DEPRESSÃO E SEXUALIDADE

AS DUAS FACES DE EROS[1]

 

 

JUAREZ CAESAR MALTA SOBREIRA

DEPTO. DE EDUCAÇÃO - UFRPE

 

À Ana Augusta Duarte-Sobreira

 

            A melancolia, o mal-estar da civilização pós-moderna, recebeu a atenção de Sigmund Freud desde a pré-história da psicanálise. No "Rascunho A", escrito em 1892, Freud inclui entre suas teses duas indicações sobre a depressão.

            Para elaborar um discurso inaugural sobre as patologias desde uma hipótese sexual, Freud estabelece a questão problematizando a depressão para, em seguida, elaborar algumas teses sobre a mesma.

            No que se refere à problematização, Freud levanta a questão clínica: "O que é que faz parte da etiologia da depressão clínica?"

            Para responder esta inquietação etiológica, ele suscita novo problema ao sustentar uma ponte possível entre eros e depressão, ao indagar: "Será a anestesia sexual das mulheres outra coisa senão um resultado da impotência? Poderá ela, por si só, provocar neuroses?", pergunta Freud.[2]

            Após pontuar diversas questões, Freud estabelece algumas (hipó)teses acerca das origens da depressão. A tese de número 5 afirma que "depressão periódica é uma forma de neurose de angústia, que, fora desta, manifesta-se em fobias e ataques de angústia."[3] E a tese seguinte assegura que "neurose de angústia é, em parte, conseqüência da inibição da função sexual."[4]

            No ano seguinte Freud elaborou melhor suas idéias no "Rascunho B", redigido em 8 de fevereiro de 1893, que trata da etiologia das neuroses. Neste texto Freud afirmou:

 

"Cabe-me encarar a depressão periódica - ataque de angústia com duração de semanas ou meses - como uma terceira forma de neurose de angústia. Essa depressão em contraste com a melancolia propriamente dita, quase sempre tem uma ligação aparentemente racional com um trauma psíquico. Este último, porém é apenas a causa provocadora. Ademais, a depressão periódica branda ocorre sem anestesia psíquica, que é característica da melancolia."[5]

 

            Estamos, pois, ante as primeiras indicações freudianas sobre a depressão que, para Freud, é uma forma da neurose de angústia. Também ficamos sabendo que os traumas psíquicos apenas provocam a eclosão da depressão, mas não é sua fonte geratriz.

            Os sintomas da depressão serão tratados por Freud no "Rascunho F", na parte dedicada à discussão, onde lemos: "Casos brandos, mas muito característico, de depressão periódica, menos melancolia. Sintomas: apatia, inibição, pressão intracraniana, dispepsia e insônia - o quadro está completo", estipula Freud.[6]

            Freud afirma que existe uma "semelhança inconfundível" entre  a depressão e a neurastenia dado que a etiologia é a mesma. Ora, neurastenia é um quadro clínico cuja característica é fadiga física de origem "nervosa". Freud a trata como uma "neurose autônoma" que apresenta uma série conhecida de sintomas, além da fadiga física, como cefaléia, dispepsia, prisão de ventre e empobrecimento da atividade sexual. Deste modo, Freud coloca a depressão "no quadro das neuroses atuais, ao lado da neurose de angústia, e busca a sua etiologia num funcionamento sexual incapaz de forma adequada a tensão libidinal."[7]

            Nos casos estudados por Freud o onanismo fazia-se presente nos quadros depressivos, bem como insinua que além do onanismo têm tais quadros uma potencialização genética, ou seja, de fundo hereditário. No tocante à sexualidade, Freud afirma: "É bem possível que o ponto de partida de uma melancolia branda [como a do Sr. A, tratado por Freud] seja sempre o coito; um exagero [da importância] do fator etiológico leva ao provérbio de que OMNE ANIMAL POST COITUM TRISTE (todo animal é triste depois do coito)".[8]

            Freud, como bom vitoriano afirma - e tomara que não seja escutado no mundo moderno - que "o uso de condom [preservativo] é um indício de baixa potência; sendo uma coisa análoga à masturbação, ela [a depressão] é causa contínua de melancolia.[9]

            Em 24 de janeiro, Freud escreve ao seu melhor amigo, Wilhelm Fliess, uma carta na qual ainda aplica o modelo da teoria da sedução para explicar os estados patogênicos: "Foi assim - escreve Freud - que pude vincular com certeza uma histeria, que se desenvolveu no contexto de uma depressão periódica branca, a uma sedução, ocorrida pela primeira vez aos 11 meses de idade", mas existe também "um aspecto psicótico na periodicidade da depressão branda."[10]

            Ele próprio, Freud, mestre de todos nós, não escapou aos efeitos deletérios da depressão branda e o confessa em diversas cartas a Fliess, especialmente as datadas em 19 e 25 de abril de 1994 e a de 25 de maio do mesmo ano. Na carta de 19 de novembro de 1899, já abandonada a teoria da sedução, Freud afirma que deseja manter a sua depressão periódica branda em observação, malgrado ele mesmo confessar: "o sentido dela me é inteiramente obscuro".[11] Durante o período de redação da sua opus magnum que é "A Interpretação dos Sonhos", Freud foi atacado pela depressão periódica branda, conforme relatou os fatos já então pretéritos, na carta a Fliess escrita em 11 de março de 1900.[12]

            Freud atribuía sua depressão à Viena, cidade que afirmou odiar de tal modo que comparava-se um Anteu ao contrário, já que este titã filho de Possêidon e da Terra aumentava suas forças em contato com o solo natal, enquanto Freud sentia-se forte quando ausentava-se da sua "pessoalmente odiada" Viena.[13]

            Um século após estas reflexões freudianas, o mundo continua na busca incessante de uma poção mágica que liberte a humanidade desse verdadeiro mal-estar da civilização. Segundo a Organização Mundial de Saúde, existem 340 milhões de depressivos no planeta. Todavia discute-se a origem (se genética ou social) desse distúrbio afetivo.

            Neste ano, a depressão foi matéria de capa da Veja, de 31 de março, com matéria intitulada "A doença da alma" (pp. 94-101) e da IstoÉ, de 10 de novembro, com título quase igual "A dor da alma" (pp. 60-66), além de reportagem na Claudia, de novembro deste ano, sob título "Depressão é doença e tem cura" (pp. 148-152).

            Enquanto busca-se estimular o neurotransmissor chamado serotonina, através de tratamento químico no qual o Prozac é o remédio mais utilizando, os cientistas são unânimes em reconhecer que a origem da depressão é desconhecida e que esta é uma doença híbrida, de natureza tanto bioquímica quanto genético-cultural.

            É bem possível que o combate à depressão deva ser inspirado não em manuais psiquiátricos, psico e/ou quimioterapêuticos, mas sim na fertilizante fonte nietzscheana que, ao elaborar um canto à vida, alije da existência os pendores genético-hereditários ou sócio-culturais do mal-estar desta civilização pós-Prozac.

            O segredo da saúde psíquica é saber decodificar o estatuto dionisíaco da vida e celebrar a vitória sobre si mesmo, enunciando o canto da vitória, como Nietzsche tão bem nos ensinou no Zaratustra. No reino de Dioniso, que é o Eros freudiano, a depressão só pode ser entendida como profundidade enquanto aspiração ao mais elevado. O hino da vida é sobretudo um canto de louvor ao amor libidinal, dado que a sexualidade plenamente vivida e devidamente gozada é ao mesmo tempo profilaxia e combate às potências depressivas que nos remetem regressivamente ao estado do não-gozo.

            A depressão alimenta-se da ausência de uma sexualidade plenificada. Do mesmo modo, a falta de uma vida sexual prazerosa está para a depressão assim como a interrupção dos fluxos energéticos da terra está para a posição depressiva de Anteu. De modo que, para finalizar, continuamos com a pergunta inicial: a relação da sexualidade para com a depressão coloca a primazia patológica em uma questão todavia irrespondível: a falta de sexo provoca depressão ou a depressão provoca a inapetência sexual?

            Daqui a cem anos teremos uma resposta.

 

Notas

 

[1] Conferência proferida no Seminário "Depressão: O Mal Invisível", promovido pelo Centro Acadêmico de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia, em Porto Velho, aos 20 de novembro de 1999.

[2] Jeffrey Moussaief MASSON (Ed.). A Correspondência Completa de S. Freud e W. Fliess (1887-1904). Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 37.

[3] Id., op. cit., p. 38.

[4] Id., ibid.

[5] Id., op. cit., p. 43.

[6] Id., op. cit., pp. 90-95.

[7] LAPLANCHE & PONTALIS, Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 295-296.

[8] J. MASSON, op. cit., pp. 93-94.

[9] Id., ibid.

[10] Id., op. cit., p. 227.

[11] Id., op. cit., p. 387.

[12] Id., op. cit., p. 404.

[13] Conf. Id., op. cit., pp. 404-405, nota 3.