DEPTO. DE EDUCAÇÃO - UFRPE
À Ana Augusta e Mariah Victória
A palavra "democracia" remete à sua raiz filológica e política grega, berço tradicional do poder do povo. Entretanto, quando falamos de Grécia antiga estamos referindo-nos a um povo que habitando diferentes cidades, adotavam a mesma língua, os mesmos costumes, os mesmos deuses e tinham pelas atividades físicas e espirituais grande devoção. Mas cada cidade constituía um Estado em si. Atenas, entretanto, configura-se como o modelo acabado do que foi a civilização grega, especialmente no tema que nos interessa nesta preleção, que é a democracia e seus postulados filosóficos.
Sete séculos antes de Cristo foi Atenas palco de violentas desordens, entre as quais os historiadores destacam a conspiração de Cílon (que, em 630 a.C. tentou instaurar uma tirania). Esta tentativa de "golpe de Estado" por assim dizer, nos foi relatada por Heródoto e Tucídides.
Cílon tentou instaurar a tirania, invadindo a Acrópole e provocando uma luta que os historiadores afirmam ter sido dentre a própria aristocracia. Derrotado, Cílon foi condenado à morte por Mégacles.
Para conter o ciclo de vinganças que teve início após a derrota, prisão e morte de Cílon, foi necessária a instauração do Código de Drácon (dando início ao que até hoje conhecemos como "medidas draconianas"), nos últimos anos do século VII a.C., que era uma tentativa de instituir um direito comum a todos.
Sucederam-se as reformas até certo ponto democratizantes de Sólon, que fora eleito arconte em 594 a.C.. Curiosamente seu governo é reforçado por medidas de reforma agrária, quando suspendeu os encargos, anulou dívidas e proibiu a venda como escravo do devedor pelo credor. Mas sua grande contribuição àquilo que viria a ser conhecida como democracia foi a criação do Areópago, um conselho composto por 400 membros. Estabeleceu ainda a divisão do povo grego em quatro classes: às duas primeiras (os pentacosiomedimnos e os hippeis) ficaram com as principais magistraturas. Seguia-se a classe dos zeugitas, que eram camponeses de condição mediada. E os integrantes da classe inferiores, os tetes, eram compostos pelas massas de camponeses pobres e artesãos.
Segundo os historiadores, a divisão em classe da sociedade grega tinha um objetivo estratégico muito bem delineado por Sólon: "definir os encargos militares de cada um", afirma Mossé.[2]
Tempos depois, após o governo "democratizaste" de Sólon, explodiu uma luta pelo poder em Atenas, opondo de um lado o grande e popular orador Licurgo e, de outro, Mégacles (do mesmo "génos" daquele outro Mégacles que mandara matar Cílon).
A luta pelo poder, em torno de 561 aC, colocou Atenas e as aldeias do litoral ao lado do novo Mégacles; já os habitantes das planícies interiores da Ática ateniense apoiaram Licurgo. Foi, portanto, menos uma luta de classes do que uma luta de mentalidades diferentes dentro da própria aristocracia.
Claude Mossé sustenta, em Atenas: A História de uma Democracia, que "Licurgo representaria a aristocracia tradicional cujas terras situavam-se no Pedíon (planície, em grego); Mégacles refletiria o partido moderado que agrupava os habitantes do litoral, afeitos ao comércios, e os artesãos ricos da cidade."[3]
As disputas em torno da herança política de Sólon possibilitou o aparecimento de um terceiro partido, oriundo do nordeste da Ática, liderado por Pisístrato.
Assim, o governo de Sólon foi substituído pela tirania de Pisístrato que, para tomar o poder, feriu-se a si próprio e aos seus companheiros e iludiu os atenienses, afirmando terem sido vítimas de uma emboscada. Com esta artimanha, sensibilizou os cidadãos e recebeu o apoio dos atenienses, de modo a poder derrotar tanto o partidários de Mégacles quanto os de Licurgo. Pisístrato reuniu, então, trezentos homens em armas e conquistou a Acrópole, como relata Heródoto, em Histórias (I, 59), versão esta repetida por Aristóteles e Plutarco. Não obstante o apoio popular inicial, Pisístrato entrou em choque com os dois partidos então dominantes em Atenas mas, mesmo assim, conseguiu manter intacta sua autoridade até seus últimos dias de vida e, com ele, termina o sétimo século antes da nossa era.
Foi Clístenes que pôs fim a esse ciclo crítico da história ateniense, instaurando a democracia, considerada então uma verdadeira "revolução" e culminando com grandes feitos bélicos: as vitórias dos gregos contra os persas em Maratona e em Salamina.
Segundo Heródoto, em certo momento do seu governo Clístenes viu seu poder ser arrebatado pelos aristocratas. Então "fez o povo entrar na sua heteria", o que significa dizer que decidiu apoiar-se no povo. Por seu lado, a versão que Aristóteles apresenta da "invenção da democracia" realizada por Clístenes põe em relevo o papel do povo. Para Aristóteles foi o próprio povo quem decidiu convocar Clístenes, enquanto Heródoto diz que foi exatamente o contrário: por oportunismo político, Clístenes teria decidido apoiar-se no povo. Teria sido o primeiro caso de populismo na história das democracias, se dermos crédito à versão de Heródoto. Ainda assim, mesmo Heródoto tendo razão, devemos levar em consideração o seguinte juízo emitido por Claude Mossé:
Se Clístenes não fez mais que apoiar-se no povo, para dominá-lo e chegar ao poder, terá sido um oportunista ou, no melhor dos casos, um político hábil que, aproveitando-se da importância que, há meio século, o povo adquirira na vida da cidade, disso teria tirado as conseqüências pertinentes, e com este se congraçado, por meio de uma profunda reforma nas instituições. [4]
A criação de uma Boulè dos Quinhentos, "representava o aspecto mais importante da obra política de Clístenes. Seria, com efeito, o órgão essencial da democracia ateniense, preparando as sessões da Assembléia, redigindo os decretos, além de (...) desempenhar o papel de corte suprema da justiça."[5]
Entretanto, não cabe a Clístenes o papel da pai da democracia. O que ele estabeleceu foi uma base política e jurídica para a democracia que iria vicejar em Atenas no seu século de Ouro pois [permitiu o nascimento do poder do povo, tornando todos os cidadãos iguais perante a lei.
É esta isonomia que traduz concretamente a reforma de espaço cívico e, mais simplesmente, o fato de que, doravante um ateniense não mais se nomearia pelo nome do pai, mas sim pelo do seu 'demès' de origem. Aristóteles considerava esta prática como a essência das reformas de Clístenes, que, deste modo, teria permitido a integração dos novos cidadãos no corpo cívico, [afirma Claude Mossé].[6]
O apogeu da democracia ateniense está estreitamente vinculada ao período de Péricles. Este era sobrinho-neto de Clístenes e pertencia tanto por lado paterno quanto materno à mais antiga aristocracia ateniense. Tucídides (II, 65, 9) afirma:
"A influência que Péricles exerceu deveu-se à consideração com que era cercado e à profundidade de sua inteligência. Com um desprendimento absoluto, sem atentar contra a liberdade, dominava a multidão que conduzia, muito mais do que esta o conduzia. Não precisava lisonjear a plebe, uma vez que adquirira influência por meios honestos e, graças à sua autoridade pessoa, podia se opor a ela e, até, manifestar-lhe irritação. Todas as vezes que os atenienses, extemporaneamente, entregavam-se à insolência e ao orgulho, Péricles fazia-os recuar temerosos; quando se amedrontavam sem motivo, ele lhes infundia confiança. Este governo, chamado de democracia, era, na verdade, o de um só homem."[7]
Atenas era, politicamente, dividida entre dois partidos, o democrático (chamado de "partido do povo") e o aristocrático (chamado de "minoria"). Segundo Tucídides, Péricles teria assegurado que:
"Nossa politeía nada tem que invejar às leis que regem nossos vizinhos; longe de imitar os outros, damos o exemplo a seguir. Entre nós, o Estado é administrado no interesse da massa e não de uma minoria, daí o nome que nosso regime adotou: democracia. No que concerne aos diferentes indivíduos, a igualdade é assegurada a todos pelas leis; mas, no tocante à participação na vida pública, cada um obtém o crédito em função do mérito, e a classe a que pertença importa menos que seu valor pessoal; enfim, estando em condições de prestar serviço à cidade, ninguém é cerceado pela pobreza ou pela obscuridade de sua condição social."[8]
Quando Péricles foi eleito estrategos – função a qual será reconduzido durante vinte anos seguidos –, a paz e a liberdade estão estabelecidas no mar Egeu e a hegemonia de Atenas é reconhecida pelas demais cidades-Estados.
Mas esse período de ouro, liderado por Péricles, com a notável prosperidade de Atenas, atrairá a inveja e, daí, a intriga de outras cidades sobre as quais Atenas exerce seu poder e, também, a sua opressão. O resultado é o confronto com Esparta, na Guerra do Peloponeso. Em função desta guerra, Atenas viu ameaçada por aqueles cidadãos que recusavam-se a admitir o princípio da soberania do povo.
A partir de 387 antes da Era Cristã encontra Atenas em pleno processo de recuperação das suas conquistas mas, na segunda metade do século IV a.C., os gregos deparar-se-ão com o crescimento de Filipe, rei da Macedônia. Os atenienses puderam gozar um pouco mais de liberdade enquanto Alexandre fazia suas conquistas no Oriente e, em casa, os gregos eram estimulados por Licurgo a organizar um "exército cívico".[9] Entretanto, com a morte súbita de Alexandre, o general macedônio Antípatro conquistou Atenas em 322 a.C..
Claude Mossé, professor catedrático da Universidade de Vincennes, recusa comparar os modelos romano e ateniense, cujos paradigmas de poder são absolutamente diferenciados. Roma teve uma origem parecida com Atenas entretanto jamais exerceu a democracia e, não sabemos se por isso, logrou estabelecer um império na Itália e em toda a bacia mediterrânea. Por seu lado, Atenas soube cultivar a filosofia e a democracia mas não conseguiu produzir um sistema político que fosse o arcabouço de um império.
O professor Mossé diz que estas questões falseiam a realidade e não podemos ser tão simplistas a ponto de fazer o "elogio das armas" apontando Roma como exemplo paradigmático do que uma sociedade organizada e hierarquizada é capaz de realizar, como a sociedade romana, com uma outra sociedade na qual a capacidade de participação dos cidadãos era muito maior e mais intensa, como a sociedade grega.
Do seu berço natal até às sociedades contemporâneas o conceito e a prática de democracia tomaram as mais variadas expressões. Entre as chamadas "democracias liberais" às denominadas "democracias populares" existe um fosso quase intransponível tanto simbólico quanto ideológico. De modo que, precisamos compreender as dimensões filosóficas da democracia para perscrutar os seus sentidos variados.
Para o renomado politicólogo Norberto Bobbio, hoje em dia é mais importante a discussão em torno do pluralismo do que da democracia. Bobbio afirma que o termo "pluralismo" é novo mas o conceito é velho. Ele crê que este conceito está presente na idéia de que "uma sociedade é tanto melhor governada quanto mais repartido for o poder e mais numerosos forem os centros de poder que controlam os órgãos de decisão do poder central" e que tal idéia está presente em toda a história do pensamento político ocidental.[10]
Bobbio identifica que desde a Idade Média até a hipertrofia do Estado na Idade Moderna, existiu uma grande concentração de poder estatal. Entretanto, a partir do advento da sociedade industrial, está ocorrendo uma situação inversa através da fragmentação do poder estatal e a fragmentação (quase diria tribalização) da sociedade civil. Deste modo, Bobbio considera importante recompor historicamente o advento do que ele chama de pluralismo: este sistema teria nascido no seio dos três grandes sistemas ideológicos contemporâneos: o liberalismo democrático, o cristianismo social e o socialismo.
Entretanto, o pluralismo socialista que Bobbio identifica não tem nada a ver com o socialismo marxista mas sim com o dos socialistas ingleses, que tem como inspiração o socialismo autonomista e libertário de Proudhon, com sua face mais humana e menos totalitária que o socialismo violento e vitorioso de inspiração marxista, leninista ou maoísta. Tal concepção prevê que a democracia real não está vinculada exclusivamente ao parlamento mas sim espargida por todas as instituições formais e informais.
Já o pluralismo cristão social tem suas raízes no Códice di Malines, que se baseia na pluralidade dos desdobramentos da vida humana, que vai desde o Estado, passando pela família, associações profissionais, Igreja e a comunidade internacional. Tal seria uma concepção que rejeita duas falsas doutrinas, que são o individualismo que deifica o indivíduo, e o coletivismo que idolatra o Estado.
Por último, Bobbio considera como exemplo do pluralismo liberal-democrático o sistema de governo norte-americano que tem como base três princípios, que são: 1) a autoridade limitada; 2) a autoridade equilibrada; e 3) o pluralismo político. Segundo Roberto Dahl, citado por Bobbio, o princípio fundamental do pluralismo é este:
"Em lugar de um centro singular de poder soberano, devem existir muitos centros, mas nenhum deles deve ou pode ser inteiramente soberano. Na perspectiva do pluralismo norte-americano, o único soberano legítimo é o povo, mas o povo não deve nunca ser um soberano absoluto (...). A teoria e a prática do pluralismo norte-americano tendem a afirmar que a existência de uma multiplicidade de centros do poder, sem que nenhum deles seja inteiramente soberano, ajuda a controlar o poder e a assegurar o consentimento de todos para a solução pacífica dos conflitos."[11]
Parece-nos, assim, que os conceitos de pluralismo tendem a se manifestar nas suas diferentes elaborações tanto nos sistemas econômicos baseados na propriedade individual dos meios de produção quanto naquelas sociedades onde a propriedade dos meios de produção é de natureza estatal.
Assim, o conceito de pluralismo cabe tanto nas democracias ocidentais quanto no antigo sistema soviético, sendo que nas chamadas democracias liberais o pluralismo encontrou terreno fértil para florescer, enquanto que nos países que adotaram o marxismo como sistema político o pluralismo foi ferreamente perseguido e jamais foi cultivado.
Discutir aqui, neste contexto acadêmico, o sentido filosófico de democracia é quase uma heresia posto que há uma contenda ainda por superar entre a dimensão filosófica e a dimensão científica da política, como bem demonstrou Marilena Chauí, que evocando o Tractatus Politicus e sintetizando o pensamento de Baruch Espinosa, afirmou: "ninguém é mais incompetente para tratar da política do que o filósofo, seja porque propõe uma política para homens ideais, seja porque apenas critica e despreza a política realmente existente".[12]
É um pensamento totalmente oposto ao de Platão que, na Sétima Carta, havia advertido: "Os males só cessarão para os humanos no dia em que os verdadeiros filósofos cheguem ao poder, ou que os governantes tornem-se filósofos."
Marilena Chauí pergunta-se através de quais meios ou valores o indivíduo pode participar do poder da sociedade onde vive. Ela esclarece que, segundo Aristóteles, na aristocracia, o valor será a nobreza; na oligarquia, o valor será a riqueza; e na democracia, o valor será a liberdade.
O que é mais importante ressaltar aqui é que o meio e o valor do indivíduo na democracia não ser determinado pela igualdade, mas sim pela LIBERDADE. Em outras palavras, a igualdade está subordinada à liberdade posto que na Grécia Antiga, a democracia era uma realidade apenas para os homens livres.
E não diria só na Grécia porque basta uma olhadela para nosso sistema prisional para concluirmos que os homens sem liberdade não possuem direitos à democracia, no sentido mais real e palpável do termo. Ou, para evocar uma situação oposta, a plenitude dos direitos dos árabes-israelenses, que são livres mas não iguais, estão todavia por serem conquistados.
Chauí, ainda inspirada em Espinosa, afirma que a diferença entre os sistemas políticos não é o número de governantes ou o sistema eleitoral representativo, porque existem monarquias e repúblicas que se baseiam no voto. Diz a filósofa: "O que distingue uma forma política da outra é a proporcionalidade que se estabelece entre o poder da potência soberana e o poder das potências individuais, isto é, entre o poder coletivo e o poder dos cidadãos."[13]
Ela afirma que uma cidade (ou um Estado) é tanto mais livre quanto mais não dependa de um só indivíduo porque o poder sendo exercido por todos não será, em última análise, exercido por ninguém. Chauí afirma que a sociedade (a Cidade) se movimenta pressionada por dois vetores existenciais: o medo da morte e o desejo da vida.
Neste sentido afirma que a sociedade que é vítima do medo da morte (isto é, da guerra, especialmente da guerra civil) tende procurar um salvador da pátria que possua o que o cidadão comum não detém: a posse das armas e a aptidão para utilizá-las. Tal sociedade, na concepção de Marilena Chauí, por estar submetida ao medo da morte, oferece a possibilidade do estabelecimento da tirania.
Por outro lado, a cidade (ou a sociedade) cuja emulação é o desejo da vida tem respeito pela mesma e assim não teme os cidadãos em armas, fato este que excluiria a possibilidade de um grupo ou pessoa deter a posse dos armamentos e, portanto, alçar-se a salvador da pátria nos momentos de conflitos internos ou externos.
Assim, para Chauí, é condição exclusiva da sociedade (ou Cidade, como ela prefere) democrática o não ter medo dos cidadãos em armas. Por que?
Porque se trata de uma Cidade que não permite a liberdade, mas é livre, não só porque nela há igualdade política, todos os cidadãos podendo Ter igual participação no poder, nas decisões e execuções, mas porque nela a transcendência do poder é tão clara que permite a participação sem risco de identificação. A democracia é livre porque igualitária, pois o que a define é uma proporcionalidade máxima de poder, visto que nela o poder da cada um depende da potência do poder coletivo. A Cidade é que precisa ser livre, para que a igualdade política possa ser instaurada."[14]
Marilena Chauí demonstra como, nas sociedades atuais, a ênfase dada à igualdade conduziu ao totalitarismo, enquanto que a ênfase dada à liberdade conduziu ao reformismo social-democrata. Em outras palavras, defrontam-se aqui as concepções de Espinosa e de Marx. Para Espinosa, a igualdade decorre da liberdade coletiva como medida da liberdade individual, ensina Chauí. E para Marx, a igualdade é que engendra a liberdade. Entretanto, a história deste século nos ensinou na prática que a concepção marxista levou à aniquilação do sujeito que nem se tornou igual nem livre naqueles países onde o experimento socialista foi testado e, como bem o sabemos, desaprovado.
Os filosóficos europeus da segunda metade deste século, em grande parte aflitos pelo confronto entre a democracia liberal e o marxismo soviético, tiveram que encontrar uma solução para suas angústias políticas. Assim, de um lado, afirmam que o pensamento marxista possibilitou a luta pela conquista de direitos constitutivos da democracia; mas, por outro lado, reconhecem que o movimento operário tenha "se atolado na lama das burocracias", como afirma Claude Lefort.[15] Este filósofo francês, não obstante, confessa temer muito menos a democracia liberal ou o socialismo, do que "a contra-revolução totalitária".
Para Lefort, ante a revolução democrática que vem desde há 25 séculos estremecendo os poderosos, o que se contrapõe é o que ela chama de "a contra-revolução totalitária", que é a "resistência mais decidida e disfarçada dos detentores da riqueza e do poder, resistência que contra com a cumplicidade maciça do medo do novo".[16]
A crítica ao que se chama democracia ocidental deriva, em grande parte, ao fato de que nos países periféricos – como o Brasil – a democracia tornou-se na verdade uma mera tecnologia eleitoral. A representação parlamentar e os cargos executivos são exercidos por indivíduos que nem de longe representam os interesses do universo de eleitores, mas tão somente são despachantes de luxo dos grandes grupos financeiros nacionais e transnacionais.
Os impasses da sociedade democrática, que anos após ano, assiste a uma espécie de prostituição da democracia, onde o voto venal eleva à condição senatorial criminosos com larga e longa folha policial e judicial, tem mostrado quão frágil é nossa democracia representativa. É bem verdade que Churchil disse que a democracia é o pior sistema político, excetuando os demais. Esta anedota choca pela verdade: embora seja imperfeita e não garanta nem a liberdade nem a igualdade, não temos outra "invenção" melhor para substituir este sistema que nos foi legado pela mentalidade político-filosófica que vicejou na Grécia há 2.500 anos.
Quiçá sejam necessários outros 2.500 anos para que a humanidade possa abdicar da Democracia, o Poder do Povo, cujo sucedâneo não pode ser outro senão a Sofocracia, o Poder do Saber, considerando que a sabedoria é a mais refinada conquista da civilização humana e merece, portanto, presidir a vida do homem em sociedade.[17]
Notas
[1] Conferência Inaugural do IV Ciclo de Estudos de Política e Estratégia, promovido pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG - RO), em 10 de julho de 2000.
[2] Claude MOSSÉ, Atenas: A História de uma Democracia. Brasília: Universidade de Brasília, 1982, p. 15.
[3] Id., op. cit., pp. 16-17.
[4] Id., op. cit., p. 22.
[5] Id., op. cit., p. 23.
[6] Id., ibidem.
[7] Apud Idem, op. cit., p. 34.
[8] Apud idem, op. cit., pp. 37-38.
[9] Conf. Op. cit., p. 6.
[10] Conf. Norberto BOBBIO, As Ideologias e o Poder em Crise: Pluralismo, Democracia, Socialismo, Comunismo, Terceira Via e Terceira Força. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 15.
[11] Apud Norberto BOBBIO, op. cit., pp. 18-19.
[12] Marilena CHAUÍ, Cultura e Democracia: O Discurso Competente e Outras Falas. São Paulo: Cortez, 1989, p. 149.
[13] Id., op. cit., p. 153.
[14] Id., op. cit., p. 153.
[15] Claude LEFORT, A Invenção Democrática: Os Limites do Totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 26.
[16] Id., op. cit., pp. 26-27.
[17] Para uma leitura crítica da Sofocracia, leia-se de Caesar SOBREIRA, Sofocracia: Esboços para uma Arqueologia da Opressão. In: Chaim KATZ (Editor), SABER/PODER. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, pp. 49-86.