MISTO DE CELTA, DE TAPUIA E GREGO
MÁRCIO JOSÉ LAURIA
"Sempre planeeie estar aí no dia 18, 1º aniversário da ponte. Mas estarão você, o Álvaro, o João Moreira, o Ovino. Encaminhem-se para lá naquele dia, paguem uma cerveja (barbante) ao velho Mateus e recordem-se por um minuto do amigo agradecido ausente. Será uma bela comemoração. neste país de esnobismo reles não desejo outras. Manda-me dizer depois os episódios principais da festa."
(Carta de Euclides da Francisco Escobar, datada de Lorena em 4 de maio de 1902)
"Digo-te mais: a minha maior aspiração seria deixar de uma vez este meio deplorável, com as suas avenidas, os seus automóveis, os seus smarts, as suas fantasmagorias de civilização pesteada. Como é difícil estudar-se e pensar-se aqui!... Que saudades do meu escritório de folhas de zinco e sarrafos, da margem do rio Pardo! Creio que se persistir nesta agitação estéril não produzirei mais nada de duradouro."
(Carta de Euclides a Escobar, Rio de Janeiro, 8 de abril de 1906)
Para a literatura brasileira, Euclides da Cunha surgiu com insuperados ímpetos em fins de 1902. Nasceu adulto, definitivo, ou, como ressaltaria Sílvio Romero, deitou-se obscuro e acordou célebre. Irrompeu de vergasta em punho, descobridor que era de um novo país, durante séculos ocultado pelo litoralismo. Com "Os Sertões", "livro vingador", traumatizou a surpresa da classe pensante, expondo à claridade meridiana as mazelas todas que culminaram com o perpetrar de mais um crime contra a nacionalidade.
Os setenta e sete anos decorridos da morte de Euclides não lhe tiram a atualidade ainda surpreendente e agressiva, porque sua obra, mormente Os Sertões, pelo que encerra de revelação do Brasil e de alerta às gerações subsequentes, encarna um permanente gesto de cobrança. Desde 1902, Euclides da Cunha, mais do que todos, vem reivindicando o aplainamento das desigualdades entre dois Brasis que, se não mais se desconhecem como no início do século, ainda se contrapõem.
O profundo sentido nacionalista de sua produção intelectual, a magnificência de seu estilo personalíssimo, contingências dolorosas de sua morte são fatores que fazem das mas vastas a bibliografia referente a Euclides da Cunha, comparável apenas à machadiana. Tanto o arrolamento de Otto Maria Carpeaux como os de Otávio Tarquínio de Sousa e Irene Monteiro Reis nos dão conta de referências que vão desde o mais puro laudatório, passam pelos meandros de uma vida inquieta infeliz - onde pontilham lances em que a retidão e a nobreza pessoais se vêem não raro surpreendidas pelas insídias da fatalidade - e culminam luminosas análises da grande obra, nos mais diversos aspectos do saber humano. Além de seus grandes biógrafos Sílvio Rabelo, Olímpio de Souza Andrade e Moisés Gicovate, muitos outros, mais recentemente, se têm lançado ao estudo de Euclides com acurada seriedade: se não esquecido, ao menos amortecido o impacto de seu fim pessoal inglório, os escritos euclidianos, o pensamento euclidiano, a visão social e a capacidade profética de Euclides é que vão centralizando as preocupações de seus pesquisadores. Sim, porque ainda hoje sua obra guarda inesperadas questões e focalizações que ele incorporou numa incipiente realidade nacional: antecipou problemas, aventou soluções, revelou injustiças. Foi o grande iniciador do fortalecimento de uma consciência brasileira, foi o lúcido montador das linhas-mestras do caráter nacional, na acepção que os vocábulos ressaltados assumem na atualidade.
Dominando o Romantismo - estado-de-espírito - as tendências literárias do País, soou desagradável a rudeza inesperada, o ineditismo de uma obra maciça, que, no entanto, provocou aplausos. Muitos não quiseram, ou não souberam colocar-se no devido ângulo de observação, apegaram-se ao acessório do livro, criticaram-lhe senões de forma e de fundo, escandalizaram-se com um pretenso "nefelibatismo científico". Apenas alguns eleitos lhe captaram a mensagem candente: trazer para o debate e resolução um problema nacional de proporções continentais; convocar o Brasil a compenetrar-se de sua inteireza territorial, social e étnica. Havia impropriedades e imperfeições no livro, mas, como sintetizaria Gilberto Freyre, "noutro, esses defeitos seriam imensos: em Euclides não. Suas qualidades são tão fortes que toleram a vizinhança de defeitos mortais para qualquer escritor menos vigoroso."
A localização cronológica de Euclides da Cunha fá-lo representante de todo o complexo espiritual e cultural de uma época: nasceu (1866) quando se empenhava o Brasil na Guerra do Paraguai, ponto de partida para as convulsões sociais culminadas com a Abolição e a República. Fértil, pois, ao tempo o terreno para o recebimento passivo das "novidades" filosóficas e científicas de além-mar. O cinqüentenário Positivismo comtiano - estofo teórico da República - empolgava as mentalidades jovens, em especial as ligadas ao Exército. Não escapou Euclides a tal influência.
Depois de uma infância tristonha e "sem lar", ingressa em 1885 na Escola Politécnica, transferindo-se no ano seguinte para a Escola Militar, onde assenta praça. Ocorreria ali o episódio que de qualquer modo ligaria Euclides à causa republicana: estando em visita à Escola o ministro da Guerra, Tomás Coelho, teriam concertado os alunos, em sinal de rebeldia, não apresentarem armas à autoridade, durante a revista. Desfila o primeiro batalhão e nada ocorre; igualmente o segundo; à passagem do terceiro, desgarra-se da formação Euclides da Cunha, então cadete, e depois de tentar partir ao joelho o sabre, arroja-o aos pés do Ministro! Baixando à enfermaria, como "doente dos nervos", não aceita essa situação cômoda, mas falsa, que o eximiria de punição, e afasta de vez a suspeita de achar-se enfermo. Quer arrostar com todas as conseqüências de um ato consciente. Eram 4 de novembro de 1888. Submetido a julgamento, foi desligado do Exército a 14 de dezembro.
Dirigindo-se imediatamente para São Paulo, inicia a convite de Júlio de Mesquita sua colaboração em A Província de S. Paulo, assinando sob o pseudônimo de Proudhon artigos de extremadas tendências antimonárquicas ("Questões Sociais" e "Atos e Palavras").
Em janeiro de 1889 já está de volta ao Rio, onde reingressa na Escola Politécnica. Proclamada a República, é quatro dias depois o "cadete da baioneta" reconduzido à Escola Militar, recebendo promoção logo após. Dali sairia, feito oficial, para o desempenho da profissão de engenheiro e para o casamento com D. Ana Ribeiro, filha de Sólon Ribeiro, então major, a quem coubera, entre outras coisas, a tarefa de intimara Pedro II a deixar o Brasil antes de amanhecer o dia 16 de novembro de 1889. "Como negro fugido", na sentida expressão do monarca deposto.
Viu Euclides pela primeira vez a futura esposa na noite do mesmo 16 de novembro. Ao sair da casa do major Sólon, aonde fora chamado, deixa cair às mãos da menina de 15 anos um bilhete: "Entrei aqui com a imagem da República e parto com a sua imagem..."
Casou decorridos uns meses. Foi muito infeliz.
Republicano por ideal, serviu-se jamais dessa circunstância para vantagens pessoais. Mais tarde, quando a vida lhe norteou por outras sendas, lamentar-se-ia desse desapego. É que se desencantou logo com a Repúblico: sua desambição chegou ao ponto de, com a substituição de Deodoro por Floriano na Presidência, este mandá-lo chamar.
Euclides relata o encontro em carta a Lúcio de Mendonça:
"... Encontrei o homem na sala de jantar, à vontade e em um dos seus dias de expansão. ... E o grande dominador abriu-me a apertadíssima porta de sua intimidade - "Veio em ar de guerra... não precisava fardar-se. Vocês aqui entram como amigos e nunca como soldados." Decorei textualmente. Agora, meu caro Dr. Lúcio, vá preparando o mais fulminante alexandrino das Vergastas para fulminar minha horrorosa inaptidão. O grande doador de posições, referindo-se à minha recente formatura e ao meu entusiasmo pela República, declarou-me que tendo eu direito a escolher por mim mesmo uma posição não se julgava competente para indicá-la... Que perspectiva!... E eu (nessa época sob o domínio cativante de Augusto Comte, e que isto vá como recurso absolutório_ - declarei-lhe ingenuamente que desejava o que previa a lei para os engenheiros recém-formados: um ano de prática na E. F. Central do Brasil. Não lhe conto o resto. Quando me despedi, pareceu-me que no olhar mortiço do interlocutor estava escrito: nada vales. E tive ainda a inexplicável satisfação de descer as escadas do Itamarati, atravessar alegremente o saguão, em baixo, e sair agitando não sei quantos sonhos futuros... um futuro que desastradamente eu tinha destruído.
Desliga-se voluntária e definitivamente do Exército em 1896, reformado no posto de capitão.
Corria o ano em que o arraial de Canudos, interior da Bahia, Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, provocava um suposto caso de polícia, que, num crescendo inesperado, abalaria toda a estrutura da política nacional.
A extensão e natureza deste trabalho não permitem minuciar a gênese do embate entre dois estilos antagônicos de vida, separados no espaço por algumas léguas, e no tempo por três séculos. Em suas andanças pelo sertão, vestido de camisolão azul de brim americano, o Conselheiro, fugitivo de si mesmo e da tragédia conjugal, catalisou em torno a si um anseio coletivo. Na "Tróia de taipa" enquistou-se uma comunidade forçosamente retrógrada, defendendo a seu modo um status inevitável, fruto do abandono a que a "vocação de caranguejos" dos colonizadores relegara substancial porção do interior brasileiro. Catolicismo mal assimilado resultando em fanatismo religioso; "o martírio secular da terra"; miséria física e moral...
Em Nossa Vendéia, dois artigos inseridos em O Estado de S. Paulo em 1897, Euclides trata da campanha de Canudos. Mas é em agosto do mesmo ano que se dirige à Bahia, como repórter de guerra do jornal paulistano. Dois meses foram-lhe suficientes para modificar seus conceitos sobre a cruenta luta.
Partira convicto de que a rebelião continha inspiração monárquica, insuflada e financiada por inimigos da nascente República. A observação direta dos acontecimentos, o estudo acurado das condições mesológicas muito favorecido por informes e dados de Teodoro Sampaio) fizeram-no ver de perto que havia na luta sustentada por Conselheiro e seus sequazes uma perspectiva ampla e inesperada. Revoltou-o o erro de considerar inimigas aquelas populações miseráveis, que em verdade necessitavam de assistência, em todos os sentidos. À vista de Canudos, faliram-lhe os sonhos republicanos. Intuiu, em extensão e profundidade, a desgraça de um povo à mercê de um clima cruel. Tomou corpo, em seu espírito, a concepção determinista da História em Taine encontrou o tripé onde apoio o vigamento de Os Sertões: "A Terra", "O Homem", "A Luta".
Das anotações tomadas in loco, Euclides da Cunha compôs Canudos (Diário de uma Expedição), só dado a lume em 1939.
Entre 1899 e 1901 conseguiu o de há muito almejado: lançar âncora em porto calmo e estudar, escrever, meditar, com os vagares que até então desconhecera. A reconstrução de uma ponte metálica sobre o rio Pardo, que as águas tinham abalado após alguns dias de inaugurada, foi-lhe o ensejo de residir em São José do Rio Pardo. A obra de engenharia e a estruturação de Os Sertões caminharam paralelas. na cidade e vizinhança não lhe faltaram amigos, dispostos a ouvi-lo, aplaudi-lo e animá-lo: Francisco Escobar, José de Oliveira Leite, José Honório de Sylos, Jovino de Sylos, Paschoal Artese, Álvaro Ribeiro, João Modesto de Castro, Valdomiro Silveira, João Novo, Adalgiso Pereira, José Rodolfo Nunes, João Batista de Souza Moreira, Mauro Pacheco, Loiola Gomes da Silva, Lafaiete de Toledo e outros poucos.
Dentre todos avulta Francisco Escobar, intendente da cidade, jurista, poliglota, bibliófilo e executante de piano e flauta... O "doutíssimo" Escobar, no dizer insuspeito de Rui Barbosa. A ele coube a missão, gloriosa sem dúvida, de incentivar o trepidante Euclides a prosseguir na elaboração de Os Sertões, malgrado a reconstrução da ponte. Com ele ou através dele Euclides obteve todos os informes de que necessitou, inclusive os que o levaram a escrever de acordo com as "leis invioláveis" da língua.
De apreciável bagagem científica, era contudo Euclides carente de melhor formação literária.
Embrenhou-se pelos clássicos portugueses, dando preferência a Alexandre Herculano e a Camilo Castelo Branco. Valdomiro Silveira, contista então residente em Casa Branca, relata: "... Pediu-me que lhe fornecesse alguns livros desses autores que todos nós conhecemos e amamos. E, no primeiro domingo seguinte, porque nos encontrávamos todos os domingos levei-lhe O Monge de Cister. Cerca de quinze dias depois, reencontrando-nos na ponte metálica sobre o rio Pardo, Euclides de longe surpreendeu-me com estas palavras: 'Valdomiro, o Herculano é pesado.' Contudo, aproximando-se mais um pouco, atenuou o rigor dessas palavras iniciais dizendo: 'Mas tem o peso do ouro maciço!'"
Sem o episódio de Canudos, Euclides escreveria ainda sua obra-prima. diferente, talvez. Porque o assunto do livro é essencialmente euclidiano, ou, como quer Afrânio Peixoto, "o livro conta o efeito do sertão sobre a alma de Euclides "... Mas do pequeno fato, de expressão histórica secundária, fez Euclides o arbusto de onde levantou vôo qual pássaro incapaz de alçar-se do chão. Euclides Sempre se apoiava no fato. Canudos foi fato.
A margem esquerda do rio Pardo, a menos de cem metros acima do local onde ruíra a primitiva ponte, ergueu Euclides uma barraca de sarrafos e folhas de zinco, sombreada por um paineira de forma estranha, como que a proteger com espalhada e retorcida ramaria a rude construção. Um verso de Shakespeare, escrito a zarcão à entrada da cabana, expressava por certo a sua perplexidade ante o desabamento da ponte, a maior obra urbana até então executada pelo Departamento de Obras Públicas do Estado de São Paulo. Indagava o verso: "What shall do a man but to merry..." ("Que poderá fazer um homem senão rir...") A cabana ainda está firme, envolta desde 1928 numa redoma de vidro resistindo até à enchente decamilenar de janeiro de 1977. A paineira não. caiu há alguns anos, sucumbindo durante a noite em meio a um temporal. Sucumbiu com extremos de cuidados, desobedecendo até à lei da gravidade, para não atingir a casinha histórica. Hoje viceja, quase adulta, outra paineira, filha daquela. nasceu, porém, ereta, sem nenhum retorcido no tronco ou nos crescentes braços. Protege com a galharia o monumento histórico nacional. a poucos metros, numa peanha de granito rosa, o medalhão em bronze de Euclides, com o verso decassílabo autobiográfico: "Misto de celta, de tapuia e grego..." Inaugurou-se a Herma em 1918, com a presença de Vicente de Carvalho, de quem Euclides prefaciara os Poemas e Canções.
Mais recentemente, o espaço aberto entre a cabana e a Herma ganhou o simbolismo de um sol de pedra, em cujo interior as palavras terra, homem e luta se entrecruzam em variadas sugestões gráficas.
Chegado a São José do Rio Pardo, Euclides mal iniciara Os Sertões. É de crer-se que trouxesse prontas, mas à espera de suas revisões, sempre substanciais, apenas as sessenta páginas sobre "A Terra" e algumas de "O Homem"; uma sexta parte do livro, se tanto. E mesmo trechos incluídos no "Excerto de um Livro Inédito" (O Estado de S. Paulo, 19-1-1898) sofreram radicais transformações. É o verificado com o antológico estudo sobre o sertanejo como se depreende da comparação formulada por nosso conterrâneo Olímpio de Sousa Andrade em sua brilhante "História e Interpretação de Os Sertões".
Letra cerrada e quase ilegível, Euclides incumbiu José Honório de Sylos para passar a limpo as tiras originais. Antes da conclusão do primeiro capítulo, foi nesse mister substituído por José Augusto Pereira Pimenta, cabo do destacamento policial.
Outra página de superior elaboração artística, poliu-a Euclides de modo bem curioso: mal satisfeito com o que sabia a respeito de estouros de boiadas (nunca assistira a um deles), quis ouvir um boiadeiro velho, Jerônimo Picuí, a "pintura caipiresca" do evento. Tão viva e precisa foi a descrição oral, que sua boiada, a "tremer a terra com o estrépito de seu passos pesados, atroando o ar com o embate seco das guampas... que até fedia a chifre queimado".
Livro e ponte concluíram-se ao mesmo tempo. A inauguração desta, festiva a contragosto de Euclides, ocorreu a 18 de maio de 1901. ele, num gesto muito seu, teria mandado construir uma ilha artificial sob o vão central, onde se haveria postado durante as provas de carga. Em caso de ela não resistir, seu construtor pereceria esmagado... Influência do mestre Domingues, da "Abóbada " de Alexandre Herculano.
Hora de desarranchar, reencetando a "engenharia andante". Guaratinguetá e Lorena os próximos pontos de um infindável itinerário. Nos dois anos vividos no Vale do Paraíba deu-se a publicação de Os Sertões e sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, "honrado por Ter tido eleitores como Rio Branco e Machado de Assis". Em novembro de 1903 tomava posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Imprimir seu primeiro trabalho representou-lhe não pequeno sacrifício pessoal: desembolsou um conto e quinhentos mil-réis - o dobro do seu ordenado - no financiamento à Editora Laemmert. E ficou apavorado (o termo é seu) com os descuidos tipográficos. "Já não tenho coragem de o abrir mais." Chegou ao extremo de fazer em alguns exemplares (eram mil) perto de oitenta correções a ponta de canivete ou a bico de pena.
Em 1904 surge a oportunidade de realizar seu "mais belo ideal": uma viagem à Amazônia. Aceita a incumbência de chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, com a velada intenção de escrever "um segundo livro vingador", a que chamaria Um Paraíso Perdido. Estudaria não apenas a região, mas seus habitantes, incapazes, apesar dos séculos, de a dominarem de vez. "O homem ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado ou querido --quando a natureza ainda estava arrumando o seu vasto e luxuoso salão."
Um incidente muito conhecido: estavam reunidas duas comissões de reconhecimento do Alto Purus, a brasileira e a peruana, em um almoço de homenagem. Enfeitavam o tosco barracão bandeiras do Peru, de todos os tamanhos. Do Brasil, nem uma. Narra Euclides: "Notando este fato, pensei em retirar-me e aguardava a primeira oportunidade para o fazer, sem alarde ou escândalo, quando observei entre as ramagens que decoravam as paredes de paxiúba da sala do festim algumas folhas de palmeiras, cujas faces internas de um amarelo muito intenso contrastavam no verde do resto da folhagem." De inopino, sem esperar o momento azado, que seria naturalmente à sobremesa, ergueu-se Euclides e proferiu um discurso cheio de vibração patriótica, em que agradecia ao anfitrião, também peruano, a delicadeza de representar a bandeira do Brasil não com um pano tirado ao "seio mercenário de uma fábrica", e sim "no seio majestoso das matas, tomando-a exatamente da árvore que entre todas simboliza as idéias superiores da retidão e da altura"... A que o hospedeiro pôde responder tão-só: "Usted comprendió muy bien nuestro pensamiento..."
A 18 de dezembro de 1906, é recebido na Academia, assentando-se na cadeira antes ocupada por Valentim Magalhães e que tinha por patrono a Castro Alves. Saudou-o Sílvio Romero, com a suprema concessão de reconhecer méritos num artista de formação bem diversa da de Tobias Barreto. Entre 1907 e 1908, enquanto adido ao Itamarati, sem função definida como auxiliar do Barão do Rio Branco, publica Contrastes e Confrontos (coletânea de estudos de várias épocas) e Peru versus Bolívia (relativo a questões de limites entre os dois países), em que Euclides toma, por justiça, o partido da Bolívia e provoca o famoso incidente do "telegrama n.º 9", com o chanceler Zeballos, da Argentina.
A morte de Vicente de Sousa, professor de Lógica no Colégio Pedro II ( Então Ginásio Nacional), dá-lhe ensejo de concorrer à vaga, competindo com Farias Brito, filósofo espiritualista de larga nomeada. Cabe-lhe por sorteio Verdade e Erro para dissertação escrita e Idéia do Ser para exposição oral. Classifica-se Farias Brito em primeiro lugar, e Euclides em segundo. O Barão do Rio Branco teria influenciado junto ao governo na nomeação de Euclides, permitida, aliás, por lei. Nomeado a 14 de julho de 1909, parecia satisfeita sua ânsia de dar estabilidade à vida. Ministra 10 aulas.
Numa tarde de agosto vai a um cinema com Coelho Neto e Goulart de Andrade. O filme tem desfecho violento, com a mulher adúltera morta pelo marido. "É assim que eu compreendo..." - comenta à saída.
Foi de encontro à morte na Estrada Real de Santa Cruz, n.º 214, no subúrbio da Piedade.
Era domingo de manhã, 15 de agosto de 1909.
Trechos do livro "Ensaios Euclidianos",
de Márcio José Lauria.
Coleção Atualidade Crítica,
Editora Presença.