dialéticas, literaturas e oligarquia

 

 

a Literatura brasileira é constante linha de fuga não somente das suas fundações mas daquele espírito que comanda seu desaparecimento enquanto ideologia da nacionalidade e do ocultamento dessa mesma nacionalidade (ofuscamento), sendo arquitetura (lócus de inspeção) cujos valores são parasitas ou epífitas da hegemonia, não se sustentando sem essa seiva ou esse apoio (a não ser no seu próprio “imaginário” em delírio): todos os seus “grandes momentos” são expressões hegemônicas;

para desenvolver alguns elementos dessa idéia tomamos parte do texto de paulo eduardo arantes (sentimento da dialética, paz e terra, rio de janeiro, 1992) como estimulador em transversais que se abrem pra críticos, escritores e filósofos, pra idéias que tocam sem saberem nesse parasitismo, que aqui toma dimensão conceitual que será invertida, pois em grande parte é exposição de uma coisa querendo dizer outra, mostrando algo que desaparece no aparecimento e aparece do desaparecimento: a nacionalidade e a “realidade nacional”, a forma montada da “história do brasil”, a realidade organizada pela própria oligarquia das letras enquanto educadores, políticos e jornalistas se tornou matéria constitutiva da Literatura em vez de serem objetos de ataque, de dissolução, de consciência, de inversão e superação;

a Literatura brasileira apresenta visceralmente “uma espécie de desgaste instantâneo por falta de atrito com a realidade” (arantes, 1992: 13), seja na dimensão do leitor, do escritor, da oligarquia, seja numa consideração filosófica mais ampla, seja mesmo através do ponto de vista da “cultura brasileira”, da “experiência brasileira” ou da “experiência intelectual do país” (1992: 14), já numa interligação bem interessante entre brasil e intelectualidade, como se uma dissesse a outra sem as redes de ocultamento tradicionais: mas essa “falta de atrito” não é levada nunca até as últimas conseqüências nem pode ser;

exatamente por essa “falta de atrito” (tomada aqui à revelia da análise de arantes) é que não há, seja na “cultura nacional”, seja na nossa preocupação (a Literatura brasileira) nenhuma “dialética de localismo e cosmopolitismo”, “tendências universalistas e particularistas”, “pares antitéticos” em atuação na “penosa construção de nós mesmos” (1992: 9): o bárbaro e o civilizado (o índio, o branco, o negro) são projeções do mesmo e não há, em nenhuma “exterioridade”, dialéticas, sejam da natureza ou da história: dialética é maneira de ver, de projetar, de armar e explicar um campo definido pela própria “teoria dialética”: dizer que a “cultura brasileira” se organiza em “pares antitético” é, no mínimo, não saber dessa ejaculação epistemologicamente inconsciente: diz a pele pensando dizer o osso, escondendo o tutano e a fome monstruosa;

muito menos “entrechoque de opiniões”, “sistema significativo de paradas e movimento”, “ordem e desordem”, “dialética do espontâneo e do dirigido”, ou “certa sensação de dualidade que impregnaria a vida mental numa nação periférica” que joaquim nabuco teria dado “feição clássica” ao dizer que “tantos brasileiros preferem viver na Europa”, mas se vêem na “pior das instabilidades”, ou na “América”, mas enquanto ali “falta a pátria”, aqui “falta a paisagem” (1992: 14), sem definir esses inocentes e genéricos “tantos brasileiros”, dando a impressão de “todos os brasileiros”, numa inversão da parte (as elites, a oligarquia das letras, os proprietários) pelo todo (os brasileiros, o povo, os tosquiados, os pobres, os negros, os des-possuídos), da oligarquia pela nação, como se a questão inteira fosse esconder, com a má-fé característica, a mais elementar das sinédoques utilizadas pelas “elites nacionais” pra desaparecer diante de uma cortina de pares em atuação (o carnaval das dialéticas escondendo com suas fantasias a maledicência e o escárnio como componentes da “brasilidade”: a dialética usada pra esconder o mesmo, o monofônico, o monocórdio), como se a questão estivesse ex-posta através das palavras de drummond a mário de andrade (dois oligarcas das letras em seu sentido mais agudo) citadas no texto de arantes: “lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados” (1992: 15): são aristocratas no desterro: ainda portugueses civilizadores em terras bárbaras: por isso escrevem todos tão bem em português;

continuando com “a sensação de estar fora de eixo em relação a um mundo do qual entretanto somos parte” (1992: 15): a “dialética neste mal-estar da sociedade brasileira refletida pelos seus ideólogos” (1992: 15), num reforço de sinédoque, onde o “mal-estar” pretensamente de uma totalidade, de uma nação, de um povo (se é que esses todos existem), se “reflete” nos “seus ideólogos”, como se esse mal-estar fosse realmente do total e não de um bocado desbocado pra se esconder e esconder o todo na construção e manutenção simbólica: a sensação de “estar fora”, de estar à margem, de ser estrangeiro, de “não fazer parte” diz muito da oligarquia enquanto “elite” (uma invenção de si pra si mesma tanto pra convencer quanto se convencer) e da hegemonia onde parasita: o apartamento como condição de existência;

oligarquia das letras estruturando visões de si mesma através das palavras de paulo emílio: “não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro” (1992: 15): mentira deformada onde os oligarcas da cultura (“nós mesmos”: mais uma vez a parte pelo todo) escondem seu provincianismo, seu bairrismo doente, sua incapacidade visceral em ser minimamente multicultural, em ser anticultural ou acultural, em atingir violentamente sua existência, em não ser um olhar viciado de “elites”, em fazer crítica literária ou literatura radical consciente de si mesma e da “cultura nacional” como campo monstruoso, em avaliar as “origens” produzidas e suas funções políticas, tomando elas em cada momento oportuno como “realidade naturalizada”, minimamente incapaz de fazer o que propõe quando diz nas palavras de antonio candido citadas por arantes, “o outro é necessário para a identidade do mesmo” (1992: 16), quando o mesmo (a busca pela identidade: coisa própria de burguesias sem caráter e fascismos delirantes) se estabelece precisamente pela dissolução, pelo afastamento, pela não-audição, pela subordinação, pela repressão, pelo aniquilamento do outro: o mesmo é produzido, reproduzido e mantido (teatralizado) pela oligarquia, pela “cultura nacional”, em nome de uma identidade, mas essa identidade esconde sua atuação estatal, repressiva, classista e condizente com todo o “espírito”: o outro entra na equação pra esconder o mesmo, não pra efetuar um diálogo, uma clivagem, um combate, um esclarecimento: sem o artifício do outro o mesmo afundaria no seu próprio esterco;

o “sentimento íntimo de inadequação” (entre o “berço nativo” e a “metrópole”) aparecendo como “o drama do intelectual brasileiro, situado entre duas realidades, condenado a oscilar entre dois níveis de cultura” (1992: 16) é um chiste do século xix (os portugueses daqui e os portugueses de lá, uns com saudades do outro: palhaçada), pois nunca houve tal “drama” realmente: sua função é onírica e de camuflagem, isto é, dá a sensação de fissura, de importância (a oligarquia das letras ainda é uma ex-pressão pequeno-burguesa, classe média em delírio de minúsculos poderes, febre de sinhozinho antes de casar e estar bem empregado, assanhamento de “sinhazinha que sabe escrever” ou de “servidor desocupado”), de estar ligado numa ruptura, tenso entre dois mundos, entre duas posturas, entre duas casas (a que se tem e a perdida): assim a oligarquia das letras pinta pra si mesma o núcleo da sua ideologia: a falta do drama ou tragédia e o excesso de “teatro”, o explícito do bairrismo (“ela é carioca, ela é carioca, olha o jeitinho dela andar”), se diz cosmopolita: pinta a “aldeia” (que por se dizer mais que uma aldeia não se torna mais que uma aldeia, mas menos que uma aldeia, pior que uma aldeia) mas diz pra todos que somente assim se é universal, esquecido que a universalidade é forma maníaca de bairrismo europeu principalmente quando não consegue atingir sua realidade íntima, mas apenas a visibilidade “folclórica” ou jornalística: o universal é universal apenas pra si mesmo: a “aldeia” é sempre pintada teatralmente, jamais como fratura exposta, como desvelamento radical, como articulação que aponta o monstro e explode a aldeia (a aldeia sempre se preserva e quer continuar: sua teatralização nunca é terrorista): isso é impossível porque os elementos teatrais ligados à hegemonia (a Literatura brasileira é a hegemonia em teatro, a comunidade dramática), impedem esse excesso que transformaria a Literatura em literatura: o escritor se transformaria em libertino, deixando a oligarquia das letras, e essa operação se torna cada vez mais impossível: fora da oligarquia e do mercado nada acon-tece ou pode acontecer: o escritor, como se dizia antigamente, é somente “um lacaio” do mercado e da hegemonia: e assim vive, sobrevive, faz o supermercado, cruza, alimenta as crias, a preguiça, a covardia e a burrice escondida porque “escreve bem”;

o modernismo é apresentado por arantes na esteira de candido como um “desrecalque localista”, movimento que equilibra “pela primeira vez os termos do dilema nos quais nabuco apresentou o mal-estar na cultura brasileira”, “síndrome específica da experiência intelectual do país (...) da Arcádia ao Modernismo” (1992: 17): primeiro se esquece que o modernismo é visceralmente uma invenção da oligarquia das letras em sua vertente caipira, vertente que não somente não conseguiu escapar como reforçou e fundamentou: segundo, que o modernismo não desrecalca nada, mas reforça profundamente a “brasilidade” agora industrial, o bairrismo mais capenga e a classe média do lócus de inspeção; terceiro, coloca o modernismo no seu lugar de direito na seqüência histórica, isto é, há um lugar garantido, hoje considerado central, na arquitetura tomada e refeita pela oligarquia do café com leite, oligarquias da cana-de-açucar, da carne, das terras e das fábricas, oligarquia da “construção civil”: quarto, é esquecido e não pode ser lembrado desde que antonio candido tornou o “arcadismo” um “momento nacional”, que o antes do “segundo império” (existe coisa mais ridícula?) em Literatura brasileira é invenção produzida pra resignificar, o antes como tempo pro-posto pra ser amnésia que é um depois, pra tomar um lugar de origem, coisa que antonio candido retoma e refundamenta pra um outro tempo, dando uma sobrevida ideológica ao lócus de inspeção, agora refeito com novo e reforçado “rigor moderno”, modernos métodos e modernas politicidade: o lócus de inspeção agora é moderno: construiu, escreveu, impôs uma história pra si e acredita e faz com que se acredite nela;

a Literatura brasileira agora reconhece ter uma “Dialética do local e do universal, nos seus próprios termos – a alternância de complementaridade, divergência e equilíbrio entre essas tendências exprime não só a lógica específica do sistema literário brasileiro mas também a regra geral de certas linhas evolutivas de nossa sociedade (...) da cultura brasileira, marcada pela tensão própria da dupla fidelidade ao dado local e ao molde europeu, um processo dual portanto de integração e diferenciação, de incorporação do geral pra alcançar a expressão do particular” (arantes, 1992; 17): aqui temos uma exibição lapidar, onde aparecem não somente os elementos mas a idéia-sintese: uma das principais encenações do lócus de inspeção (monobloco, monológico, monofásico, unidimensional) é se apresentar como plural (articulação das diferenças e dos outros radicais): exatamente o que não é jamais explicado é exatamente “a lógica específica do sistema literário brasileiro”: essa crítica instaura definitivamente a maioridade da Literatura brasileira, “nos seus próprios termos”, com sua “lógica específica”, com sua “tensão própria”: o lócus de inspeção agora inscreveu sua dimensão própria, dando a si mesma autonomia e igualdade na relação com “outros sistemas”: essa igualdade não se dá com um comparativismo radical, valorativo, epistemologicamente afiado e isento, fundados no valor literário, filosófico e artístico, mas com o cânone brasílico como única realidade: daí os eixos literários (escritores) e o centro (machado de assis: o funcionário público / guimarães rosa: o diplomata, mas não mudaria nada se fossem “oprimidos” os “miseráveis”) ganharem um valor “escolar”: são “grandes autores”: sem os outros internamente ou outro externamente o mesmo ganha pra si mesmo ou como “propaganda” todos os valores e sentidos;

 a literatice parasita (o lócus de inspeção) é composta não somente por “filhos de classe média”, “filhos de algo”, bacharéis e funcionários, servidores do estado, mas principalmente por aqueles que se dispões a não afetar, a não incomodar, a não interferir, a criarem os espetáculos pros “cidadãos”: a obra não “alcança significado geral mediante o aprofundamento do detalhe local” (arantes, 1992: 18), pois é exatamente assim que ela se apequena, se reduz ao episódico, ao jornalístico, ao senso-comum, sem chegar jamais a um “significado geral” que, pra isso, teria de tomar outro caminho, onde elementos desarticulados se articulam numa forma crítica e dissolutora, essencialmente negativa e iluminadora em sua inescapável obscuridade: o que fazem os escritores é produzirem mercadoria pro mercado: nisso se esgota todo o processo: o resto é feito por outra parte da oligarquia, críticos e professores, que se encarregam de sobredeterminar e sobrecarregar a “banana frita” com sentidos e filosofias, estéticas e valores, insaites e iluminações, tradições e gramáticas, boas escritas e bons estilos, que jamais estiveram na indignação, na composição, na intenção, na forma, na politicidade, na ética do escritor e da obra: sem isso tanto a obra quanto o escritor rolam sem sentido, ou melhor, ganham seu sentido primário como ideólogo e ideologia: o escritor (que tem escapado deixando a obra aos seus próprios cuidados) enquanto mercador e a obra enquanto espetáculo tem se apresentado somente como louvor, de uma maneira ou de outra, aos poderosos, aos costumes do senso comum, ao respeito realista as crenças, ao esperado e ao consumível, num apequenamento literário que serve somente a reprodução da hegemonia: por isso nem o mercado nem a oligarquia das letras pode se pautar pelo valor artístico e filosófico da obra;

nos cento e cinqüenta anos de instauração e funcionamento do lócus de inspeção (segunda metade do século xix e xx) jamais a Literatura brasileira serviu pra outra coisa a não ser “contar histórias”, “cantar pra dormir”, “contar pra entreter”, pra esquecer ou confirmar: a escravidão e as cecis, as lucíolas, as patas de gazela: a escravidão e o sabiá, a saudade da terrinha pululando de escravos e escravas: a escravidão e “era de noite: - dormias” ou “era nos primeiros anos do reinado do sr. d. pedro ii”: a escravidão e as vozes d’africa e as terezas nas valsas da correnteza: a escravidão e “ó formas alvas, brancas, formas claras”: a escravidão e os amores dos senhores, o esquecimento do escravo, a ótica dos agregados pra não ofender e se tornar o escritor centro da arquitetura esclarecendo com um eterno “algum tempo hesitei”: a república e os louvores do “novo mundo”, da liberdade, do voto, do “país do futuro”: a república e o estranho silêncio literário, realista, naturalista e racista nos sertões, nas favelas, na exploração das fábricas: a república e o “ai que preguiça”, o “vou-me embora pra pasárgada”, o “tinha uma pedra”, e o “e agora josé”?: a república e os débeis mentais como modelo de homem enquanto os escritores queriam e querem ser “amigo do rei”: a república, os cárceres da república, o mundo pegando fogo e “nonada” pra cá e “tiros que o senhor ouviu” somente de tinta, que ninguém é de ferro, pra lá, e papo de não mais findar com o demo no meio do redemunho e os críticos completando a obra: a república, as prisões da república, as ditaduras da república, as torturas, as perseguições, as humilhações da república e quanto mais esmagamento mais se servia ao brasil, mais se servia ao poder, ao governo, aos sensos comuns, a tradição, até o desejo incontido de sair na mídia e fazer um “caso especial”, pois essas são as funções da Literatura brasileira: forma e conteúdo, escritor e funcionário dos poderes, palhaços da hegemonia, não se distinguem: a obra é autônoma quando e somente quando o escritor se lança contra o mundo, indiferente e articulador das monstruosidades do horror: quando a forma conquista autonomia não somente estética mas ética e política: a obra e o autor que “permanecem” são protegidos pra significarem numa defesa espúria e confortante das “elites” perversas e sempre sobreviventes: nisso tudo que é a Literatura brasileira não há dialética alguma, nenhum sistema de pares em confronto, mas tão somente o como bem servir com o bem escrever;

a oligarquia das letras, por ter certeza absoluta e “confirmação dos sentidos” que a nação era uma dualidade gritante rasgada entre barbárie (povo) e civilização (elites), assumiu sempre um “modelo civilizado”: fundou seu modelo (formas e temporalidades) numa ideologia dual (centro / periferia, europa / brasil, capitalismo / escravidão, letrado / iletrado, império / república, branco / preto, índio / mulato, migrante / nativo, sertão / litoral, metrópole / colônia, cidade / campo: o senso-comum dos “dois brasis” e dos dois mundos desenvolvido / subdesenvolvido, céu / inferno): esquecida que essa não era nem é “a realidade”, mas uma das suas ideologias, isto é, uma das maneiras de se mostrar, manter, justificar, capacitar e esconder as formas de exploração e produção geral: esse é “fundamento objetivo” da Literatura brasileira: não é o brasil, como sempre pretendeu, mas sua base é precisamente seus próprios delírios ideológicos de fundação da nacionalidade nazi-auri-verde. a “matéria prima de uma certa experiência intelectual que se poderia chamar de sentimento dialético dos contrários” (arantes, 1992: 31) que funda todo o lócus de inspeção é fruto dele mesmo: não é base “externa”, mas parte da crença de sustentação, reprodução e consumo da hegemonia: daí porque a Literatura brasileira sempre quis “chegar ao brasil”, “dizer o brasil”, e o que sempre fez foi esconder ele;

não há nem nunca houve um “complexo colonial que nos deprime” (1992: 33) e que precisa ser driblado (desculpas olicarcas se tornando “explicação histórica”): as estratégias ideológicas se apresentam como “complexo de inferioridade” pra esconderem a inferioridade real da “cultura brasileira” enquanto produção de uma difusa oligarquia cultural na sua função essencial de apoio “teatral” a hegemonia (a fraqueza, a inferioridade, a subordinação explícita, a pobreza, o pobrezinho, a subserviência são expressões vivas das técnicas do agregado, do escravo e do servidor pra “se darem bem”, pra burlarem o sistema e sobreviverem, pra ganharem uma posição que lhe é negada mas ele conquista diante do senhor ou do chefe: assim vive a oligarquia das letras e a Literatura brasileira é a carta dessa “mentalidade” ao seu senhor e aos que devem rodear ele, o leitor): sua fraqueza em gerar tanto um pensamento autônomo, crítico e radical, quanto uma expressão artística singular: seu funcionamento e redes se abrem pra servir, pra suportar, pra esconder, pra implantar e reproduzir o “estado nacional”: pra isso precisa tentar mostrar “ostensivamente o circuito internacional de que afinal somos parte, ainda que subordinada” (1992: 33), quando é mais que óbvio que não faz nem nunca fez e não precisa fazer parte de um “circuito internacional”, pois isso faz parte do desejo dos outros e muito menos uma parte “subordinada” em que sentido for: e mais uma vez a ilusão: “num momento conta unicamente o metro internacional que nos diminui e rebaixa, noutro vale o apego sentimental à profundidade histórica do traço localista” (1992: 33): a inexistente “depreciação internacional” não existe por jamais a chamada Literatura brasileira haver incendiado a imaginação e a inteligência de ninguém “lá fora” (“aqui dentro” vive incendiando imaginações oligarcas que suprem o vazio literário): não é por perseguição ou por algum ridículo “problema lingüístico” (a língua não ser internacional: idéia estúpida mas cheia de adeptos, desde a “última flor do lácio” até ser uma “língua difícil”), mas por ser um lócus de inspeção (não realmente uma estrutura libertina, livre e libertadora), uma sub-ideologia insossa e frágil, incapaz de incomodar qualquer coisa: “nada leva a nada” (1999: 33): ou, como diz como defesa e não como crítica marisa lajolo (como e por que ler o romance brasileiro, objetiva, rio de janeiro, 2004), numa justificação apaixonada que expõe o cerne da estupidez literária da Literatura brasileira, seu bairrismo e regionalismo, seu comparativismo camuflador, oligarca e verde-amarelo, quando diz que prefere o romance brasileiro aos ingleses, pois “os ingleses são ótimos, mas... são ingleses (...). Neles ninguém anda de jangada, faz oferenda a Iemanjá nem beija de tirar o fôlego na esquina da avenida Ipiranga com a São João” (2004: 13): o romance, a Literatura é uma forma escrita da “novela das oito” com traços “cultos” pra esconder o ralo da estrutura inteira: sem atrito não há a chama bachelardiana, não há o incêndio conradiano ou o frêmito dostoievskiano, não há nenhuma fogueira literária na “escuridão nacional”;

a propalada “homologia estrutural entre a obra literária e a organização social” é deslocamento pra impossibilitar a visão: a homologia não se dá  entre a “obra literária” e a “organização social” (como sairiam satisfeitos os sociologismos e o nacionalismo!), mas entre a ideologia nacionalista e a obra, ou melhor, através da oligarquia das letras a obra é realização, representação do brasil, “da nação e do povo”: a “obra literária” é somente uma das mediações visíveis (sempre camuflada): o que é realmente homológico não aparece, não se arisca, não se expõe, não pode aparecer ou ser admitida: a dualidade e sua dialética não escancaram a “organização social” (principalmente porque realismos e naturalismos não podem fazer isso, e essas são prismas inescapáveis da Literatura brasileira), mas sua própria ideologia se reapresentando como o real: dúbia é a oligarquia das letras (acende uma vela pra deus e pro diabo, mas está sempre com deus) pra fazer desaparecer as contradicções envolvidas no processo geral de uma Literatura e as contradições esmagantes da “organização social” enquanto rede nazi-brasileira: por isso o dualismo jamais “representou um progresso na percepção da realidade de uma nação periférica” (arantes, 1992: 34);

a mentalidade colonial, os costumes, as relações de poder, certas escolhas valorativas e triagem de participantes, a estrutura gramatical do mundo do escravismo colonial com sua temporalidade, ritmo enunciativo e imagética, as oligarquias tradicionais, as políticas e mercados culturais são “incorporados ao mundo moderno, quer dizer, ao mercado mundial, (...) a ligação destes com o novo se faz através do atraso, que assim se torna estrutural, e em lugar de se extinguir, se reproduz” (1992: 37): é a reconfiguração do escravismo colonial e do capitalismo  (segunda metade do século xix) que formata a Literatura brasileira e a oligarquia das letras como casta difusa mas operante (artérias da hegemonia, arquitetura da nacionalidade), vasta mas em comunicação constante com as partes e com o todo, como produtora, reprodutora e guardiã das dimensões culturais da língua, casta parasita da hegemonia e Literatura de con-firmação: os filhos dos antigos oligarcas e servidores, letrados (escolheram a gramática do senhor e a boa escrita dos homens bons), bem postos e agora encontrando suas novas posições, modelaram a escrita literária, fundaram a temporalidade e o estilo, o tom e as formas, os temas e os focos, eixos e limites, segundo o espírito dos agregados e funcionários públicos, dos professores e dos jornalistas, segundo a capacidade de sobrevivência negociativa dos escravos e familiares, tão exposto por machado de assis (não como crítica, mas maneira de ser e sobreviver, como ele mesmo agia e achava a única maneira de ser), criando os grupos, grupelhos e instituições encarregadas de todo o processo, da escola a academia;

pergunta e resposta: “a que país alude a forma de um romance brasileiro? (...) alude antes de mais nada a um país basicamente dual e que esta dualidade é sobretudo forma da experiência social” (1992: 41): e aqui se abre uma fissura grave na Literatura brasileira: as “formas literárias” não aludem (não se arriscam num enfrentamento) a uma realidade de homens vivos em uma comunidade articulada imaginariamente e, logo, concretamente (nem poderiam aludir), mas ao imaginário enquanto dimensão de argamassa da hegemonia: a “experiência social” não é a do “país” (resultante ideológica, condição de trabalho e relações vitais), mas daqueles que reproduzem ele ideologicamente como suporte das forças centrífugas: a síntese-país não se transforma em “forma literária”, mas em alicerce da nação, dos elementos ideológicos da própria hegemonia: o deslocamento da oligarquia pro “país” desvenda tanto a Literatura brasileira quanto suas “formas literárias”: por isso essas “formas literárias” não conseguem ultrapassar as perspectivas bairristas e folclóricas (sempre teatralizações das “classes médias”: a Literatura brasileira é essencialmente decorativa) escondidas como “expressão universal” ou enfrentarem o “país” sem correrem o risco de afundarem em contradicções monstruosas: a Literatura brasileira persiste somente com um esquecimento gigantesco (faz perder de vista o perigo da hegemonia), ou melhor, seu “modo de conhecimento estético”, como diz schopenhauer (metafísica do belo, unesp, 2003), é sempre um conhecimento pontual, redutor, bairrista, fazendeiro, regional, ficando sempre aquém do risco de enfrentar (dissolver seu próprio suporte) a “idéia”, o grotesco que se articula em hipertexto e luta pra desocultar a totalidade monstruosa, ao mesmo tempo em que não há jamais uma livre e autônoma “consciência de si daquele que conhece” (2003: 89), mas exercício da nacionalidade através de uma específica oligarquia cultural: daí porque essa Literatura não é jamais “conhecimento do real”, mas reconhecimento, não é reflexão refinada, filosófica, radical de determinada confluência de dimensões, transversal estética, mas memorialismo jornalistico historiográfico (mas sempre alardeando que é arte): o escritor brasileiro não jamais um filosofo pleno mas um funcionário público em pleno exercício das suas esperadas funções: essa Literatura equivale aproximadamente a filosofia brasileira.

a Literatura brasileira parece ser a dimensão escrita da tradicional pergunta: “de onde você é?” no plano individual esse “é” diz, ao ser aceito, posto em lugar e tempo, quem é o “sujeito” em questão, o que pensa, o que faz, porque e como pensa e faz, porque sente assim, porque fala assim dessa maneira, e age e sonha e caminha e planeja e trabalha e se relaciona dessa forma e não de outra: é um localizador imediato de região, de língua, de cor, de corpo, de tradição, de tempo (reconhecimento e territorialidade: quem bica quem): esse “é” é mágico porque ele é o zoológico perfeito (ele põe no setor correto, na jaula certa, na placa definidora, na alimentação requerida, com os companheiros corretos, com os comportamentos de praxe, na casa, na rua, na cidade, na região, no país, na língua, na história: sem inversões, sem misturas, sem a possibilidade do monstro, sem o horizonte da fuga, da mistura ou da indefinição: sem a desmoralização do sistema): a taxonomia ideal (na legítima espécie, no verdadeiro gênero, na requerida ordem, no localizado sexo: sem mutações, sem vazios, sem indecisões, sem enquadramento, sem não-aceitações, sem revoluções radicais, sem não: a taxonomia é o indivíduo, a voz, o ritmo, a temporalidade); o senso absoluto (aqui nos pomos, aqui eu sou, aqui você se torna, aqui está minha diferença, a razão da nossa diferença, aqui nos reconhecemos, nos identificamos, aqui pomos a coletividade-formigueiro sobre tudo (instaurando cardumes): memória coletiva, gestos esperados e decodificados imeditamente, linguagem clichê); na história verdadeira (isso me diz, esse processo me caracteriza, essa origem me satisfaz, nos articula, essa tribo sou eu, esses irmãos me completam: somos iguais e caminhamos juntos como caminharam juntos todos nós antes de nós); na geografia adequada (sou deste lugar e esse lugar com essa gente e seus costumes sou eu: um fragmento disto: sou esse lugar mesmo longe dali: o lugar é uma marca: sou ferrado pelo lugar: o nascimento é a razão); na raça esperada (esta cor sou eu, a história dessa cor sou eu, as relações dessa cor sou eu, o lugar dessa cor é o meu lugar: fora desta cor sou estranho, outro, estrangeiro, bárbaro: essa cor me determina porque ela é natural ou, pelo menos, assim deve ser ou parecer: os dessa cor se entendem); no sexo visível (aquilo que visto, o tom da minha voz, pra onde e pra quem olho, quais histórias e piadas conto, como uso o gênero na linguagem, como exerço parte do meu desejo, com quem me relaciono é índice do meu sexo); na língua apropriada (a maneira como falo ou escrevo diz o meu lugar: me põe numa classe, num estamento, numa casta, numa região, numa família ou num favela, numa estribaria ou numa universidade, entre miseráveis ou entre ricos, entre sábios ou ignorantes, entre migrantes ou cidadãos, entre os que podem ou entre os que não podem): tudo isso e algumas coisas mais é o “é”, que não é uma pergunta nem uma explanação sobre o ser (não busca as redes e nelas o movimento monstruoso, mas o “folclórico”, o cotidiano nu e jornalístico que dissolve o “é”), mas sobre o aparecer e as coberturas dadas a essa aparência: respondido o “é”, podemos compreender plenamente esse sujeito, esse que se apresenta, isso que fala: esse “é” é pergunta nacional: com ele o sujeito, ou a coisa, se torna transparente, dado, acabado: não deixa dúvida: a Literatura brasileira ajuda a hegemonia no estabelecimento dessas várias casulas definidoras de reconhecimento, prazer e perversidade;

a Literatura brasileira é uma espécie variada de ficção-verdade: um “romance-reportagem” em várias facetas (poema, conto, teatro, romance, crônica, memória): traços do literário com o historiográfico, o sociológico, o jornalístico, o etnográfico, o memorialistico, o oficial, o policial: não realiza plenamente nenhum dos seus componentes (basta ver o horror de “os sertões”), não expõe nada a não ser seu programa parasita da hegemonia (parece literário porque alardeia por todos os meios que é Literatura: um dos poderes da oligarquia das letras é transformar literatice provinciana em algo de valor): por isso, talvez, o chamado “romance-reportagem” da “década de 70” seja não somente uma erupção ocasional e passageira da Literatura brasileira, mas sua essência: sua “tradição documental”, sua fome de real, numa “representação” tão real que se torna documento, matéria seja pro jornal (numa duplicação: o real imita a arte), seja pra História (a Literatura como “documento de uma época e de uma sociedade”, que é como termina, com o tempo, todos os livros dessa Literatura): por isso podem ser feitas correlações fortes entre vários regimes ditatoriais ou fortes e a Literatura brasileira (jamais pra ser radicalmente contra, mas pra encontrar uma “maneira de sobreviver”): como não é representação mas representante da hegemonia, os fluxos e refluxos modificam sua atuação, nunca no sentido de impedir com a força, mas mudar seu rumo pra mais adestramento, pra mais contar histórias: as ditaduras serviram não somente pra justificarem o silencio radical (todos correm imediatamente pra algum bairrismo existencialista ou regionalismo árido, distante, palavroso, incapaz de responder com coragem ao mundo famigerado) como fez aflorar sempre o realismos e naturalismos: tanto aluísio de azevedo, se realizando no “romance nordestino”, quanto josé louzeiro, desaguando na “geração noventa”, ao serem concreções naturalistas, dizem muito mais da essência do lócus de inspeção que outros momentos integrados: eles são descuidos reveladores;