O ESCRITOR E O CHARLATÃO

 

 

Como distinguir o charlatão (não o picareta - que é o charlatão que sabe que é charlatão) das letras? Como saber que um poeta, um contista, um romancista é realmente aquilo que ele e alguns ao seu redor dizem que ele é? Como separar o verdadeiro artista daquele que é apenas uma cópia deformada e simplória? Como saber se aquilo ali escrito é realmente literatura e não uma reprodução ridícula do existente? Normalmente não podemos saber, mas uma coisa é fundamental para uma consciência literária: ter se preparado a vida inteira, intensa e obsessivamente, para a escrita e seu mundo. Mas como saber que esse mundo criado por nós é realmente um mundo legitimamente literário? É preciso leitura e é essa leitura que nos dará um dos parâmetros para a compreensão e o valor daquilo que fazemos. Por isso, aqui darei uma lista de autores que, se lidos, serão uma garantia de que estamos no caminho certo, de que sabemos o que estamos fazendo, de que não somos charlatões ou picaretas. Não é uma lista definitiva ou que deva ser seguida, mas que sem ela ter sido devorada, assimilada e superada o escritor não estará escrevendo coisa com coisa, ou somente se enganando e enganando os outros mais ignorantes que ele. Estará repetindo burramente.

Não é um paideuma, uma lista dos poucos essenciais, mas uma lista de formação, isto é, sem ela o escritor não possuirá uma formação básica para constituir seu texto e ter consciência literária suficiente para saber a direção da sua escrita, o valor inicial da sua escritura.

Vejamos nossa lista mínima de autores, e alguns livros, todos publicados na língua de vocês: Gilgames, Mahabharata, Ramayana, Bíblia, As Mil e uma Noites, Homero, Hesíodo, Safo, Pindaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, Platão, Esopo, Cícero, Virgílio, Ovídio, Sêneca, Petrônio, Agostinho, Dante, Cavalcanti, Boccaccio, Maquiavel, Goldoni, Casanova, Pirandello, Ungaretti, Quasimodo, Pasolini, Dino Buzzati, Pavese, Primo Levi, Svevo, Guareschi, Calvino, Quevedo, Góngora, Cervantes, Lope de Veja, Calderon, Lorca, Borges, Cabrera Infante, Neruda, Paz, Lezama Lima, Cortazar, Garcia Marques, Chaucer, Shakespeare, Donne, Milton, Swift, Defoe, Fielding, Sterne, Blake, Dickens, Lewis Carroll, Wilde, Stevenson, Dickinson, Whitman, Melville, Poe, Henry James, Twain, Yeats, Shaw, Hardy, Conrad, H.G. Wells, D.H. Lawrence, Virginia Woolf, Joyce, Beckett, Auden, Pinter, Orwell, Pound, Eliot, O’Neill, Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, Steinbeck, Bellow, Nabokov, Pynchon, John Barth, Singer, Ginsberg, Tutuola, Rushdie, Villon, Montaigne, Rabelais, La Fontaine, Moliere, Pascal, Rousseau, Voltaire, Prévost, Diderot, Laclos, Sade, Balzac, Hugo, Nerval, Stendhal, Flaubert, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud, Lautréamont, Maupassant, Zola, Proust, Gide, Bataille, Céline, Genet, Jarry, Apollinaire, Breton, Valéry, Éluard, Sartre, Camus, Malraux, Ionesco, Blanchot, Artaud, Robbe-Grillet, Sarraute, Claude Simon, Duras, Yourcenar, Erasmo, Goethe, Schiller, Hölderlin, Hoffmann, Büchner, Heine, Nietzsche, Rilke, Broch, Kafka, Brecht, Mann, Döblin, Musil, Bernhard, Canetti, Dürrenmatt, Ibsen, Strindberg, Kundera, Puchkin, Gogol, Turquenev, Dostoievski, Tolstoi, Chekov, Maiakovsky, Kavafis, Seferis, Kazantzakis, Camões, Vieira, Camilo, Eça, Pessoa, Saramago, Pompéia, Machado de Assis, Euclides, Lima Barreto, Oswald, Mário de Andrade, Graciliano, José Lins, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Drummond, Veríssimo, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Lispector, Rubião, Suassuna, Nava, Carrero, Osman, Scliar, José Candido, Callado, Jorge Amado, João Cabral, Nelson Rodrigues, Vinicius, Raduan, Campos de Carvalho, Ubaldo, Paulo Leminski, Caio Fernando, Trevisan, Rubem Fonseca, Gullar, Haroldo de Campos, Manoel de Barros.

Essa lista não é exaustiva (nem é para ser seguida ou admirada, mas superada pela leitura e com uma obra pessoal) mas pode servir de parâmetro mínimo para o charlatão saber (se não leu ou leu de raspão ou somente leu alguns) que é um charlatão, podendo criar vergonha e ir ler ou continuar na senda do crime de burrice militante; ou ainda se transformar em picareta. Ter lido esta lista mínima nos capacita, minimamente, a responder as perguntas iniciais. Principalmente nesta terra de vocês onde há, generalizada e com pouquíssimas exceções, uma charlatanice e uma picaretagem literária das mais perigosas e burras, mas que nem nisso é original: essa burrice é a mesma no país inteiro. Aqui, nas Rondônias, entre as minhocas mais resistentes, mais fossilizadas, ainda se acredita numa “literatura parnasiana”, numa poesia “vinda do coração e das emoções”, numa expressão literária “dos sentimentos e da vida”, numa arte que “vem de dentro”. É de uma ingenuidade, de uma tolice, de uma falta de vergonha sem limites. O resultado é sempre um puxadinho ridículo, uma coisinha sem razão de existir: tudo de um provincianismo doloroso, de uma adolescência inescapável. No entanto essa coisa informe, fraca e pobre é publicada a todo instante nos jornais, em livros, em coletâneas seja pelo próprio autor seja pela proximidade com o poder, que o defende como a um cão caseiro.

Acreditam, os pobres escritores desta terra, que para se tornar um escritor e escrever literatura basta sentar e escrever; basta se acreditar alfabetizado; basta um comichãozinho entre um filho e um horário de trabalho; literaturas dos feriados e fins de semana; basta ter amigos no poder para publicar suas asneiras; basta ter lido um Bilacquinho, um Montelozinho, um Coelhinho, alguma seleta secundarista, jornais e algumas raras revistinhas, ou não ter lido ninguém (para não afetar o “estilo” da cavalgadura). Não! A literatura é muito mais difícil, muito mais complexa, muito mais profunda que qualquer curso universitário para Medicina, Engenharia, Direito, Informática, Matemática ou Física. E além da lista de escritores obrigatórios existe toda uma longa bibliografia teórica sobre literatura que é absolutamente necessária.

Um escritor (incluindo nessa palavra sempre os poetas) não se faz com simples amadorismo, com leituras de segunda mão, com pouquíssima leitura, com uma vida integrada no mundo como uma barata ao esgoto. Não! A literatura é outra coisa. Isso vocês descobrirão depois de ler e reler exaustivamente essa lista mínima. Se não lerem, continuarão a ser charlatões, médicos que matam seu paciente sem a mínima vergonha dessa morte, médicos que não estudaram o suficiente para serem competentes.

É preciso mudar o que se escreve e se publica aqui nesta terra de vocês ou, em pouco tempo, haverá uma grave e perigosa mutação que transformará definitivamente todos vocês de charlatões em picaretas e de picaretas em palhaços sem graça e de palhaços sem graça em perigosos fascistas. Por favor: um pouco mais de rigor, seriedade, autenticidade, paixão e intensidade com a literatura: ela é uma das poucas coisas que ainda resta nesta noite escura.