísicas são partes inextirpáveis do funcionamento da máquina tribal, q não funciona sem metafísicas), e não se compreenderia nem eichmann nem “seus mortos”. as vitimas não poderiam também se tornarem monstros, como sempre se tornam. eichmanns e vitimas são apenas faces da normalidade. quem tem poder exerce a normalidade periculosamente, gulosamente. esse poder exercido enquanto estado, instituição, organização, partido é periculoso. é onde o normal se torna objetivamente mais poderoso, onde ele é realmente ele: nunca onde sua força se expande, mas onde suas forças doentes adoecem, onde seu veneno envenena, onde a normose se plenifica. onde ele pode criar vítimas de todos os tipos. a banalidade está na normalidade, não no mal. o mal não existe. se as vitimas fossem sempre e somente vitimas, não se tornassem, não quisessem jamais se tornar carrascos de alguma forma, assumindo “poderes de estado”, “poderes de polícia”, querendo ser e ter um estado, se tornar instituição, história, sociedade, território, crenças, identidade, se poderia pensar no mal: mas o mal é apenas a posição de um normal sob a posição de outro normal.
*. os “crimes da história” e os “crimes da mídia” chocam, abalam, abismam, desesperam, espantam, “clamam por justiça” por serem absolutamente normais, criações de normais, “feito” por normais (criminosos, jornalistas, historiadores, fofoqueiros) para normais (o “povo”, os espectadores, os telespectadores, os cidadãos, os curiosos, a multidão), pra q normais se horrorizem, se indignem, se revoltem, gozem, fuçadores, indiscretos, intrometidos não com a monstruosidade, com o horror (q é apenas a normalidade em sua normalidade, em sua periculosa metafísica), com a excepcionalidade, com a unicidade, com a singularidade, mas com a normalidade em seu pleno e normal exercício: assim os normais, por absoluta falta ou escassez de a-normais, de monstros de verdade, de anomalias, de alteridades nas suas próprias manadas (quase toda diferença radical já foi eliminada: resta apenas as “disfunções morais” tornadas disfunções legais), podem dizer-se q aqueles são monstros, são maus, são desviados, são aberrações, escondendo q são apenas normais iguais a eles, normais fracos ou fortes, poderosos ou cansados, vitoriosos ou derrotados, coléricos ou alegres, iguais a eles: e q todos fazem parte da mesma máquina tribal, do mesmo círculo do horror, da mesma normose q é a máquina tribal, (a ocidentalidade, a cristandade, o nazismo tribal).
*. a questão dos alienígenas [q não faz parte da “terra” enquanto criação da máquina tribal: sua topografia imaginária, suas práticas e crenças, suas matérias primas, seus caminhos, suas possibilidades, seus horizontes, seus eixos: tudo q não-é-ocidentalidade, q ainda se opõe a ocidentalidade, a cristandade, às fagocitoses imperiais da máquina tribal] é outra questão: os alienígenas são o monstro perfeito, a duplicação do “monstro interno” numa materialidade, numa região, numa outra vida q se opõe. a máquina tribal só descansará quando só houver apenas ela: e se isso for impossível, lutar, e desesperadamente tem lutado, pra q se chegue o mais perto possível de só haver apenas ela e suas normoses doentes, adoecedoras, envenenadas, envenenadoras, empanzinadas.
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