deus, vico e a história
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o “desencanto do mundo” weberiano é uma dessas loucuras de classes abastadas saudosas de um inexistente “tempo de ouro”, comunitário, que teria se perdido no mundo do capital (“idade do ouro”, “comunismo primitivo”, “édem”).
o desencanto é somente uma rede específica, ingênua e perigosa de idéias, sentimentos, projetos e políticas que fundamentam não a “vida social”, mas programas políticos e “filosóficos” que buscam o reencantamento, seja revolucionariamente (com os métodos tradicionais, que matam e humilham sem cessar antes, durante e, principalmente, depois das revoluções), seja reacionariamente.
uma diz buscar no passado e a outra diz buscar no futuro. duas formas de fuga, pois partem e se fundam em mitos específicos, historicizados como todo bom e periculoso “mito moderno”, que dizem respeito a perdas reais de grupos e camadas que conseguem fazer crer a todos que essas “perdas” são universais, humanas, fundamentais. todos buscam o que jamais existiu e jamais existirá, a não ser em suas formas teóricas, iconográficas e literárias. o que não deixa de ser uma força razoável e, por isso mesmo, ameaçadora quando transformada em algo mais que um “movimento artístico” como o “romantismo” (pai de muita “teoria revolucionária”), ou o “surrealismo”. criar beleza partindo de nada, de uma mentira ou de uma ilusão faz parte do jogo, mas isso mesmo, inclusive a beleza, pode se transformar no horror.
as “formas antigas” que foram tomadas como “comunidade” foram sempre sociedades, classes, estamentos, poderes, esvaziamentos e interesses. o mesmo vazio de hoje sempre compôs elas de modos diferentes, sendo mais ou menos falsas, sendo mais tirânicas ou mais democráticas: mas tudo sempre desencantado. o encanto e as “formas sociais encantadas”, e as idéias e vivências e artes encantadas sempre foram de alguns ou de todos por causas desses alguns, jamais componente objetivo dos fluxos cotidianos, jamais um horizonte de realidade, mas fonte ideológica para o funcionamento desse real.
por isso o “passado encantado” ou o “futuro encantador” são as armas preferidas dos fascismos em todas as suas formas e poderes de sedução. pelo meio do caminho sempre se encontraram milhões de corpos, oceanos de sangue e terras desoladas humilhação, desgosto, surpresa e miséria.
a dimensão viva do imediato do presente reúne em si todos os passados e todos os futuros na sua devida forma de existência (necessariamente imaginária, ficcional, virtual). por isso são enfrentamentos reais, objetivos, presentes (a luta no presente é, em grande parte, uma guerra sem trégua com matérias de crença, ilusões fundamentais de produção e reprodução). e o presente não pode ser revolucionado pelas ilusões da imaginação nas suas feições ideológicas, mas nas suas feições demiúrgicas, libertadoras e democráticas (mas jamais as democracias burguesas e cristãs). a morte de um só homem, a humilhação de um só homem “depois da revolução”, em “nome da revolução”, do “novo mundo” é um triste sintoma que não houve revolução alguma.
por isso se torna cada vez mais premente nesses tempos frios (onde a idéia de revolução é quase inatingível a não ser como pastiche das monstruosidades do “passado”) pensar que revolução, depois de todos os desastres do século xx, é possível, é desejável e, principalmente, democrática em sua mais íntima substância e atuação.
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não com a morte ou o desaparecimento de deus (uma estrutura imaginária monstruosa destas, espectro vivo dos tempos da própria práxis, simplesmente não some por “descrença”, “progresso” ou ciência) mas com sua invaginação (penetração de uma estrutura em outra) como outra condição de pensamento, crença e percepção (já sem a forma deus) exige enfrentamentos em todas as dimensões do pensamento crítico e da ação.
os dois séculos anteriores a vico são aqueles que iniciaram esse lento processo de invaginação divina como condição epistemológica, como suporte das ontologias e princípios da ciência. e vico representa uma específica percepção (intuição?) rarefeita (única?) deste movimento, mesmo que com outro sentido, mas atingindo exatamente a questão.
voltar a este ponto de vico significa, estranhamente, enfrentar alguns obstáculos gerais da práxis (teoria e ação) nesse começo de século xxi.
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para vico História e ficção são consubstanciais. o fingere viciano é invenção poética e é o mundo para o homem, oposto ao mundo físico. enquanto o segundo independe do homem o primeiro é criação (poíesis), e a linguagem é um dos seus elementos fundamentais. o mundo para vico é atividade ficcional. há uma idéia que o real é o imaginário.
daí a discordância de vico com o universo cartesiano. a fundamentação de descartes (um dos que mais contribuíram para a invaginação de deus) era não somente universalizante, mas naturalizava de uma maneira lógica, racional, técnica, o campo das ciências naturais, pondo esse campo como o único com legitimidade, sem atentar que ele se fazia “sobre o corpo do senhor”: o corpo da natureza não expurgou deus, mas o fez de estrutura invisível exatamente porque uma estrutura natural não existe sem um seu social que lhe dê sentido, que lhe atribua ordem, que lhe classifique: aquilo que permitia antes esta estrutura vigorar era deus, depois é esse mesmo deus nas suas novas funções. descartes, crente no seu deus, não o apagou, mas o reformatou como se trabalhasse com a natureza, “esquecido” que essa só existia através do seu próprio deus.
para vico o sistema natureza (que era da conta e do conhecimento de deus) não era possível ser conhecido em sua integralidade, pois estava em deus suas leis, seus mistérios, diferente do “mundo humano”, decorrente do plasma vivo do ser social, feito por ele e por isso cognoscível. enquanto descartes anulava o possível estudo da sociedade (onde se poderia pressentir o substrato metafísico na sua physis), vico pôs a reflexão exatamente para constituir esse conhecimento que funda, explica e dá sentido a todos os outros: só nós podemos conhecer o que fazemos (a história). a impraticada cientificidade da História, sua torção para dentro do campo científico, sempre foi uma violência desnecessária e que não somente a descaracteriza como impossibilita seu exercício.
para vico a inaplicabilidade das idéias de descartes ao mundo humano nada tinha a ver com a mesma idéia de descartes. para este o conhecimento do humano era de pouco valor, caótico e obscuro, ele que tanto buscava a claridade, a justeza, o rigor (tudo isso salvou deus e sua obra). para vico essas idéias se explicavam pelo tempo e não o contrário. e ainda hoje a História não é nem pode ser Ciência. sua instância é outra e a única perspectiva que pode explicar, justificar e superar o campo que lhe parece oposto mas que é um dos seus “objetos de estudo”.
o campo da história (criada pela História e amamentada por todas as ideologias burguesas) é o do universo feito pelo ser social, dimensões desse existir: o tempo. o chamado mundo natural “a deus pertence”, só ele conhece como nós conhecemos ou podemos conhecer o nosso. essa dicotomia acompanha o pensamento ocidental. mas vico inverte a questão. o próprio mundo natural e o conhecimento que diz penetrá-lo só o fazem a partir do mundo humano. antes de todo conhecimento está o pensamento histórico. no mundo humano a existência e o conhecimento se dão num mesmo movimento contraditório. por isso somente as ciências humanas podem compreender, enquanto as ciências naturais, que pensam o universo, implodem para dentro da práxis e se realizam somente enquanto aplicabilidade e qualquer extrapolação não é mais que o mergulho de volta com uma imaginação criativa própria das ciências humanas.
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o que os séculos xix e xx estabelecem como a “natureza”, como a “sociedade”; como vêem cada um dos elementos da existência (como os classificam, os valorizam, os relacionam); como protegem ou tentam modificar a “comunidade” (todas as propostas revolucionárias, sejam “burguesas”, sejam “proletárias”, pressupõem uma “matéria” onde atuam: essa matéria é produto dessa práxis com seu fantasma e espectros); como e porquê trabalham e crêem; como se relacionam; como se unem em nações, classes, organizações, estamentos, cooperativas, igrejas, línguas, sindicatos; como geram, propagam e usam tecnologias; como dão crédito ao real, ao imaginário, ao político, ao econômico, ao midiático; tudo isso faz parte de uma visão de mundo formatada em devires (além das várias formas da percepção) por esse resto monstruoso das memórias da práxis (seu inconsciente?): é esse “resto”, esse “fantasma” (esse “senhor morto” agarrado em nossas costas) que possibilita o sentido, a extrapolação, a articulação entre os “três tempos” (que não conseguiu autonomia fora de uma metafísica personalista e exterior à práxis), a sensação de realidade, de verdade e de legitimidade e suas relações.
o universo social gera todas as outras realidades a partir de sua própria “substância” imaginária, ficcional, virtual, plástica, cuja grande parte de existência se dá precisamente naqueles campos antes e depois do imediato do presente, isto é, exatamente na sua principal forma de existência: o imaginário. a forma de existência do tempo desvenda a “matéria” da vida apontando sua absoluta plasticidade, sua possibilidade viva em ser revolucionada fora das “leis da natureza” (persistência do deus invaginado), fora das “leis da história” (conseqüência lógica da invaginação divina), absolutamente fora deste corpo metafísico construído para não ser modificado, para persistir, para regenerar suas funções assim que algo a ameace.
a invaginação de deus torna possível o universo do capital (feito por todos os seus principais ideólogos nos últimos cinco séculos). torna viável suas ideologias, suas ciências ganham matéria e ordens autônomas, seu pensamento não gira no vazio e as atuações políticas acontecem sempre no respeito as “ordens naturais e humanas”, como se elas possuíssem autonomia e devessem ser respeitadas: daí porque as revoluções sempre o que fizeram foi dar continuidade ao “movimento da máquina” (parecendo fazer outra coisa), aos devires da ordem em busca de sair das crises mais agudas.
a função das revoluções têm sido manter esse deus invaginado, a ética desse deus socializado, a politicidade desse deus guardador dos rebanhos da mais-valia. o messianismo e a violência totalitária não são "erros teóricos", "desvios da realidade", numa "deformação política", num "engano estratégico", mas numa cumplicidade ontológica.
fazer a revolução não pode ser "tomar o estado", reorganizar o "modo de produção", "pensar no social", mas atingir o real na medida do seu se fazer e se manter, na medida da sua substância e reprodutibilidade, na medida das suas crenças e ficções com todas as armas, estratégias, táticas e ações compatíveis com essa forma de existência e resistência. o resto é lutar pelo mesmo sonhando estar fazendo o diferente e a diferença. o velho "que fazer?" precisa ser novamente reatualizado, pois já não sabemos mais o que fazer, ou melhor, não podemos mais fazer das maneiras próprias dos séculos xix e xx.
bibliografia
berlin, isaiah. vico e herder. unb, brasília, 1982.
burke, peter. vico. unesp, são paulo, 1997.
vico, giambattista. princípios de uma ciência nova. abril cultural, col. os pensadores, são paulo, 1979.
__________. ciencia nueva. fondo de cultura económica, méxico, 1993.