CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE RONDÔNIA
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Dois trabalhos são escritos sobre o mesmo período. Mad Maria de Marcio Souza e Trem fantasma de Francisco Foot Hardman, produzidos a partir do evento da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, o que ocorreu na virada do século XIX para XX.
À época as terras onde foram plantados os trilhos pertenciam parte ao Estado do Mato Grosso, parte ao Estado do Amazonas, vindo mais tarde a ser Território do Guaporé (1947), Território de Rondônia (1956) e por fim Estado de Rondônia (1982).
A ferrovia Madeira Mamoré, depois de duas tentativas fracassadas é construída entre os anos de 1907 a 1912 quando foi inaugurada. Sua trajetória de funcionamento é fugaz para os fins que haviam sido projetados. Após o abandono pela Empresa americana ela acaba sendo “nacionalizada” no início da década de 30 e chega aos anos 80 agonizando.
Nos últimos anos alguns frágeis movimentos (alguns eleitoreiros) de pequenos grupos têm sido tentados com o propósito de preservação e de utilização com fins turísticos, porém nem isso tem sido possível encontrando-se completamente abandonada e desativada.
A maior parte da historiografia regional tem sido produzida em torno do evento da construção da ferrovia. Partimos sempre do trem e no trem para qualquer estudo regional, e ninguém foi mais feliz na escolha do título de um livro quanto Hardman. Ao chamar a ferrovia de trem fantasma na década de 80 quando muitos ainda acreditavam na sua restauração, quando ainda funcionava precariamente. A denominação foi como uma previsão do que é hoje a Madeira Mamoré onde nem mesmo a preservação do patrimônio histórico tem sido possível. Fantasmas realmente são as velhas carcaças que se encontram abandonadas ao longo dos trilhos soterrados dos 350 kilometros da velha ferrovia. Sem preservação até os fantasmas estão desaparecendo e um trabalho ficcional como Mad Maria de Marcio de Souza, parece surrealismo.
Na contracapa do livro de Marcio de Souza consta uma observação da editora de que a história narrada por ele de forma debochada e irônica denuncia a insensatez que a chamada civilização ocidental vem encenando na Amazônia. O termo debochado e irônico chama a atenção vez que quando li pela primeira vez o livro ele me pareceu tudo quanto eu já havia escutado pelas ruas da cidade de Porto Velho, cidade onde foram instalados os escritórios da companhia construtora da ferrovia.
Eu nunca havia pensado no sentimento de deboche ou de ironia vez que as imagens que o livro traz é contado e recontado em forma de drama pelos antigos que contam que seus pais e avós contaram. Pequeno grupo de descendentes de barbadianos tenta resistir, mas hoje, na terceira geração estão se acabando junto com as máquinas da ferrovia, perdendo a identidade.
O que Marcio de Souza escreveu está impregnado na população tradicional que agem como herdeiros karmicos dessa trama. Repetem histórias contadas e há um certo prazer na narrativa como se herdar essa história trágica fosse uma honra. É uma luta já enfraquecida contra o processo migratório que não (re)conhece essa historia.
Os heróis, grandes nomes como Farquar e até mesmo os milhares de mortos comparados à quantidade de dormentes dos trilhos são um estandarte que se exibe com orgulho, ou quem sabe se acredita que se poderia ter feito diferente, poderia ter dado certo. Há, talvez uma vontade de se escrever essa história com outro final, um final feliz que não aconteceu.
Há ainda em pequena parte da população o sonho de que o trem possa funcionar, correr por sobre os trilhos, para se apagar o fracasso, para justificar tantas mortes. Mas o que restou da fantástica obra de se construir uma estrada de ferro em uma inóspita região, foram apenas os fantasmas, hoje carcaças abandonadas ao longo dos trezentos e sessenta e cinco quilômetros de trilhos que vão de lugar algum a lugar nenhum.
Com o processo migratório as imagens vão sendo desvanecidas e sobre isso Francisco Foot Hardmann aborda dizendo que o sentimento de necessidade de voltar no tempo, de resgatar a Madeira-Mamoré vem sendo destruído pelo processo migratório.
Francisco Foot Hardman apresenta um trabalho não menos denso que o trabalho de Marcio de Souza, contudo em razão da sua abordagem fazendo uso mais do cenário e dos diretores do evento, deixando menos expostos os milhares de figurantes do triste espetáculo ele se nos apresenta menos doído. São raças e números e sua trama é produzida a partir de toda a conjuntura que resultou na construção da ferrovia, sejam os projetos de modernidade para o Brasil, vez que se vivia o momento da montagem do maquinismo fantamasgórico conforme ele observa, ou sejam, as negociações políticas entre Brasil e Bolívia, os interesses internacionais, ou a exploração da borracha. Permeia suas análises com os acontecimentos políticos da época, como o caso do barco Satélite, e as suas ligações com a Madeira-Mamoré. Causa menos desconforto a leitura, embora cause muita perplexidade.
O trabalho de Foot Hardman com dados de fontes documentais apresenta um estudo cientifico sem, no entanto, deixar de vislumbrar as imagens da novela de Marcio Souza. Mad Maria e Trem Fantasma construíram as imagens sobe a ferrovia. São dois trabalhos, talvez os mais importantes sobre o assunto. Duas abordagens, não duas interpretações, por isso se fundem pelas características de uma na outra. Se por um lado Hardman desenvolve um trabalho cientifico, comprometido com fontes, e principalmente buscando apreender a magnitude das descobertas industriais, a grande euforia e mudança de hábitos causados pela descoberta das maquinas. Marcio pelo caminho da ficção não se perde das fontes e constrói uma história rica de imagens. Hardman apresenta uma trama, trazendo elementos políticos que nortearam o período, Marcio apresenta o tecido que formou essa história.
Hardman traz o mundo de fora para dentro da ferrovia. Marcio mostra a ferrovia para o mundo. Os dois textos estão impregnados de poeticidade de uma grande carga de realidade trágica. Hardman tem como objeto principal as máquinas. Marcio os homens e mulheres.
Se o texto de Marcio traz o deboche e a ironia para montar a trama, o tecido dela resultante é repleto de uma carga trágica. Os personagens de Marcio, principalmente o médico Finnegan que dá inicio e que encerra o romance, deixa perceber como o meio transforma o homem. Há uma total inversão de valores morais e aquele médico que chegou querendo salvar vidas acaba por matar. Finnegan faz lembrar o que diz Hobbes, naquela linha imaginária entre emoção e razão. Os personagens de Marcio caminham por sobre uma linha imaginária entre emoção e razão e caem vencidos pela loucura.
Hardman trabalha no tema em concreto, mas traz no título a fantasmagoria que Marcio colocou na trama. Marcio escreveu entre os anos de 1977 a 1980 e Hardman entre os anos de 1980 a 1986, e por isso esses dois livros se completam sendo as melhores obras escritas sobre o tema.
BIBLIOGRAFIA
HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. Companhia das Letras, São Paulo, 1988.
SOUZA, Marcio. Mad Maria. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1983.
VEYNE, Paul. Como se escreve a História e Foucault revoluciona a História. Brasília: UnB, 1998.